Acho que a maioria de nós sabe o que é solidão. Conhecemos esse estado em que todos os laços de relação foram cortados, em que não há senso do futuro nem do passado, em que prevalece um completo sentimento de isolamento. Podeis achar-vos no meio de uma multidão, num ônibus superlotado, ou estar sentado ao lado de um amigo, de vosso marido ou esposa, e eis que subitamente vos assalta essa onda, esse sentimento de vácuo, vazio, de um abismo. E a reação instintiva é de fugir. Assim, tratais de ligar o rádio, de tagarelar, de ingressar em alguma associação, ou de pregar Deus, a verdade, o amor etc. Vosso meio de fuga pode ser Deus ou pode ser o cinema; todos os meios de fuga são idênticos. E a reação é de medo a esse sentimento de total isolamento e, por conseguinte, a fuga. Conheceis todos os meios de fuga: o nacionalismo, a pátria, os filhos, o nome, a propriedade, — e por todas essas coisas estais disposto a lutar e a morrer.
Ora, se se reconhece que todos os meios de fuga são iguais, e se percebe realmente a significação de um dado meio de fuga, pode-se ainda fugir? Ou não há mais fuga? E, se não estais fugindo, há ainda conflito? Estais-me seguindo? É a fuga ao que é, o esforço para alcançar uma coisa diferente do que é, que cria o conflito. Assim, para que a mente possa transcender esse sentimento de solidão, essa súbita cessação da lembrança de todas as relações, as quais envolvem ciúme, inveja, ânsia de aquisição, esforço para ser virtuoso etc. — primeiro ela tem de enfrentá-lo, passar por ele, de modo que o medo em todas as suas formas definhe até desaparecer de todo. Dessa forma, pode a mente perceber, num dado meio de fuga, a futilidade de todas as fugas? Não há então conflito, há? Porque já não há nenhum observador da solidão: há só o experimentar dela. Estais seguindo? Essa solidão é o cessar de todas as relações; as idéias já não têm importância; o pensamento perdeu toda a valia. Estou descrevendo as coisas, mas não vos limiteis a ouvir, pois, assim, ao sairdes daqui, levareis somente cinzas. Afinal de contas, estas nossas investigações tem por fim libertar nos de todas estas terríveis complicações, dar-nos na vida algo mais do que apenas conflito, medo, fadigas e tédio.
Onde não existe o medo, está a beleza — não a beleza de que falam os poetas, aquela que os artistas pintam etc., porém coisa bem diferente. E para descobrir a beleza, um homem terá de conhecer esse isolamento completo — ou, melhor, não terá de conhecê-lo, pois ele já existe. Vós fugistes dele, mas ele continua existente e vos segue sempre. Ele lá está, em vosso coração e em vossa mente, nos mais profundos recessos de vosso ser. Vós o encobristes, fugistes dele; mas ele continua existente. E a mente tem de passar por ele, como quem se submete à purificação pelo fogo. Ora, pode a mente passar por ele sem reação, sem dizer que é um estado horrível? No momento em que há reação, torna-se existente o conflito. Se vós o aceitais, continuareis debaixo de seu peso; e se o rejeitais, tomareis a encontrá-lo na primeira volta do caminho. A mente, pois, tem de passar por ele. Estais-me acompanhando? A mente é então aquela solidão, não precisa de passar por ela; ela é a solidão. Quando pensais em termos de “passar por uma coisa” para alcançar outra, já estais em conflito. No momento em que dizeis: “De que maneira devo passar pela solidão, de que maneira devo olhá-la?” — nesse momento já vos achais de novo em conflito.
Existe, pois, vazio, uma solidão extraordinária que nenhum Mestre, nenhum guru ou idéia, nenhuma atividade poderá afastar de vós. Já andastes “mexendo” com essas coisas, já vos entretivestes com todas elas; mas elas não podem preencher esse vazio; ele é um abismo sem fundo. Mas deixa de ser esse “abismo sem fundo” no momento em que o experimentais. Compreendeis?
Para que a mente possa ficar inteiramente livre de conflito, total e completamente livre de apreensão, medo e ansiedade, torna-se necessário o experimentar desse extraordinário sentimento de não relação com alguma coisa; daí provém o sentimento de solidão. Não imagineis que já o tendes; isso é muito difícil. Só quando temos esse sentimento de solidão em que não há medo é que existe o movimento para o imensurável; porque então não há ilusão, não há fabricante de ilusão, não há o poder de criar a ilusão. Enquanto existe conflito, existe o poder de criar ilusão; e com a total cessação do conflito, o temor deixa de existir completamente, e, portanto, não há mais buscar.
Não sei se compreendestes. Afinal, todos vós estais aqui porque andais a buscar. E se examinardes isso, que é que estais buscando? Estais em busca de algo existente além de todo esse conflito, miséria, sofrimento, agonia, ansiedade. Buscais uma saída. Mas, se se compreende isso de que estivemos falando, cessa então toda a busca — e esse é um extraordinário estado mental.
Como sabeis, a vida é um processo de desafio e reação, não? Temos o desafio exterior: o desafio da guerra, da morte, de dúzias de coisas diferentes, e reagimos. O desafio é novo, mas todas as nossas reações são sempre velhas, condicionadas. Não sei se isto está claro. Para reagir ao desafio, eu preciso reconhecê-lo, não? E se o reconheço, é porque o interpreto em termos do passado; portanto, ele é “o velho”, evidentemente. Vede bem isso, por favor, porque desejo ir um pouco mais longe.
Para o homem que vive muito interiormente, os desafios exteriores perderam toda a importância; mas ele continua a ter seus desafios e reações interiores. Porém, eu estou falando a respeito da mente que já não busca, e, portanto, já não tem desafio e reação. E este não é um estado de satisfação, de contentamento, um estado de placidez qual a de uma vaca. Quando compreendemos o significado do desafio e da reação exteriores, e o significado do desafio interior que apresentamos a nós mesmos, e a respectiva reação, e rapidamente passamos por tudo isso — sem levarmos nisso meses e anos — a mente, então, já não está sendo moldada pelo ambiente; já não é influenciável. A mente que passou por essa extraordinária revolução pode enfrentar todo e qualquer problema, sem que nenhum problema deixe marca nem raízes. Desapareceu, então, todo sentimento de medo.
Não sei até que ponto percebestes o que estive explicando. Notai que escutar não significa apenas ouvir; escutar é uma arte. Faz parte do autoconhecimento; e se uma pessoa escutou realmente, e penetrou profundamente em si mesma, isso é uma purificação. E o que foi purificado recebe uma bênção que não é a bênção das igrejas.
Krishnamurti - 18 de maio de 1961 – Do livro: O PASSO DECISIVO - Cultrix