Interiormente, psicologicamente, somos em geral muito vulgares, limitados, sob o peso de nossa ilustração e saber. E temos tantos problemas — problemas de relação, problemas que surgem em nossa vida de cada dia — o que se deve fazer e o que se não deve fazer, o que se deve crer e o que se não deve crer — interminável busca de conforto, segurança e de um meio de fuga ao sofrimento — temos tantos problemas que, se os víssemos todos, em conjunto, poderíamos perder as esperanças. Assim, evidentemente, o que se torna necessário, o desejável e essencial é uma mente nova; porque, em verdade, tudo o que tocamos faz surgir um novo problema.
Assim, como dissemos na última reunião, é necessária uma mente religiosa. E, sem dúvida, a mente religiosa é aquela que se depurou de todas as crenças e de todos os dogmas; esta mente é capaz de um percebimento, uma compreensão interior que dá uma certa tranqüilidade, serenidade. E, quando a mente está interiormente tranqüila, há intenso percebimento de tudo o que se passa fora dela. Isto por que, compreendendo todos os conflitos, frustrações, perturbações, agitações e sofrimentos interiores, ela está serena e, por conseguinte, exteriormente ela se torna intensamente ativa, com todos os sentidos bem despertos, capaz, portanto, de observar sem nada desfigurar, de seguir cada fato de maneira não tendenciosa.
A mente religiosa, pois, não só é capaz de observar as coisas externas com clareza, lógica e precisão, mas também, graças ao autoconhecimento, ela se tornou interiormente tranqüila, de uma tranqüilidade que tem seu movimento próprio. E dissemos que essa mente religiosa se acha, por conseguinte, num estado de revolução constante. Não estamos interessados em nenhuma espécie de revolução parcial, nenhuma revolução comunista, socialista ou capitalista. Os capitalistas, em geral, não desejam revolução alguma, mas os outros a desejam; e a revolução deles é sempre de natureza parcial — econômica, etc. Mas a mente religiosa promove a revolução total, não só interiormente, mas também exteriormente; e, no meu sentir, só a revolução religiosa, e nenhuma outra, pode resolver os múltiplos problemas da humana existência.
E que pode fazer essa mente? Que podemos fazer, vós e eu, como dois indivíduos, neste mundo monstruoso e insano? Não sei se já pensastes nisto, alguma vez. Que pode fazer uma mente religiosa?
Já explicamos com muita clareza que a mente religiosa não é a mente cristã, hinduísta ou budista, ou pertencente a alguma seita extravagante ou sociedade com fantásticas crenças e idéias; a mente religiosa é aquela que, tendo percebido interiormente sua própria validade, a verdade de suas percepções, sem desfiguração, é capaz de resolver lógica, racional e sãmente os problemas que surgem, não permitindo que nenhum deles crie raízes. Desde que deixamos um problema lançar raízes na mente, existe conflito; e onde há conflito, está presente o “processo” de deterioração, não só exteriormente, no mundo objetivo, mas também interiormente, no mundo das idéias, dos sentimentos, das afeições.
Que pode, então, fazer a mente religiosa? Provavelmente muito pouco. Porque o mundo, a sociedade é constituída de indivíduos ambiciosos, ávidos, “aquisitivos”, facilmente influenciáveis e que desejam pertencer a alguma coisa, crer em alguma coisa, filiando-se a certas correntes de pensamento e padrões de ação. Essas pessoas não podem ser modificadas senão pela influência, a propaganda, o oferecimento de novas formas de condicionamento. Mas a mente religiosa lhes diz que se despojem, interiormente, de tudo. Porque é só em liberdade que se pode descobrir o que é verdadeiro e se existe a Verdade, Deus. A mente que crê nunca descobrirá o que é verdadeiro ou se existe Deus; só a mente livre pode descobri-lo. E para sermos livres, temos de penetrar todas as servidões que a mente a si mesma impôs. Isto é dificílimo, pois requer muita penetração, exterior e interiormente.
Quase todos, sabemo-lo, andamos às voltas com o sofrimento. Sofremos de uma ou de outra maneira, física, intelectual, ou interiormente. Somos torturados e nos torturamos a nós mesmos. Conhecemos o desespero, e a esperança, e o medo sob todos os seus aspectos; e nesse vórtice de conflito e contradições, preenchimentos e frustrações, ciúmes e ódio, debate-se a mente. Aprisionada que está, sofre, e todos sabemos que sofrimentos são estes: o sofrimento ocasionado pela morte, o sofrimento da mente insensível, o sofrimento da mente muito racional e intelectual, que conhece o desespero, porque reduziu tudo a pedaços e nada mais lhe resta. A mente sofredora faz nascer várias filosofias do desespero; busca refúgio através de numerosas vias de esperança, confiança, conforto, através do patriotismo, da política, das argumentações verbais, das opiniões. E para a mente sofredora existe sempre uma igreja, uma religião organizada pronta a acolhê-la e torná-la mais embotada ainda, com suas promessas de consolo.
