O problema da revolução religiosa
Se pudéssemos encontrar, por nós mesmos, uma fonte perene de felicidade, de bem-aventurança, estariam resolvidos, parece-me, a maioria dos nossos problemas. Andamos incessantemente em busca dessa fonte, em todas as nossas relações, em tudo o que fazemos, com motivo e, às vezes, sem motivo algum. As coisas que acumulamos como conhecimento e as coisas do coração e da mente, constituem um seguro indício de que ansiamos por encontrar aquela fonte inesgotável, de cujas águas possamos viver e ser felizes e criar. Mas, essa fonte parece esconder-se de nós. Estamos sempre a perseguir um fantasma e nunca temos a coisa real. A meu ver, se refletirmos devidamente sobre o que estivemos apreciando nas últimas reuniões — ou seja o problema da revolução religiosa — e soubermos promover essa revolução, ela poderá levar-nos àquela fonte e fazer surgir em nossa vida aquela bem-aventurança. A revolução total depende de um “processo”, uma progressão? Depende de algum método? A revolução total não se opera através de nenhum processo, através de ajustamentos graduais, renúncias, resistência, disciplina. A revolução total está no momento. Qualquer outra espécie de revolução ou mudança, assim me parece, é “mecanismo” de ajustamento a determinado padrão, a um ideal, a uma Utopia, ou o que quiserdes; é um mecanismo gradativo; e tal mecanismo, tal método de acesso gradual — o chamado método evolutivo — não o considero religioso; será científico, mas, fundamentalmente, não é, de modo nenhum, religioso. Afigura-se-me muito importante compreendermos esse estado religioso para nos acharmos nele e não para chegarmos a ele. E essa compreensão é impossível, acho eu, se pensamos em termos referentes ao tempo, tais como: “alcançar, chegar, praticar certo método, seguir determinado caminho’’, para termos a revelação daquela extraordinária ação criadora do atemporal. O necessário é morrer todos os dias para todas as coisas que sabemos, todas as coisas que experimentamos, tudo o que aprendemos. O importante é o morrer todos os dias, mas não como morrer.
Antes de irmos por diante, importa sobremodo averiguar-se a maneira como escutamos. Se uma pessoa é intelectual, se leu muitos livros, se adquiriu muita erudição e tem o intelecto e a mente completamente cheios, essa pessoa é capaz de escutar? Os seus conhecimentos, justamente, não colidem com as coisas que ouve dizer, impedindo-lhe o descobrimento da verdade? Pode o seu intelecto ser muito penetrante e capaz de exame racional progressivo; mas, pode essa mente, a mente dita intelectual, alcançar aquele estado? Aquele estado, por certo, só pode existir depois de cessar a atividade da mente. Não vos parece importante, por conseguinte, que essa mente intelectual abandone, se possível, todas as coisas que aprendeu, que estudou, que leu? Estou bem certo de que, de outro modo, a mente intelectual nunca encontrará aquilo que é real. A mente intelectual é muito susceptível de ilusões; pelo processo da análise, ela exclui e elimina, e, tendo medo à incerteza, apega-se a uma dada crença — como procede a maioria dos intelectuais.
Não é importante que aqueles de nós que não somos muito intelectuais, saibamos escutar? O indivíduo comum, que luta, que se sente infeliz, tem o sentimento de estar perdido; não sabe onde encontrar conforto, onde achar a compreensão, não sabe em quem confiar; porque todos os políticos e os chamados guias religiosos não o conduziram a parte alguma, a sua vida é de confusão e contradição, sempre crescentes. Com sua mentalidade vulgar, medíocre, vive numa luta incessante para ser alguma coisa. Não é muito importante que ele aprenda a escutar corretamente? O homem medíocre, o homem mediano anseia por um método de ação imediata; vendo-se tolhido pelas circunstâncias de uma vida que se tornou rotina, cheia de tédio e de frustração do seu “eu”, ele deseja saber o que deve fazer. Não é muito importante, para a mente que está sempre a lutar por um fim, um resultado, um objetivo, algo que lhe sirva de guia, não é muito importante que essa mente saiba escutar, já que estamos sempre traduzindo o que ouvimos em termos de ação? — o que não significa que a ação não seja importante. Em meu sentir o homem feliz sabe viver, e viver é a sua ação; o homem infeliz, porém, está perenemente em busca de um padrão de ação.
Sendo os mais de nós tão infelizes, vivendo a lutar e a buscar um pouco de luz ou de felicidade, interessa-nos mais escutar com o fim de encontrarmos algum padrão de ação; estamos todo entregues a esta busca vã, do padrão de ação, e perdendo a arte de escutar — escutar não só o que se está dizendo aqui, mas tudo o que nos cerca: o bramido do mar, os cantos dos pássaros, os gritos das crianças, os livros que lemos. Não escutamos, porque nossa mente está toda ocupada e nossas ocupações são triviais. Mesmo a mente que se ocupa ou se interessa pela busca de Deus é trivial, porque está ocupada. Só a mente livre, tranquila e desocupada conhece a felicidade e tem espaço infinito; a essa mente o Eterno se apresenta. A mente cheia de inquietações, preocupada com a salvação da humanidade, reformas sociais, aquisição de conhecimentos, nunca será capaz de escutar, porque, nela, não existe espaço, não existe um vazio onde possa medrar uma coisa nova, uma semente nova. Parece-me muito importante, tenhais na mente um tal espaço desocupado, tranquilo, livre de lutas, uma luz a brilhar no meio da escuridão; mas não o podemos ter, quando a nossa mente está toda ocupada, perseguindo alguma coisa, pedindo, rogando.
E há, também, espíritos não amadurecidos, que escutam como estudantes, i.e., com o fim de aprender, de coligir conhecimentos, para viverem de acordo com eles; esses querem exemplos, símiles, querem que se lhes ensine a maneira de agir e de escutar. Ora, todos esses espíritos — o estudante, o homem comum, a pessoa dita intelectual — estão ocupados; neles, não há espaço, nenhum vazio onde se possa descobrir algo de real ou de falso. Por certo, é necessário haver algum espaço na mente, no qual possa germinar uma semente nova — a semente que se não obtém através de lutas, nem de um dado processo, nem pela evolução deliberada do imitador, nem por meio de exercícios. É necessário haver aquele pequeno espaço, na mente, por mais ocupada que ela esteja com outras coisas, e aquele pequeno espaço deve permanecer não perturbado, não contaminado: lá poderá brotar a fonte eterna da felicidade. Mas a criação daquele espaço não depende de nenhum ato volitivo. Não se pode dizer: “como irei criá-lo?”. No momento em que se pergunta “como?”, já a mente está ocupada.
Se se percebe a importância, a beleza pura, a necessidade da quietude, haverá então aquele espaço; aquele espaço significa o morrer para todas as coisas sabidas, todas as lembranças, todas as experiências, todas as acumulações de saber e conhecimento. É um fato óbvio que nós morremos, que nosso corpo está sofrendo uma constante modificação; tanto tem fim o nobre como o ignóbil. A mente, porém, recusa-se a morrer para as coisas de ontem. Estamos transportando essas coisas de dia para dia, e esse transportar se efetua por meio da memória, que lhes dá essa continuidade. Esperamos que, dentro dessa continuidade, desse contínuo aprender, adquirir, modificar, alterar aqui e ali, operar-se-á uma revolução, uma transformação radical. O que é capaz de continuar não é revolução religiosa. Só quando o pensamento termina e não tem mais continuidade, pode haver um morrer, para a mente, e nesse morrer pode ocorrer a transformação radical.
Escutai, simplesmente, o que estou dizendo. Não digais: “Como poderei alcançar as coisas de que estais falando?”. Eu não estou falando de coisa alguma; apenas descrevo o estado da mente, desse mecanismo, desse organismo perpetuamente barulhento e que nunca é capaz de escutar o silêncio. Nossos pensamentos estão em movimento constante; e o pensamento é a continuidade de ontem, ou seja o mecanismo do tempo, e no mecanismo do tempo jamais haverá a possibilidade de transformação radical; nele só pode haver mudança, fuga, modificação, nunca, porém, revolução real, religiosa, em que não existe mecanismo algum, mas só ser. Por exemplo: um homem que é ávido, por mais que se exercite, se controle e discipline — e isso é o mecanismo do tempo — nunca chegará a uma condição onde possa achar-se o estado de não avidez. A libertação da avidez não é um processo, mas um estado que tem de acontecer; e esse acontecimento só pode verificar-se pelo morrer; porque é só quando se chega a um fim, que algo novo pode surgir.
Recusa-se a mente a findar, porque a mente é resultado do tempo, de séculos de compulsão, conformação, imitação; ela só conhece luta, julgamento, e os valores baseados naquela luta; e, tentando transformar-se pela luta, diz ela: “tenho de transformar-me; é necessária uma ação de minha parte, que produza a felicidade”. Daí as revoluções econômicas, científicas ou sociais, mas nunca a real revolução religiosa, a única revolução verdadeira. Religião não é adoração de ídolos, observância de ritos, nem cultivo dos ideais da mente. Por certo, religião é coisa muito diferente da repetição do que foi dito pelos antigos instrutores, nos Vedas ou nos Upanishads; tudo isso tem de acabar, consumir-se, no fogo do silêncio.
A dificuldade consiste em que nunca desejamos estar incertos e temos medo de perder tudo. A mente, pois, vendo-se incerta, busca a certeza, criando assim o temor; do temor nasce a imitação, o estabelecimento da autoridade — política, religiosa, ou a da própria volição — visto que a mente exige um estado de continuidade, onde esteja certa. Mas a mente que anda em busca da certeza, nunca tem espaço onde seja possível o aparecimento do Real.
Parece-me, por conseguinte, que vós que estais me escutando não deveríeis mostrar tanto interesse no “como”, porém, antes, em “ser” — ser, ter algum espaço na mente, onde não haja nenhum movimento de pensamento, uma vez que o pensamento é a continuidade de ontem. O pensamento nunca produzirá um mundo novo. O intelecto nunca produzirá um Estado novo. Só quando termina o pensamento, quando estou morto para todos os dias passados, só então existe a possibilidade daquela revolução religiosa, tão necessária para a criação de um mundo novo. Todos os deuses devem desaparecer, para que o Deus real apareça. Temos agora tantos deuses em nossa mente, que se torna impossível o aparecimento do Deus real. Percebei, simplesmente, a verdade ou a falsidade disto, escutai o fato, quer ele seja verdadeiro, quer não. Conhecer simplesmente o fato, isto, em si, é libertação. Para se conhecer o fato, faz-se necessário o desaparecimento do ontem; as nossas lembranças, o enriquecimento de nossas experiências, o saber que cada um de nós busca, para estar sempre certo, tudo isso tem de desaparecer; porque todas essas coisas são de fabricação da mente.
A mente ó resultado do tempo. Vós, como “eu”, como “ego”, sois um produto da mente. O caráter, as tendências, as diversas disciplinas, os diferentes métodos de controle e persuasão, tudo isso é resultado do tempo, produto do tempo. A mente é tal como a fez a natureza, o ambiente, através da cultura, do medo, da imitação, da comparação, da chamada educação; essa mente, por mais que progrida e por mais que lute, não pode em tempo algum promover uma ação emanada daquela fonte de felicidade, derivada da revolta para encontrar a Realidade. Com efeito, é necessário percebais a simplicidade dessa coisa — não a simplicidade exterior, mas a simplicidade daquele estado em que não há esforço para chegar, em que não há luta para se ser algo, mas que equivale a ser “como a flor”; a flor é ela própria perfume, beleza — não há esforço, nem luta.
A mente que luta para alcançar a eterna beleza daquele perfume, nunca será capaz de conhecê-la. A mente que luta, jamais pode conhecê-la; todos os seus ritos, todas as suas experiências, todos os seus sacrifícios são feitos em vão, porque lá está sempre presente o “eu”, o centro de todo o seu pensar. Para esse pensar temos de morrer todos os dias. O renascimento em cada dia novo é a revolução religiosa.
Consideremos agora o problema do isolamento. Quando tendes um problema, não vos isolastes? Não estais em comunhão, porque vossa mente se acha tão preocupada a respeito do problema e da solução, que ficastes fechado para a real compreensão do problema. Ocupando-se com o problema, a mente se está isolando. Não ponhais a mente a trabalhar, mas vede o que é que cria o problema. É a mente. A mente, no seu isolamento, naquele estado de não comunhão, tem o seu problema, e, por essa razão, andamos a fazer perguntas, em busca de uma resposta que nos “abra a porta” do problema. Estamos, pois, a procurar uma chave, em vez de darmos atenção ao problema. A mente ocupada a respeito do problema não pode, examinar o problema.
Temos tantos problemas na vida, não só os problemas da superfície — econômicos e sociais — mas também os problemas inconscientes, profundos, que governam e moldam os acontecimentos exteriores. Esses problemas são o resultado, o fruto da nossa confusão, da nossa luta interior. A mera alteração superficial das condições econômicas, não pode quebrar aquela entidade interior que molda as coisas a seu talante. Assim, para compreender realmente o problema, não deve a mente estar ocupada com ele. Mas, em geral, temos tanta ânsia de resolver o problema que nos desafia, que desejamos uma resposta imediata, esta resposta é para nós importantíssima, porquanto pensamos que, tendo a resposta, teremos resolvido o problema. A mente que busca a resposta é, com efeito, uma mente muito superficial, medíocre.
Todos somos educados para acharmos respostas, para sermos ensinados, para copiarmos e fazermos o que nos mandam fazer. Ora, sem dúvida, a vida é um “processo de viver dia por dia”, e o viver não contém respostas. A mente que só está à procura de uma resposta para o problema, achará essa resposta, mas o problema permanecerá e tornará a apresentar-se sob outra forma. Nessas condições, se eu for capaz de compreender o problema, de prestar-lhe a devida atenção, o problema estará resolvido. Mas, como não sou capaz de fazê-lo, fico procurando a solução. Não posso atender ao problema, se o condeno. É esta a circunstância real, a circunstância básica que nos impede a compreensão do problema. Ele permanece, enquanto estamos julgando, condenando, comparando. Senhor, se não condenais, se não julgais ou comparais, existe algum problema para a mente?
A mente que condena, julga, analisa, compara, cria o problema. Não digais: “Como devo proceder?” Se aprenderdes um método, ele vos dominará a mente, e de novo lá estará o problema. Mas, se se perceber a verdade contida na asserção de que o condenar, o julgar, o comparar é que cria o problema, poder-se-á então apreciar a inteira significação do problema.
Krishnamurti, Quinta Conferência em Bombaim
21 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente