A importância de uma
radical revolução religiosa
radical revolução religiosa
Acho que, se pudermos compreender o problema da frustração, teremos uma mentalidade que não será meramente intelectual, mas uma atividade “integrada”. Nossas religiões, nossas atividades sociais estão baseadas na frustração e no sofrimento. Se pudermos compreender esta questão da frustração, que é realmente o problema da dualidade, talvez possamos, por nós mesmos e como indivíduos, chegar àquela ação criadora que não é uma simples capacidade ou talento, mas uma ação totalmente diversa. Se pudermos esclarecer esta questão da dualidade e do conflito entre “o que é” e “o que deveria ser”, talvez então compreendamos a mente que é sem raiz, pois a mente da maioria de nós tem raiz.
A própria existência da mente indica — não é verdade? — pensamento com raiz no passado. Esta raiz é que cria a dualidade. É possível não dar continuidade a essa raiz, no presente ou no futuro? Só a mente sem raiz pode ser verdadeiramente religiosa e, portanto, capaz da transformação radical que possibilitará o despontar da realidade. Desejo examinar esta questão, aparentemente um: pouco difícil; mas, se pudermos fazê-lo de maneira simples, não filosoficamente, então talvez estejamos aptos a apreciá-la e compreendê-la por nós mesmos. Mas a dificuldade consiste em que nós, em geral, já lemos tanta coisa sobre este problema da dualidade; conhecemos o problema de acordo com alguma filosofia, algum instrutor, não o conhecemos diretamente, porém, sem que nos tenham chamado para ele a atenção. Se pudermos examinar o problema da dualidade, não intelectual ou filosoficamente, mas observando as atividades de nossa própria mente, enquanto estou falando, talvez então possamos apreciar o problema de maneira diferente. Se puderdes escutar, não a descrição que eu faço, mas as atividades de vossa própria mente, desde o começo de minha descrição ou “verbalização”, isso será então uma experiência direta e, portanto, muito mais vital e significativa do que o mero descobrimento, em todos nós, de um mecanismo dual, apontado por algum filósofo, algum instrutor religioso ou algum livro. Entretanto a dificuldade é que os que aqui estão escutando já chegaram a alguma conclusão ou já ouviram o que eu disse antes e sua mente, por conseguinte, está cheia das cinzas da memória das minhas afirmações; por essa razão, não haverá uma experiência nova, uma coisa real, viva. Os que aqui estão, pela primeira vez só poderão achar enigmático o que estou dizendo, pois é provável que eu empregue palavras com um significado diverso daquele a que estão habituados. Mas, conhecendo-se todas as dificuldades suscitadas pelas cinzas da memória, pela experiência e pelo conhecimento prévios, bem como pela circunstância de se estar aqui pela primeira vez, ouvindo coisas tão altamente “filosóficas” e difíceis — e portanto repelindo-as — temos de escutar com uma mente nova. E não pode nascer essa mente nova, se não observardes o vosso próprio mecanismo de pensamento, desde o momento em que eu começo a falar a respeito deste problema da frustração e da dualidade.
Não vos estou dizendo coisas e, sim, apontando fatos. Vós e eu podemos compreender o fato, apreciá-lo sem condenação, sem julgamento, observá-lo com simplicidade, e estar inteiramente apercebidos dele — não como o observador a observar, mas percebendo o que de fato está acontecendo, “experimentando” realmente o mecanismo pelo qual a mente cria a dualidade e faz nascer a frustração, mecanismo em que estão baseadas nossa cultura, nossas religiões, nossas atividades sociais. Se pudermos compreender esse mecanismo, descobriremos o que é a verdadeira liberdade.
