EUROPA — 1966 - SAANEN — II
PODEMOS CONTINUAR com o que estávamos dizendo anteontem? Falávamos, em palavras diferentes, sobre a importância de operar-se uma revolução total na mente. Estamos acostumados com “reformas de remendos”, mudanças fragmentárias, as quais se realizam ou sob compulsão, como meio de defesa, ou com uma finalidade, um propósito moral, ético. Todos reconhecemos a necessidade de uma revolução fundamental, radical, total, na mente, O homem vive há tanto tempo em conflito, dentro e fora de si mesmo, sempre aflito, sempre a funcionar entre os limites de seu egotismo, entre guerras, enganos, desonestidade, crueldade; todas estas coisas nos são bem familiares. Os que são verdadeiramente sérios percebem a importância da mudança, a necessidade de uma mente que seja capaz de atacar todos estes problemas e ao mesmo tempo viver neste mundo, sem dele se retirar para uma vida monástica; viver de uma maneira totalmente diferente.
Vê-se, também, que se operam mudanças fragmentárias pela ação da vontade. Eu quero mudar. Exerço fortemente a minha vontade, esforço-me, procuro, por meio da perseverança, da constância, de incansável atividade, promover uma modificação, contudo não há mudança total. Dentro em nós está sempre a travar-se esta tremenda batalha, a qual se manifesta em nossa conduta externa, em nossas relações exteriores, Se um indivíduo é verdadeiramente sério, como irá promover a completa transformação de sua mente? Não duvido de que já se tenha feito dúzias de vezes esta pergunta: “Que se deve fazer?” Um homem sabe que lhe falta sensibilidade, afeição, afeição genuína, intensa, profunda, não maculada por nenhuma espécie de egoísmo ou autocompaixão. Sabe este homem que funciona entre os limites de seu EGO — e a perene atividade egocêntrica. Sabendo de tudo isso, que deve fazer? Como romper essas fronteiras de autodefesa, para ficar inteira mente livre de conflito, aflição, sofrimento, de todas as tribulações da existência humana?
É isso o que vamos considerar, isto é, se de algum modo é possível viver no instante presente, tão completamente que o tempo não exista; se é possível mudar sem ser lenta e gradualmente, ser livre não numa “vida futura” (se existe), sem pensar que “serei alguma coisa amanhã”. Como se conseguirá isso?
Já se têm tentado diferentes maneiras, e muitos se têm forçado a não pensar, absolutamente, por reconhecerem que o pensamento é a origem de todos os males. Têm-se experimentado drogas de vários graus de eficácia, capazes de exaltar a sensibilidade, de dar uma diferente intensidade às ações do indivíduo. Experimentam-se drogas que expulsam por completo o medo, de modo que caem todas as defesas e o indivíduo fica completamente aberto e sem nenhuma idéia de seu EU. Muitas maneiras têm sido tentadas e os indivíduos se têm identificado com unia idéia a que chamam Deus, ou com o Estado, ou com uma existência futura. E vão assim suportando as constantes aflições, angústias e ansiedades desta vida. Todos sabemos disso; temos feito muitas tentativas dessa espécie. Podem elas produzir um certo efeito temporário, por um ou dois dias. Mas, esse efeito passa rapidamente e vemo-nos de volta, talvez um pouco mais requintados, à rotina diária, à existência monótona e insensível de cada dia, suportando nossas aflições, defendendo-nos, disputando, arrastando nossa existência até chegar à morte. Disso também sabemos. Perguntamos a nós mesmos se há alguma possibilidade de sacudirmos de nós, lançarmos fora, furtar-nos inteiramente a essa maneira de vida, de modo que tenhamos uma mente inteiramente nova, uma existência total mente diferente; que não haja separação entre a natureza e nós, entre outrem e nós, e nossa vida adquira uma qualidade superior, profunda significação! Penso que é isso o que está buscando a maioria de nós. Podemos não saber exprimi-lo, pô-lo em palavras, mas, no íntimo, é isso, e não a felicidade pessoal, o que deseja a maioria de nós. Esta (a felicidade Pessoal) tem muito pouca importância, mas o que tem verdadeira importância é uma vida que em si mesma encerre um extraordinário significado, uma vida sem conflito de espécie alguma, da qual esteja totalmente ausente o tempo. É isto possível?