Conhecemos tudo isso; e quanto mais refletimos, tanto mais intensa a mente se torna e nenhuma saída se encontra. Fisicamente, é possível fazer algo contra o sofrimento, tomar uma pílula, procurar o médico, alimentar-se melhor, mas aparentemente nenhuma saída existe senão pela fuga. Mas a fuga torna a mente muito embotada. Ela poderá ser penetrante em seus argumentos, em suas defesas; mas a mente em fuga está sempre temerosa, porque precisa proteger a coisa em que se refugiou, e, evidentemente, tudo aquilo que protegemos, que possuímos, faz nascer o medo.
E, assim, o sofrimento continua; conscientemente, talvez, possamos afastá-lo, mas interiormente ele continua existente, corrompendo, putrefazendo. Mas podemos ficar livre dele, totalmente, completamente? Esta me parece a pergunta correta que se deve fazer; porque, se perguntamos “Como ficar livre do sofrimento?”, então, o “como” cria o padrão” do que se deve fazer e do que não se deve fazer”, e isso significa seguir por uma via de fuga, em vez de enfrentar o problema, a causa-efeito do próprio sofrimento. Assim, antes de começarmos a discutir, gostaria de investigar esta questão.
O sofrimento perverte e deforma a mente. O sofrimento não é o caminho da Verdade, da Realidade, de Deus (ou como quiserdes chamá-lo). Temos tentado enobrecê-lo, dizendo-o inevitável, necessário, alegando que traz a compreensão, etc. Mas a verdade é que, quanto mais intensamente uma pessoa sofre, tanto mais ansiosa se torna de fugir, de criar uma ilusão, de encontrar uma saída. Parece-me, pois, que a mente sã, saudável, deve compreender o sofrimento e ficar completamente livre dele. E isso é possível?
Ora, como compreender por inteiro o sofrimento? Não estamos tratando de uma única qualidade de sofrimento por que acaso estejais passando ou eu esteja passando; existem, como sabeis, muitas variedades de sofrimento. Mas estamos falando sobre o penar em geral, estamos falando da totalidade da coisa; e como compreender ou sentir o todo? Espero me esteja fazendo claro. Através da parte nunca é possível sentir o todo; mas, se se compreende o todo, a parte pode então ajustar-se nele e tornar-se, assim, significativa.
Ora, como se sente o todo? Entendeis o que quero dizer? Sentir, não apenas como inglês, mas sentir a totalidade da humanidade; sentir não apenas a beleza das paisagens da Inglaterra, que são realmente belas, porém a beleza de toda a Terra; sentir o amor total — não apenas o amor por minha mulher e meus filhos, mas o sentimento total de amor; conhecer o sentimento total da beleza, não da beleza de um quadro pendente da parede, ou de um sorriso num rosto belo, ou de uma flor, de um poema, porém aquele sentimento de beleza que transcende todos os sentidos, todas as palavras, toda expressão. Como sentir assim?
Não sei se alguma vez já vos fizestes esta pergunta. Porque, vede, satisfazemo-nos tão facilmente com um quadro na parede, com nosso jardim particular, uma árvore que num campo nos atrai a atenção. E como alcançar esse sentimento da inteireza da Terra e do céu, e da beleza da humanidade? Percebeis o que quero dizer — o sentimento profundo disso?
Prosseguirei examinando este tópico, se desejais seguir-me, mas deixemo-lo de parte, por enquanto. Deixemos a questão em “fervura”, em ebulição, e entremos numa diferente ordem de considerações.
A mente que está em conflito, em batalha, em guerra, interiormente, se torna embotada; não é uma mente sensível. Ora, que é que torna a mente sensível, não apenas para uma ou outra coisa, porém sensível como um todo? Quando é ela sensível não apenas para o belo, mas também para o feio, para tudo? Só o é, por certo, quando não há conflito; isto é, quando a mente está tranqüila interiormente e, por conseguinte, é capaz de observar todas as coisas exteriores com todos os seus sentidos. Ora, que é que gera o conflito? E existe conflito não apenas na mente consciente, exterior — a mente que está sumamente cônscia de seus raciocínios, seus conhecimentos, sua proficiência técnica, etc. — mas também a mente interior, inconsciente, a qual, provavelmente se acha no “ponto de fervura” a todas as horas. Que é, pois, que cria o conflito? Por favor, não respondais, porquanto a mera análise mental ou investigação psicológica não resolve o problema. O exame verbal pode mostrar intelectualmente as causas do sofrimento, mas nós estamos falando sobre o “estar de todo livre do sofrimento”. Cabe-nos, pois, experimentar ao mesmo tempo que falamos, sem nos deixarmos ficar no nível verbal.
O que cria o conflito é, obviamente, o “puxão” em diferentes direções. O homem que se deixou comprometer completamente com alguma coisa é, em geral, insano, desequilibrado; para ele não há conflito: ele é essa coisa. O homem que crê inteiramente numa dada coisa, sem duvidar, sem interrogar, que se identificou completamente com aquilo que crê — esse homem não tem conflito nem problema. Tal é mais ou menos o estado de uma mente doente. E a maioria de nós gostaria muito de identificar-se, de “comprometer-se” com alguma coisa de tal maneira que não houvesse mais problema algum. Em geral, por não termos compreendido o processo do conflito, só desejamos evitar o conflito. Mas, como já assinalamos, o evitar só produz mais sofrimentos.
Assim, percebendo tudo isso, faço a mim mesmo e, portanto, também a vós, esta pergunta: Que cria o conflito? E conflito implica não só desejos contraditórios, vontades, temores e esperanças contraditórias, mas tudo quanto é contradição.
Ora, por que existe contradição? Espero estejais escutando, através de minhas palavras, a vossas mentes e corações. Espero vos estejais servindo de minhas palavras como um portal através do qual estais observando, escutando a vós mesmos.
Uma das causas principais do conflito é a existência de um centro, um ego, “eu”, resíduo de todas as lembranças, todas as experiências, todos os conhecimentos. E esse centro está sempre tratando de ajustar-se ao presente ou de absorvê-lo: sendo o presente o hoje, cada momento de nosso viver, que envolve sempre desafio e reação. Está sempre a traduzir tudo o que encontra nos termos daquilo que já conhece. O que ele já conhece é todo o conteúdo de milhares de dias pretéritos, e com esse resíduo procura enfrentar o presente. Por conseguinte, ele modifica o presente, e nessa própria atividade modificadora alterou o presente, criando assim o futuro. E nesse processo do passado que traduz o presente e cria o futuro, se acha aprisionado o “eu”, o ego. E nós somos isso.
Assim, a fonte do conflito é o “experimentador” e a coisa que está “experimentando”. Não é assim? Quando dizeis “amo-vos” ou “odeio-vos”, existe sempre esta separação entre vós e aquilo que amais ou odiais. Enquanto houver separação entre pensador e pensamento, experimentador e coisa experimentada, observador e coisa observada, tem de haver conflito. Divisão é contradição. Ora, pode-se anular esta divisão ou separação, de modo que sejais o que vedes, sejais o que sentis?
Importa compreender, primeiramente, que enquanto há divisão entre pensador e pensamento, tem de haver conflito, porque o pensador está sempre tentando fazer alguma coisa em relação ao pensamento, procurando alterá-lo, modificá-lo, controlá-lo, dominá-lo, tentando tornar-se bom, não ser mau, etc. Enquanto perdurar a divisão geradora de conflito, tem de haver esta agitação da existência humana, não só internamente, mas também externamente.
Ora, existe pensador separado do pensamento? Está clara esta pergunta? O pensador é uma entidade separada, algo distinto, algo permanente, separado do pensamento? Ou existe só pensamento, o qual cria o pensador, porque assim poderá dar-lhe (ao pensador) permanência? Entendeis? O pensamento é impermanente, acha-se num constante fluir, e a mente não gosta desse estado de fluidez. Deseja criar algo permanente, em que possa ficar em segurança. Mas, se não há pensamento, não há pensador, há? Não sei se já alguma vez experimentastes isto, se já seguistes esta ordem de reflexões, ou investigastes inteiramente o processo do pensar e quem é o pensador. O pensamento declarou que o pensador é supremo, que existe a alma, o “eu superior”, conferindo assim ao pensador existência permanente — mas tudo isso continua a ser resultado do pensamento.
Assim, se observamos este fato, se o percebemos realmente, vê-se então que não há centro.
Notai, por favor, que isto pode ser muito simples de declarar, verbalmente; mas penetrar o fato, vê-lo, experimentá-lo, isto é muito difícil. No meu sentir, a fonte do conflito é esta separação entre o pensador e o pensamento. Esta separação cria conflito; e a mente em conflito não pode viver, no mais elevado sentido desta palavra: não pode viver totalmente.
Não sei se já notastes alguma vez que, quando tendes um sentimento muito forte, seja do belo, seja do feio, provocado do exterior ou despertado interiormente, nesse estado imediato de intenso sentir não existe, momentaneamente, observador, nem divisão. O observador só se apresenta quando o sentimento se atenuou. Entra então em ação todo o processo da memória: Dizemos: “Devo repetir este estado” ou “devo evitá-lo” — e tem início o processo do conflito. Podemos ver a verdade aí? E que entendemos por ver? Como vedes a pessoa que está sentada aqui, neste tablado? Não a vedes apenas visualmente, mas também intelectualmente; estais vendo a pessoa com vossa memória, vossas simpatias e antipatias, vossas diferentes formas de condicionamento; e, por conseguinte, não estais vendo, não é verdade? Quando vedes alguma coisa realmente, vós a vedes sem nada daquilo (condicionamento, simpatias, antipatias, etc.) É possível olharmos para uma flor sem lhe dizermos o nome, sem “colar-lhe” uma etiqueta: olhá-la, simplesmente? E não é possível, ao ouvirdes algo grato aos ouvidos — não apenas música organizada, mas o canto de uma ave na floresta, etc. — escutá-lo com todo o vosso ser? E pode-se, pela mesma maneira, perceber realmente uma coisa? Porque, se a mente é capaz de perceber, de sentir realmente, então só há experimentar e não existe experimentador; pode-se então ver que o conflito, com todas as suas angústias, esperanças, defesas, etc., termina.
Quando se percebe a verdade integral de uma coisa; ao vermos a verdade de que o conflito só pode cessar quando não há divisão entre o observador e a coisa observada; quando se experimenta realmente este estado, sem nos socorrermos da memória nem dos dias passados, então está terminado o conflito. Então seguis fatos e não estais tolhido pela divisão que a mente faz entre o observador e o fato.
O fato é: sou estúpido, estou cansado, preso na monótona rotina da existência diária. Isto é um fato, mas não gosto dele; por isso, há divisão. Detesto o que estou fazendo, e põe-se, assim, em movimento o mecanismo do conflito, com todas as defesas e fugas e sofrimentos que ocasiona. Mas o fato é que minha vida é feia, superficial, vazia, cruel, escrava dos hábitos.
Ora, se a mente não criar esse senso de divisão e, por conseguinte, conflito, pode então seguir simplesmente o fato; seguir toda a rotina, todos os hábitos; seguir tudo, sem procurar alterar nada? Isto é percepção, no sentido em que estamos empregando a palavra. E vereis que o fato nunca é estático, nunca se acha imóvel. É uma coisa que se move, uma coisa viva; mas a mente preferiria torná-lo estático e daí é que vem o conflito. Eu vos amo, desejo apegar-me a vós, possuir-vos; mas vós sois uma coisa viva, que se modifica, com existência própria; por isso, existe conflito e todos os sofrimentos dele decorrentes. E pode a mente ver o fato e segui-lo? Isso, em verdade, significa uma mente muito ativa, muito viva, muito intensa, exteriormente, e ao mesmo tempo muito tranqüila interiormente. A mente que no interior não está de todo quieta não pode seguir um fato, pois este é muito rápido. Só a mente interiormente tranqüila é capaz desse “processo”, capaz de seguir continuamente cada fato que se apresenta, sem dizer que o fato devia ser “deste jeito” ou “daquele jeito”, sem criar separação, conflito, sofrimento: só essa mente pode cortar todas as raízes do sofrimento.
Podeis ver, então, se alcançastes este ponto — não no espaço e no tempo, mas na compreensão — que a mente entra num estado em que se vê completamente só.
Como sabeis, para a maioria de nós “estar só” é uma coisa terrível. Não me refiro aqui solidão, que é coisa diferente. Refiro-me ao “estar só”: estar só com alguém ou com o mundo: estar só com um fato. Só, no sentido de que a mente não está sujeita a influências, já não se acha presa ao passado, nem tem futuro, nem busca, nem teme: está só. O que é puro está só; a mente que está só conhece o amor, porque já não se enreda nos problemas do conflito, do sofrimento e do preenchimento. Só essa mente é uma mente nova, uma mente religiosa. E, talvez, só ela pode curar as feridas deste mundo caótico.
Krishnamurti – Do livro: O PASSO DECISIVO – Ed. Cultrix