A dificuldade é que a maioria de vós considera estas minhas palestras como conferências, coisas para serem ouvidas e lembradas, coisas que vos proporcionarão muitas experiências, sensações, excitações emocionais. Mas tal não é a intenção, absolutamente, pelo menos de minha parte. O mais importante é que se tenha a revolução religiosa, uma transformação religiosa radical, fundamental, porque todas as outras modificações são sem significação, todas as outras revoluções só redundam em novos sofrimentos. Se pudermos perceber a verdade desta asserção, perceber a importância de uma revolução religiosa radical, e que só ela poderá promover uma modificação nas nossas relações com todos os homens, estão estas palestras não serão um simples meio de excitamento ou divertimento intelectual ou emocional, mas algo de verdadeira significação em nossa vida diária. Por conseguinte, temos de ouví-las como se fosse a primeira vez que as ouvimos, isto é, num “estado de novo”; esse “estado de novo” não poderá existir se não observardes a vossa própria mente, desde o momento em que eu começo a falar, a penetrar o problema.
O problema é o problema da luta, do conflito, da luta incessante entre “o que eu sou” e “o que deveria ser”, e conflito entre “o que é” e “o que poderia ser. A mente está sempre e sempre a forcejar, a lutar, acomodar, ajustar, controlar, em conformidade com “o que deveria ser”. Isto é tudo o que sabemos. “O que deveria ser” é para nós mais importante do que “o que é”. Temos esses padrões ideológicos a que o espírito se está constantemente ajustando. Esse ajustamento é ação da vontade, mediante compulsão, persuasão. E daí resulta luta, e a luta produz frustração. Isto não é simplificação exagerada, é o que de fato acontece com cada um de nós: “eu sou isto, e no futuro deverei ser aquilo”. Mas o futuro, o que deveria ser, o ideal, é um oposto, uma contradição do que é. A mente percebe que eu odeio e diz “devo amar”; a mente, por isso, fica perenemente ocupada em ajustar-se, forçar-se, disciplinar-se, para alcançar um estado a que eia chama amor. Eu não conheço o amor, mas a minha mente está perseguindo o que ela pensa ser o amor, e que é só uma ideia, o oposto daquilo que eu sou. A projeção de uma ideia do que seja o amor não é o amor e, sim, uma reação daquilo que eu sou, que é: “eu odeio”. Na minha luta para apoderar-me daquele amor, eu sou violento e tenho a ideia da não violência; e, assim, faço exercícios, disciplino, controlo, moldo a minha vida, segundo aquela ideia, aquele padrão, mas nunca chego a preencher o padrão. Isso acontece porque, quando o alcanço, logo a minha mente inventa outro padrão. E assim prossegue, a mudar de padrão continuamente. Por essa razão, a minha vida é uma série de frustrações, sofrimentos e lutas por uma coisa após outra. É, pois, a minha vida uma sucessão de lutas e desditas, que é só o que eu conheço.
O importante não é “o que deveria ser” mas “o que é”. “O que é”, o que eu conheço, este é que é o fato. A outra coisa não existe. Se minha mente puder dar toda a atenção ao que é, sem criar o oposto, descobrirá então o que é o amor — não o amor como oposto do ódio. Mas o problema de compreender o que é o ódio requer percebimento sem condenação. Porque, no momento em que o condeno, estou odiando, já criei o oposto. Espero esteja expondo a questão com clareza e simplicidade. Quando se pode ver essa coisa, isto, com efeito, é uma extraordinária libertação de todas as frustrações que temos criado. Somos um povo infeliz; nossa religião é infeliz, sendo produto da infelicidade, da luta, da frustração; nossos deuses e até a nossa cultura resultam dessa frustração. Temos, pois, de compreender, não apenas verbalmente, intelectualmente, mas mui profundamente o fato que diz respeito ao que “eu sou”, “o que é”. O fato é este: “eu odeio; eu seu violento” — só isso. Mas a mente não quer aceitar esse fato e, por essa razão, cria o oposto; isto é, condena o fato, criando, assim, o oposto. Essa condenação é justamente o mecanismo de criação da dualidade. Mas se eu puder perceber que a minha mente condena e que pela condenação eu crio o oposto e, portanto, dou origem à luta, essa própria compreensão do fato de que a condenação cria o oposto e, conseguintemente, o conflito, esse próprio percebimento põe fim ao mecanismo da condenação — não pela compulsão, mas simplesmente pelo percebimento do fato. Tenho, pois, diante dos olhos só o fato de que odeio, sem nenhuma projeção mental do oposto.
Compreendeis, senhores, que liberdade extraordinária é esta, quando não temos nenhum oposto? Pode-se então apreciar o fato. E então a coisa que eu chamava “ódio” — visto que não a condeno mais — já não é ódio. Mas eu condeno o ódio e desejo transformá-lo em amor, porque minha mente tem sua raiz cravada no passado. Essa avaliação é o julgamento proveniente do passado; e com esse “fundo” é que eu aprecio o ódio e desejo transformar esse ódio naquilo que chamo amor; isso produz conflito, luta, com todas as suas disciplinas, controles e supostas meditações.
Ora, pode haver um estado livre do passado? Pode haver um estado livre do pensamento que se projeta no futuro? Eu odeio; esse ódio é o resultado do passado, uma reação; e o pensamento, então, o condena, e o projeta no futuro, assim formulado: “devo amar”. Eis como o pensamento se enraíza no passado e no futuro, tornando-se contínuo; e nessa continuidade há a luta para prosseguir, na forma do oposto. O que estou procurando averiguar é se a mente pode em algum tempo ser totalmente livre, e não ter raiz alguma. Quando a mente tem raiz, ela tem de “projetar-se”, estender-se; esse estender-se é o oposto; por isso o pensamento é contínuo, nunca chega a um fim; ele é a continuidade de meu condicionamento, do meu “fundo”, estendida para o futuro; e por essa razão não há liberdade. Estou procurando averiguar se é possível a mente achar-se num estado em que se não esteja enraizando mediante as experiências. Sem se achar naquele estado, a mente não é livre, vendo-se sempre em conflito. Por conseguinte, para a mente que tem raiz, há sempre frustração; e, não importa qual seja a sua atividade — social, cultural, religiosa — essa atividade é sempre produto da frustração; não é, por conseguinte, a verdadeira transformação religiosa, em que há a cessação de todas as projeções do pensamento que se enraízam na mente.
Pode a mente existir, sem raiz alguma? O mais que se pode fazer é averiguar, ver se a mente pode existir sem raiz — viver, existir, como o mar, sem raiz alguma, sem estar firmada num determinado lugar, numa determinada experiência, num determinado pensamento. Senhor, só a mente que não tem raiz pode conhecer o Real. Porque, no momento em que a mente experimenta e instala a experiência na memória, esta memória se torna a raiz, o passado; e esta memória, então, fica a pedir mais e mais experiências; por esta razão, há a constante frustração do presente. A frustração implica — não é verdade? — a condenação do estado da mente, tal como ela é. A mente, tal como é, está cheia da tradição, do tempo, de lembranças, ódio, ciúme. Pode-se compreender essa mente, sem condenação — isto é, sem se criar o oposto? No momento em que condenamos “o que é”, não o compreendemos. A compreensão do que é só pode ocorrer quando não há condenação; só então se pode estar livre do que é. Para mim, a mente que não tem a luta da dualidade é que é a mente verdadeiramente religiosa, e não a que está lutando para vencer a cólera, não a mente que está lutando para se tornar não violenta; esta só está vivendo na luta do oposto. É só a mente verdadeiramente religiosa que não tem o conflito do oposto; ela não conhece a frustração; não luta para se tornar alguma coisa; é “o que é”. Com a compreensão do que ela realmente é, a mente já se não está enraizando na memória.
Tende a bondade de escutar o que estou dizendo, não importa se verdadeiro ou falso — procurai descobrir o fato por vós mesmos. A mente que tem continuidade na memória, estará sempre frustrada, estará sempre a lutar para ser algo. “Vir a ser” é enraizar-se — numa ideia, numa pessoa, num objeto. Quando a mente se enraíza, surge o problema: “Como poderá ela libertar-se?”. A sua libertação assume então a forma do oposto, e daí resulta a luta para achar a maneira como libertá-la. Se se perceber, porém, se se compreender, se se estiver apercebido de como a mente está sempre a enraizar-se em cada experiência, em cada reação, então, nesse percebimento, não há escolha, não há condenação, por conseguinte não há a criação do oposto, consequentemente não há luta. Então, a mente não tem nenhuma raiz, mas está viva; não tem continuidade, mas se acha num “estado de ser” em que não existe o tempo. Parece-me importante compreender isto, não apenas verbal ou intelectualmente, mas vendo, de fato, como a mente está criando a luta e o mecanismo dual.