Pode-se fazer aquela pergunta intelectual, verbal, teoricamente, mas, nesse caso, é evidente, a pergunta conduz a uma resposta teórica, a uma possibilidade conjetural, conceptual, e não real. Mas, se uma pessoa faz a pergunta seriamente, com intensidade e paixão, por perceber a futilidade da maneira como está vivendo, se faz realmente tal pergunta, qual é então a resposta? Que deve fazer ou não fazer? Acho importante cada um interrogar a si próprio e não através do orador, porque uma pergunta feita por outrem tem insignificante e superficial valor. Mas, se a pessoa faz a pergunta a si própria, com toda a seriedade e, por conseguinte, com intensidade, acha-se então num estado de relação com o orador, e sua mente disposta a examinar, a penetrar fundo, sem motivo algum, sem propósito nem direção, porém com um ardor que exige a resposta, um ardor que dispensa completamente o tempo, o conhecimento, e penetra realmente, a fim de descobrir se há alguma possibilidade de transpormos as fronteiras da atividade egocêntrica.
A este respeito estivemos falando anteontem, isto é, sobre o observador e a coisa observada. Dissemos que o observador é a coisa observada, que a totalidade da consciência, ou seja, a mente, o pensar, o sentir, o agir, a ideação — toda a agitação, confusão e aflição em que estamos vivendo — dissemos que tudo isso está contido no observador e na coisa observada. Deixai-me sugerir-vos que não vos limiteis a escutar o orador, porém que “escuteis” o fato que se verifica em vossa mente, quando se ouve a declaração de que a consciência inteira está dividida entre o observador e a coisa observada. Lá está o “experimentador” a exigir experiências que proporcionem prazer ou afastem a dor, a exigir mais e cada vez mais, a acumular conhecimentos, dores, sofrimentos; e lá está também o pensador, o observador, o experimentador separado da coisa observada, da coisa experimentada.
Há a entidade que diz “Eu sinto cólera”. Esse EU é diferente da cólera. Existe a violência e a entidade que “experimenta” a violência. Quando uma pessoa diz “Sinto ciúme”, o ciúme é uma coisa diferente da entidade que sente ciúme.
Quando uma pessoa olha para uma árvore, para sua mulher ou marido, para outra pessoa, está presente o observador que vê a coisa ou pessoa. A árvore é diferente do observador. A consciência inteira, a existência inteira está dividida entre o observador, o experimentador, o pensador, a um lado, e a outro lado o pensamento, a coisa experimentada, a coisa observada. Manifesta-se um forte sentimento sexual, ou de violência. Sou diferente desse sentimento; tenho de fazer alguma coisa em relação a ele; tenho de agir. Que devo fazer? Eu “devo” e “não devo”. Que devo fazer, e que não devo fazer? Há essa divisão interminável, que, no seu todo, é nossa consciência. Qualquer mudança que se verifique nessa consciência, não é mudança nenhuma, porque o observador permanece sempre separado da coisa observada. Se se não compreende isso, não é possível ir-se mais longe.
Quando digo “sou agressivo e não devo ser agressivo”, ou “continuarei a ser agressivo” — aí está presente o EU, eu que sou agressivo; a agressividade é uma coisa separada de mim. Tenho de preencher-me; o preenchimento é diferente da entidade que deseja preencher-se. Esta divisão existe sempre, e é dentro desta esfera que estamos tentando transformar-nos. Estamos a dizer que não devemos ser violentos; que devemos tornar-nos “não-violentos”; que não devemos ser agressivos; que devemos ser menos agressivos; que não devemos buscar preenchimento. Tudo isso se passa dentro daquela esfera, e nela nenhuma possibilidade existe de radical transformação.
Para que possa haver uma revolução total na mente, deve desaparecer totalmente o observador, porque o observador é a coisa observada. Quando sentis cólera, a cólera não é diferente do observador. O observador é a cólera. Quando dizeis que sois francês, alemão, indiano, comunista, o que quer que seja, a idéia é VÓS. O vós não é diferente da idéia. Para que haja uma revolução total — e ela é necessária — não podeis continuar como estais, numa batalha incessante, exterior e interior, em confusão, aflição, com sentimentos de culpa, sentimentos de fracasso, de solidão. Não existe nenhuma essência de afeição ou amor. O amor e a afeição estão rodeados, cercados pelo ciúme, a ansiedade, o medo. Só há transformação total quando o observador é a coisa observada, pois o observador nada pode fazer em relação àquilo que observa.
Krishnamurti – 12 de julho de 1966 – Saanen II