🔥 Introdução
Num comentário feito num vídeo em
nosso canal, em que falamos da dor que o despertar espiritual traz, o confrade
nos trouxe uma pergunta interessante: É possível não mais despertar, após o
despertar?
Essa pergunta — “É possível não mais
despertar depois de despertar?” — carrega uma densidade existencial profunda.
Para nós, já se mostrou como
fato, não ser possível “des-despertar” no sentido pleno. Uma vez
que o indivíduo vê, a opção de voltar ao sonambulismo voluntário se
torna um tormento. Mas é possível — e até comum — alimentar o desejo de
não ter despertado.
🔥 O despertar espiritual
não é um prêmio.
Não é um evento glamoroso. É um cataclisma.
Ele desmonta nossas incertas certezas emprestadas, desintegra muito do que
antes nos identificávamos e expõe o vazio por trás dos relacionais, escancara
nossas máscaras sociais.
Em resultado, surge a dor: Você
percebe que o antigo modo de se relacionar, de estar em sociedade, não cabe
mais em lugar algum. Mas o “novo estado de ser”, a nova capacidade de perceber
a realidade, ainda não tem morada.
🌒 Então, o que acontece?
São muitos os
confrades tentam voltar a dormir, buscando por várias formas de
distrações e passatempos. Tentam fugir de seus conflitos pessoais através do
trabalho, esportes, relacionamentos, consumo, narcotização química ou até com mecânicas
práticas espirituais que não resultam em nada mais que uma falsa
respeitabilidade grupal.
Tentam
reencenar a vida anterior com mais cinismo ou cansaço. Se anestesiam porque não
suportam a o peso de viver lucidamente em meio de ambientes onde todos dormem o
sono capital.
Mas... é
como tentar dormir com uma sirene acesa dentro do peito.
💡 O despertar é um ponto
sem retorno.
Mesmo que o indivíduo queira
esquecer, permanece um “eco de verdade” que não se apaga. Mesmo que ele se
esconda no barulho do mundo, algo nele já sabe que é só teatro com
desgastado roteiro. E isso... é o que mais inquieta.
Nesse teatro, é possível
fingir que não se despertou. Mas não é possível voltar a ter a antiga e
condicionada percepção da realidade de antes do despertar, porque, a
inocência se foi. O olhar mudou. E mesmo o silêncio forçado, agora, grita.
❖ 1. O DESPERTAR COMO RUÍNA
Despertar não é conquistar um
topo. É colapsar um edifício inteiro de ilusão. O indivíduo não
acorda numa luz celestial com harpas tocando. Ele acorda no meio dos
escombros — da sua identidade, das suas identificações, dos seus
apegos, dos seus enredos partidários, dos seus sentidos herdados de propósito
existencial.
E esse colapso não se reconstrói
com os tijolos antigos. Não se “volta atrás” como quem desinstala um aplicativo
do celular.
É como morder o fruto proibido da
percepção incondicionada. O indivíduo viu. Viu-se imerso na atemporalidade. Sentiu-se
um com tudo que é. Percebeu a ilusão da percepção espaço-tempo.
❖ 2. A TENTAÇÃO DO RETROCESSO
Mas há dias em que o preço do
despertar parece alto demais. E aí surge a pergunta oculta por trás da
original: “Eu posso, por favor, voltar a dormir… só mais um pouco?”
E é claro,
a sociedade capital lhe oferece uma vasta variedade de anestesias, entre elas,
buscar por novos investimentos, sustentar relacionamentos baseados em papéis,
em protocolos cronológicos. Promessas espirituais de salvação fácil. Rituais
automáticos com roupagem sagrada. Distrações hiperconectadas.
A
consciência tenta regredir. Mas a regressão é sempre artificial. É como um
adulto tentando caber num berço. Pode até deitar… mas o corpo não cabe mais.
❖ 3. A MEMÓRIA DO DESPERTAR
Mesmo que o
indivíduo tente ignorar ou reprimir o que viu, há uma “memória
vibracional” do despertar que continua viva. Ela é sutil, mas
insistente. Ela volta no silêncio das madrugadas, na inquietação diante da
superficialidade, no desconforto com mentiras que antes eram normais e na
repulsa por certas “alegrias” que agora soam artificiais.
Essa
memória é como uma brasa debaixo da pele. Não vira cinza.
Não apaga com distração.
❖ 4. A ILUSÃO DA NORMALIDADE
Muitos que despertam tentam, por
um tempo, retornar à aparência de normalidade, com sorrisos nas festas
ou nos almoços de domingo. Fingir interesse em conversas rasas. Postar
fotos alegres enquanto gritam por dentro.
Aceitar empregos, títulos e metas que agora soam absurdas.
Mas em tudo isso, algo já quebrou
por dentro — e essa quebra é irreversível. Não importa quanto o indivíduo
disfarce: no mais fundo de si, ele sabe que é tudo teatro.
❖ 5. O VERDADEIRO IMPASSE
O impasse do despertar é este: "Agora
que eu vi a verdade nua, crua e de modo cortante, o que faço com ela numa fragmentada
sociedade capital, que dorme, e o pior, nem desconfia que dorme?"
É aqui que muitos travam. Alguns
desistem. Outros adoecem. Outros ainda se isolam. Mas alguns — poucos —
atravessam esse deserto. E constroem uma vida silenciosamente lúcida, sem
pretensão de salvar o mundo. Sem buscar aceitação.
Apenas sendo farol, para os mais sensíveis, em meio à névoa dos apelos de
consumo ilusório.
❖ Definitivamente não. Não é
possível não mais despertar após o despertar.
O corpo pode até simular o sono. Mas
a qualidade da observação, já não cabe mais na noite. A pergunta verdadeira não
é “posso voltar atrás?”, mas sim, “Como sigo viver com o peso — que surgiu da
bem-aventurança — de ver o que vi?”
E isso… já é outra história. Mas
o indivíduo começar aceitando a solidão como ponte para a maturidade. A viver
sem garantias, sem retornos, mas com inteireza interna. Deixando de buscar
respostas e começando a viver as perguntas.
Finalizamos com uma poesia e
com o desejo de luz crua no caminhar do estimado ouvinte.
“Depois do Despertar”
Um dia
os véus caem.
e o que era chão
vira abismo.
não há música,
não há anjos,
só o eco da lucidez
doendo nos ossos.
você vê.
e ao ver,
desaprende a dormir.
mas dias virão
em que a claridade será peso.
e você desejará
com toda a alma cansada
nunca ter acordado.
sentirá saudade
do conforto da mentira.
da inocência programada.
do calor falso da caverna.
tentará voltar.
sim, tentará.
vestirá velhas peles,
sentará à mesa dos que ainda sonham,
rirá das mesmas piadas.
mas algo em você
permanece à margem.
um fio de silêncio
atrás do olhar.
um grito contido
em cada sorriso.
o mundo noturno já não te veste.
o sol é ferida,
mas também é bússola.
e você segue.
com a alma esfolada,
os olhos abertos,
e um vazio que não pede resposta,
mas presença.
porque depois do despertar,
não se vive mais para pertencer.
vive-se para não trair
aquilo que se viu.