A ação da mente sem raiz é criadora, porque essa mente já não se acha num estado de frustração, de onde pinta, escreve, ou busca a Realidade. Essa mente não busca, o buscar supõe a dualidade; o buscar é luta, é estender o pensamento do passado para o futuro e deixá-lo firmar-se na raiz do futuro. Se a mente puder perceber esse fato, estar apercebida desse fato, dar-se-á uma extraordinária libertação de tudo quanto é luta; por consequência, haverá felicidade e bem-aventurança; e essa felicidade e bem-aventurança não é o oposto do sofrimento, da desgraça ou da frustração. Isto não são meras palavras; falo de estados diretos de que a mente se apodera, instalando-se na experiência; estados que, com efeito, não podem ser conhecidos por uma mente que luta para se tornar o oposto.
Tudo isso requer — não é verdade? — o percebimento do mecanismo mental. Refiro-me ao percebimento do mecanismo total da existência: sofrimento, dor, amor, ódio, sentimento, ilusões — pois tudo isso constitui a mente. Não e, pois, importante ver como a vossa mente funciona, ver como opera, como “projeta”, como se apega ao passado, à tradição, às inumeráveis experiências, impedindo assim a experiência da Realidade? Estar apercebido disso tudo não é saber o que dizem os modernos ou antigos instrutores, ou os psicólogos, ou os gurus. Nenhum valor tem estar-se informado sobre o que outros disseram, porque cada um tem de descobrir por si mesmo o mecanismo de sua própria mente. Esse descobrimento não é possível se nos retiramos para uma caverna nas montanhas, mas sim no viver de dia para dia. É preciso também perceber que aquilo que descobrimos já se pode ter tornado a raiz que determina as nossas ações; isto é, temos de descobrir como a mente pode servir-se dos seus próprios descobrimentos como uma experiência que determina o que ela pensa, de modo que essa experiência se torna o nosso obstáculo, levando-nos à frustração. Ver tudo isso é percebimento. Esse percebimento só pode ocorrer quando não há condenação — o que, com efeito, significa a quebra completa de todo o condicionamento da mente, para que a mente possa achar-se num estado em que já não crie raízes, sendo por conseguinte uma mente sem âncora e havendo, portanto, a experiência real. Só esta mente é capaz de ver e conhecer aquilo que é eterno.
Senhores, quando eu estiver respondendo a estas perguntas, observai a vossa própria mente criando a dualidade. Vede como a mente espera uma resposta. Ela faz uma pergunta por causa de sua própria frustração, de seu sofrimento, de suas tribulações e confusão. Faz a pergunta e a converte num problema, e fica à espera de uma resposta. Ao receber a resposta, diz: “como posso chegar lá?” O como é a luta — a luta entre o problema e a solução, entre “o que é” e “o que deveria ser”. O método é o como, o método é luta; o método, por conseguinte, pela sua própria natureza, produz a frustração. É, portanto, o mais estúpido dos espíritos aquele que diz: “como posso fazer isso?”, “como posso chegar lá?”, “Eu sou isto e desejo ser aquilo, mas como?”.
O importante é “o que é”, não “o que deveria ser”. A compreensão do que é requer a cessação da condenação, e nada mais. Não digais “como posso deixar de condenar?” — porque então vos vereis de novo dentro do mesmo antigo processo. Mas vede a verdade contida na asserção de que o condenar produz a luta e, portanto, a dualidade, e portanto a luta em direção ao oposto. Vede isso, simplesmente, percebei simplesmente o fato; ocorre então a revelação do é, que é o problema.
Krishnamurti, Sexta Conferência em Bombaim
Krishnamurti, Sexta Conferência em Bombaim
24 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente