Krishnamurti nasceu no sul da Índia. Um dos numerosos filhos de uma família de brâmanes pobres, foi adotado com a idade de 9 anos, juntamente com seu irmão Nitya, por Annie Besant, discípula de Madame Blavatsky, fundadora do Movimento Teosófico, que dizia ter instruções ocultas a respeito do menino. Ela via nele o “veículo” em preparação de um novo “instrutor do mundo”. O adolescente era uma dessas criaturas excepcionais que muito raramente – uma vez no decorrer de inúmeros séculos – iluminam de maneira nova a consciência humana. Pouco tempo depois, em 1910, uma vasta organização mundial, contando com centenas de milhares de adeptos espalhados em todos os continentes, foi criada para receber o instrutor anunciado, e Krishnamurti, apesar de sua pouca idade, assumiu a direção do movimento.
Ele e seu irmão foram educados na Inglaterra, França e Califórnia, em vista de sua missão futura. Mas esse período de intensidade eufórica terminou bruscamente com a morte trágica de Nitya. Nesse meio tempo, um centro permanente tinha sido criado no norte da Holanda, em Ommen, onde o castelo de Eerde e dois mil hectares de terra tinham sido doados a Krishnamurti. O movimento não parou de crescer até o início da 2ª Grande Guerra. No verão, cerca de três mil pessoas iam ouvir a palavra de Krishnamurti neste local.
Ao regressar da Califórnia, e amadurecido pela morte do irmão, o jovem pregador começou a dizer algo bem diferente do que podiam imaginar seus tutores. Rejeitava toda espécie de autoridade, todo ensinamento espiritual, toda crença. Não era uma revolta por reação, mas ele percebia que, se desejamos penetrar profundamente o mistério da vida – e da morte –, o único ponto de penetração somos nós mesmos.
Em 1928, Krishnamurti libertou-se totalmente: anunciou a dissolução total e irreversível da organização criada a sua volta, a recusa de ter um único discípulo (a verdade repetida é uma mentira, pregava ele), a restituição de todos os bens que lhe tinham sido doados, a recusa de aderir a uma crença qualquer, ainda que fosse a da sua própria missão. “Nenhuma crença organizada pode libertar o homem que procura a verdade”, afirmava ele. Hoje (1972), acrescenta: “Nenhuma crença de espécie alguma, organizada ou não, pode nos orientar para a verdade.”
As reuniões de Ommen terminaram com a guerra. Desde então, Krishnamurti viaja pelo mundo: vai onde o convidam, contanto que lhe ofereçam moradia, transporte e subsistência. Volta todos os anos à Índia e à Califórnia. No outono de 1968, falou em diversas universidades americanas, entre as quais Yale e Berkeley. Suas conferências são muitas vezes poesia pura e, em agosto de 1970, iniciou uma palestra dizendo: “Escutem nosso canto.”
Documento único – Considerado uma grande possibilidade de nossa época, pela maioria dos pensadores contemporâneos, e tendo estabelecido sua vida e seu pensamento bem longe dos compromissos deste mundo, até aqui Krishnamurti jamais concedeu entrevistas ou colaborou em revistas periódicas. Só abriu exceção para a revista PLANETA. Este é, portanto, um documento único.
E ele começa dizendo: “Todos nós sabemos que esta época é explosiva, que os meios humanos, conservados mais ou menos inalterados durante milhares de anos, foram repentinamente multiplicados milhões de vezes; que os computadores, para citar apenas um exemplo, tornam-se de hora em hora mais fantásticos; a biologia está à beira de descobrir o mistério da vida e mesmo o de criar a vida; a Lua já foi visitada. Sabemos que os dados mais bem fundamentados das ciências estão ruindo; que tudo está sendo constantemente repensado e que os cérebros humanos são obrigados e forçados a se pôr em movimento. Na confusão atual, o homem está à procura de uma segurança material que só pode ser encontrada através dos conhecimentos tecnológicos. As religiões tornaram-se superestruturas que não possuem mais uma importância vital nos acontecimentos do mundo, enquanto as questões fundamentais permanecem sem resposta: o tempo, a dor, o medo.”
“E será que o homem ultra-moderno, que está tão a par das últimas descobertas científicas, teria incendiado seu universo inconsciente? Enquanto uma única parcela inconsciente permanecer nele, ele projetará uma irrealidade de símbolos e de palavras em virtude da qual terá a ilusão de se comunicar com alguma coisa superior.”
Eis a entrevista:
Revista PLANETA – Gostaria de lhe fazer perguntas a respeito da religião. As grandes religiões atuais nasceram em épocas em que a Terra era um disco chato, em que o Sol percorria a abóbada celeste, etc. Até uma era recente, - Galileu não está muito longe, - elas impunham pela violência uma imagem infantil do cosmos. Hoje, forçadas pelas circunstâncias, caminham de mãos dadas com a ciência e contentam-se em confessar que suas cosmogonias são apenas simbólicas. Mas proclamam que, apesar dessa capitulação, são depositárias de verdades eternas. O que pensa disso?
Krishnamurti – Elas continuam sua propaganda habitual a fim de adquirir poder sobre as consciências (fracionadas da Consciência Universal pelo conteúdo que as formam, se auto-mantém na auto-identificação e expansão em seu relacionamento com a natureza, pessoas, coisas e idéias que projetam de si próprias no tempo que criam – o vir a ser - em sua reação, a semelhança do cronológico, o tempo como realização). Procuram apoderar-se da infância para melhor condicioná-la. As religiões das igrejas e dos Estados proclamam a necessidade de todas as virtudes, enquanto a história delas é uma série de violências, terrores, torturas, massacres inacreditáveis.
R.P. – Todas as religiões pregam alguma forma de oração, algum método de contemplação, a fim de entrar em comunhão com uma realidade superior, cujo nome, Deus, Atman, Cosmos, etc., varia. Que ato religioso o senhor pratica? Costuma rezar?
Krishnamurti – A repetição de palavras sagradas apenas adormece a mente agitada. A oração é um calmante que permite ao indivíduo viver no interior de seu reduto psicológico sem sentir a necessidade de destruí-lo. O mecanismo da oração, como todos os mecanismos, dá resultados mecânicos. Não existe oração que seja capaz de penetrar a ignorância de si mesmo. Toda oração dirigida ao que é ilimitado (atemporalidade da mente) pressupõe que o indivíduo limitado (fracionamento, temporalidade constituída pelas projeções em busca de satisfação e prazer) sabe onde e como atingir o ilimitado.
R.P. – Não seria possível ao homem moderno comunicar-se melhor com a realidade do universo graças a uma consciência devidamente esclarecida e ampliada?
Krishnamurti – Aquele que deseja ampliar sua consciência pode escolher, entre as psicodrogas, aquela que melhor lhe convém. Quanto ao fato de se comunicar melhor com o universo graças a um acúmulo de informações e de conhecimentos científicos a respeito do átomo ou das galáxias, seria o mesmo que dizer que uma imensa erudição livresca a respeito do amor nos faria conhecer o amor. Isso quer dizer que o homem possui idéias, conceitos, crenças a esse respeito e está PRESO num sistema de explicações, numa prisão mental. Em lugar de liberar o indivíduo, a oração o aprisiona. Ora, a liberdade é a essência da religião, no verdadeiro sentido da palavra. Essa liberdade essencial é negada por todas as organizações religiosas, apesar de afirmarem o contrário. Muito antes de ser um estado de oração, o conhecimento de si é o início da meditação (ação sem centro contínuo de ação). Não é nem um acúmulo de conhecimentos psicológicos, nem um estado de submissão religiosa, do qual se espera a graça. É isso que destrói as disciplinas impostas pela sociedade ou pela Igreja. Trata-se de um estado de atenção (plena, a sua própria funcionalidade, não sendo possível nessa AÇÃO a interferência do passado) e não de uma concentração sobre algo particular. A mente estando tranqüila e silenciosa observa o mundo exterior e não projeta (de si mesma) mais nenhuma imaginação nem ilusão. Para observar o movimento da vida, o cérebro é tão rápido quanto ela, ativo e sem direção (objetivo). Somente então o imensurável, o intemporal, o infinito pode (surgir na ausencia de qualquer atividade ou movimento) nascer. Essa é a verdadeira religião.
R.P. – Pelo que entendi, o senhor aconselha o homem a descondicionar a totalidade absoluta de sua própria consciência. Aliás, o que me desconcerta mais no seu pensamento é a afirmação insistente de que esse descondicionamento total da consciência não necessita de tempo algum.
Krishnamurti – Se fosse um processo evolutivo, não chamaria mutação. Mutação é uma mudança brusca de estado (deixar de ser, para que algo diferente e realmente novo possa surgir no vazio pela cessação de qualquer movimento de conteúdo mental).
R.P. – Não imagino um “mutante”, isto é, um homem mudando de estado de consciência, que não carregasse consigo a resultante de todo o passado. O homem modifica o meio e o meio o modifica...
Krishnamurti – Não: o homem modifica o meio e o meio modifica a parte do homem que está ligada à modificação do meio, e não o homem inteiro, na sua profundidade extrema. Nenhuma pressão exterior (compulsão, orientação, proselitismo, ate mesmo volição) pode fazer isso: essa última (qualquer pressão exterior em geral) só modifica as partes superficiais da consciência. Nenhuma análise psicológica pode tampouco provocar a mutação, porque qualquer análise se situa no terreno da duração (chamado tempo psicológico). E nenhuma experiência pode provocá-la, por mais exaltada e “espiritual” que seja. Ao contrário, quanto mais parece ser uma revelação, tanto mais ela condiciona o indivíduo. Nos dois primeiros casos – modificação psicológica produzida pela análise ou pela introspecção e modificação produzida por uma pressão exterior –, o indivíduo não passa por nenhuma transformação profunda: não é modificado, formado, reajustado, de maneira a se adaptar ao meio social. No terceiro caso – modificações provocadas por uma experiência dita espiritual, seja segundo uma fé (crença) organizada, seja segundo uma fé pessoal –, o indivíduo é projetado na fuga que lhe dita a autoridade de algum símbolo. Em qualquer dos casos há a ação de uma força imperiosa que se apóia sobre uma moral social, isto é, um estado de contradição e de conflito. Toda sociedade é contraditória em si mesma. Ora a contradição, o conflito, o esforço, a competição são barreiras que impedem qualquer mutação, porque mutação quer dizer liberdade.
R.P. – Daí a fuga nos símbolos?
Krishnamurti – Só existem imagens simbólicas nas partes inexploradas da consciência. Até mesmo as palavras não passam de símbolos. Precisamos explodir (penetrar em seu sentido íntimo) as palavras. Vivemos de palavras. Se a chamada vida espiritual é um conflito permanente, é porque introduzimos a pretensão de nos alimentar de conceitos como se, famintos, pudéssemos nos alimentar da palavra “pão”. Vivemos de palavras e não de fatos. Em todos os fenômenos da vida, quer se trate da vida espiritual, da vida sexual, da organização material de nossas atividades ou de nossos lazeres, estimulam-nos com palavras. As palavras se organizam em idéias, em pensamentos e, a partir desses estimulantes, pensamos viver tanto mais intensamente quanto melhor soubermos, graças a eles, criar distâncias entre a realidade, nós, tal qual somos, (ou o que é) e um ideal, a projeção do contrário do que somos (o que deveria, ou gostaríamos de ser). De sorte que voltamos às costas à mutação.
R.P. – Afinal, o que é essa mutação de que o senhor fala tanto?
Krishnamurti – É uma explosão total do interior (psicológico) das camadas inexploradas da consciência, uma explosão no germe ou, se desejar, na raiz do condicionamento, uma destruição da duração (tempo criado pela imaginação como realização).
R.P. – Mas a vida é condicionamento. Como podemos destruir a duração e não destruir a vida?
Krishnamurti – Morra para a duração, para a concepção total do tempo (como duração, vir a ser); para o passado, presente e futuro. Morra para os sistemas, para os símbolos, para as palavras, porque são fatores de decomposição. Morra para seu psiquismo (movimento do conteúdo mental – ego), porque é ele quem fabrica o tempo psicológico. Esse tempo não possui nenhuma realidade.
R.P. – Mas, então, o que nos resta senão o desespero, a angústia, o medo de uma consciência que perdeu todo ponto de apoio, inclusive a noção de sua própria entidade?
Krishnamurti – Se um homem me fizesse essa pergunta dessa maneira, diria que não fez a viagem (não entendeu o que ouviu ou leu), que teve medo de passar para o outro lado do rio.
R.P. – Suas palavras dão medo. E me pergunto se a consciência não tem necessidade desse medo. Isso explicaria a razão de ele ter sido sempre mantido e alimentado pelas religiões, que, são consideradas como refúgios e tranqüilizantes. Elas mantêm o medo impedindo a consciência de se enxergar realmente. Elas interpõem, entre a consciência e a realidade, o véu das teologias.
Krishnamurti – Esse problema é ao mesmo tempo profundo e vasto. Procuremos abordá-lo, por assim dizer, tateando os diversos lados. O medo é tempo e pensamento (é tempo, é pensamento mensurando-se). O pensamento tanto dá continuidade ao medo quanto ao prazer. Esse fato é simples: ao pensar no objeto do nosso prazer, atribuímos continuidade ao prazer, e fazemos o mesmo com o medo, ao pensar no objeto de nosso medo. Se, ao contrário, encontramos face a face (somos o que vemos psicologicamente em movimento) o objeto de nosso medo, ele deixa de existir (não havendo qualquer movimento ele CESSA – cessamos como consciência pejada em movimento – passamos a existir descontinuamente como consciência sem coisa alguma impregnada, ou VAZIA).
R.P. – Como assim?
Krishnamurti – Falo do medo psicológico (mensurações de situações hipotéticas), não do medo de um perigo físico que procuramos afastar, que é natural. Considere o medo da morte. Em que consiste exatamente? Dividimos a totalidade do fenômeno vital (o existir) em vida e morte. A vida é conhecida; da morte, no entanto, não sabemos nada. Temos medo do que não conhecemos ou temos medo de perder o que conhecemos? É evidente que vida e morte são dois aspectos do mesmo fenômeno (que culturalmente separamos). Se deixarmos de considerá-los como dois fenômenos diferentes, não existe mais conflito.
R.P. – Mas não existe um medo fundamental?
Krishnamurti – Não. O medo é sempre o medo de alguma coisa. Todo medo, mesmo inconsciente, é o resultado de um pensamento. O medo geralmente difundido em todos os domínios é o medo psicológico, no interior do ego, são sempre o medo de NÃO SER. De não ser isso ou aquilo, ou simplesmente de não ser. A contradição evidente entre o fato de tudo que existe (temporalidade) ser transitório e a procura de uma permanência psicológica (perpetuidade) – eis a origem do medo.