Parece-me que neste nosso mundo atual, onde vemos tanta confusão, aflição e agitação, são necessárias a mente científica e a mente religiosa. Estes dois, sem dúvida, são os únicos estados mentais reais; pois não é real o estado da mente que crê, da mente condicionada, quer pelo dogma do cristianismo, do hinduísmo, quer por qualquer outra crença ou religião. Afinal, temos problemas imensos e a vida se tornou muito mais complexa. Exteriormente, talvez haja um maior sentimento de segurança, o sentimento de que talvez não tenhamos guerras atômicas no futuro, dado o terror que inspiram. Sente-se que, conquanto possa haver guerra em data remota, não será na Europa; e, assim, podemos sentir-nos mais seguros, física e emocionalmente.
Mas, parece-me, a mente que busca segurança se torna embotada, medíocre; e, em tais condições, ela é incapaz de resolver seus próprios problemas.
Assim, para vivermos neste mundo — com suas rotinas, seu tédio, a existência superficial da classe média, da classe superior ou da inferior — e resolvermos os nossos problemas, ultrapassá-los, penetrar profundamente em nós mesmos, só há dois caminhos: o científico ou o religioso. O “caminho” religioso inclui o científico, mas o científico não contém em si o religioso. Mas necessitamos do espírito científico, uma vez que este é capaz de examinar rigorosamente todas as causas da miséria humana; o espírito científico poderá promover a paz mundial, objetivamente — alimentar a humanidade, dar-lhe casas para morar, roupas etc. — não apenas aos ingleses ou aos americanos, mas a todo o mundo. Não se pode viver na prosperidade numa extremidade da terra, enquanto na outra extremidade existe degradação, doença, fome e esqualidez. Talvez a maioria de vós ignoreis isso, mas o deveis saber. Para se resolverem todos esses imensos problemas, perceber toda a estupidez do nacionalismo, dos conchavos políticos, das ambições, da avidez de poder, necessita-se do espírito científico. Mas, infelizmente, como se vê, o espírito científico está agora interessado em viagens à Lua ou mais além, em aumentar nossos confortos com geladeiras melhores, carros melhores, etc. Isto está certo, de modo geral, mas afigura-se-me um ponto de vista muito limitado.
Sabemos o que é “espírito científico”: espírito de investigação, nunca satisfeito com seus achados, sempre variável, nunca estático. Foi o espírito científico que criou o mundo industrial; mas esse mundo industrial, sem revolução interior, produz uma medíocre maneira de viver. Sem essa revolução interior, todas as glórias e belezas da chamada vida intelectual só podem tornar a mente mais embotada, mais contentada, satisfeita, segura. O progresso em certos sentidos é essencial, mas também destrói a liberdade. Não sei se já notastes que, quanto mais coisas tendes, tanto menos sois livres. E, por isso, os homens religiosos do Oriente têm dito: “Renunciemos às coisas materiais, pois não importam. Busquemos a outra coisa; mas eles não acharam também essa “outra coisa”. Sabemos, pois, mais ou menos, o que é espírito científico — o espírito que existe no laboratório. Não me refiro ao cientista como indivíduo; este é provavelmente igual a vós e a mim, entediado da existência de cada dia, avarento, ávido de poder, posição, prestígio.
Agora, muito mais difícil é averiguar o que é espírito religioso. Como proceder, quando se deseja descobrir algo verdadeiro? Queremos saber o que é espírito religioso — não esse estranho espírito que prevalece nas religiões organizadas, porém o genuíno espírito religioso. Como proceder?
Só se começa a descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso por meio do pensar negativo, porquanto, para mim, o pensar negativo é o pensamento em sua forma mais elevada. Entendo por pensar negativo aquele que despreza, que rompe e destroça as coisas falsas construídas pelo homem para sua própria segurança, seu sossego interior; que destroça todas as defesas e o mecanismo de pensamento construtor dessas defesas. É preciso destroçar tudo isso, ultrapassá-lo, rapidamente, celeremente, para ver se algo existe além. E o ultrapassar dessas coisas falsas não é uma reação ao que existe. Certo, para descobrirmos o que é o espírito religioso e dele nos abeirarmos negativamente, precisamos ver no que cremos, e porque cremos, porque aceitamos todos os inumeráveis condicionamentos que as religiões organizadas do mundo inteiro impõem à mente humana. Por que credes em Deus? Por que não credes em Deus? Por que tendes tantos dogmas e crenças?
Direis, porventura, que se ultrapassarmos todas essas chamadas estruturas positivas atrás das quais a mente se abriga, ultrapassá-las sem desejar encontrar algo mais — nada mais restará senão desespero. Mas eu acho que temos de passar também pelo desespero. Só existe desespero quando há esperança — a esperança de nos pormos em segurança, permanentemente confortados, perpetuamente medíocres, perenemente felizes. Para a maioria de nós, o desespero é reação à esperança. Mas, para se descobrir o que é o espírito religioso, acho que essa investigação deve realizar-se sem nenhuma provação, nenhuma reação. Se vossa busca é apenas uma reação — porque desejais mais segurança interior — nesse caso vossa busca visa apenas a um conforto maior, seja numa crença, numa idéia, seja no conhecimento, na experiência. E a mim me parece que tal modo de pensar nascido da reação só pode produzir mais reações, e, por conseguinte, não oferece a libertação do processo de reação que impede o descobrimento. Não sei se está claro o que estou dizendo.
Deve haver uma maneira negativa de proceder, e isso significa que a mente necessita tornar-se cônscia do condicionamento imposto pela sociedade, em relação à moralidade; cônscia das inumeráveis sanções impostas pela religião; e cônscia, também, de como, rejeitando essas imposições exteriores, cultivamos certas resistências internas, crenças conscientes e inconscientes, baseadas na experiência, no conhecimento, e que se tornam fatores diretores.
Assim, para descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso, a mente deve achar-se num estado de revolução, e este significa a destruição de todas as coisas falsas que lhe foram impostas, seja por pressão externa, seja por ela própria; pois a mente está sempre em busca da segurança.
Afigura-se-me, pois, que o espírito religioso encerra esse constante estado mental que nunca constrói para sua própria segurança. Por que se a mente constrói com essa ânsia de segurança, então ela fica vivendo atrás de seus próprios muros e, portanto, é incapaz de descobrir algo novo.
Por conseguinte, a morte, a destruição do “velho”, é necessária: destruição da tradição, libertação total do que foi, abandono das coisas acumuladas como memória através de séculos. Então, direis, por ventura: “Que mais resta? Tudo o que sou é constituído por todo esse conjunto de fatos, essa “história”, a experiência; se tudo isso desaparece, se apaga, que resta?” — Em primeiro lugar, pode-se apagar tudo isso? Podemos falar a esse respeito, mas é verdadeiramente possível apagá-lo? Eu digo que é possível — mas não por influência ou coerção, pois isso é insensatez, falta de maturidade. É possível, se o penetrarmos profundamente, afastando de nós toda autoridade. E esse “limpar da lousa” — que significa morrer todos os dias e de momento em momento, para as coisas acumuladas — requer abundante energia e profundo discernimento; e isso faz parte do espírito religioso.
Outra parte do espírito religioso é o “espírito-força”, que inclui a ternura e o amor. Estou tentando expressar-me por meio de palavras, mas tende a bondade de não vos contentardes com palavras, apenas. Eu disse que outra parte do espírito religioso é a força proveniente do amor. E com a palavra “força” quero referir-me a algo completamente diferente do impulso para ser poderoso, do desejo de dominação, controle; do poder que a abstinência confere; ou do poder de uma mente sagaz, cheia de ambição, avidez, inveja, ávida de perfeição. Este poder é maligno. O domínio de uma pessoa sobre outra, o poder do político, o poder de influenciar outros para pensarem de certa maneira, seja exercido pelos comunistas, pelas igrejas, seja pelos sacerdotes ou pela imprensa — este poder, para mim, é extremamente nocivo. Estou-me referindo a coisa muito diferente, tanto em grau como em qualidade, algo sem nenhuma relação com o poder dominador. Existe essa força, esse poder, uma coisa “exterior”, não produzida por nossa vontade ou desejo. Nesse poder reside aquela coisa extraordinária que é o amor; e este faz parte do espírito religioso.
O amor não é sensual; nenhuma relação tem com a emoção; não é reação ao medo; não é amor materno, amor conjugal etc.
Segui bem isso, por favor, penetrai-o, sem nada aceitar, nem rejeitar, pois estamos jornadeando juntos. Direis, talvez: “Um tal amor, um tal estado mental não baseado em lembrança, é impossível”. Mas eu acho que ele pode ser encontrado. Encontramo-lo por vias obscuras, ao investigarmos no seu todo o processo do pensamento, as peculiaridades da mente. E um poder existente por si só; é energia não causada. Difere inteiramente da energia gerada pelo “eu” em sua ânsia de alcançar as coisas que deseja. E aquela energia existe, mas só será encontrada pela mente livre, não vinculada ao tempo e ao espaço. Nasce aquela energia quando o pensamento — como experiência, conhecimento, como “ego”, centro — o “eu” — gerador de sua própria energia, volição e concomitantes pesares, aflições etc. — se dissolve. Dissipado esse centro, manifesta-se aquela energia, aquela força que é o amor.
E há, também, outra camada da mente religiosa que é movimento — movimento não dividido em exterior e interior. Tende a bondade de seguir isso por instantes. Conhecemos os movimentos exteriores, objetivos; e desse conhecimento resulta uma reação que chamamos movimento interior, um afastamento do exterior, renúncia ao exterior, ou, também, aceitação dele como inevitável, resistência a ele pelo cultivo de uma reação de “movimento interior”, com suas crenças, experiências etc. Existe o movimento para o exterior, o impulso para fora — ser ambicioso, ávido etc.; e quando esse movimento falha, nos voltamos para o interior. Não se busca a verdade quando a mente é feliz. Quando a mente se acha contentada, deleitada, tamanha é sua própria vitalidade que não precisa murmurar, sequer, o nome de Deus. Só quando nos sentimos infelizes, quando as coisas exteriores falharam, quando já não temos êxito, quando temos desgostos domésticos, quando há morte, conflito etc., só então nos voltamos para o interior, como costumam fazer os velhos. Nunca recorremos à religião quando somos jovens, porque então as nossas glândulas estão funcionando “a toda velocidade”. Encontramos satisfação no sexo, na posição, no prestígio, no dinheiro, na fama etc. Quando essas coisas começam a falhar-nos, só então nos voltamos para o interior; ou, se ainda somos jovens, nos tornamos beatniks (seita de “intelectualistas”). Tudo isso é reação: e revolução não é reação.
Ora, se se percebe com toda a clareza a verdade contida em tudo isso, ocorre então um movimento que é tanto exterior como interior; não há divisão. E um movimento: movimento que consiste em ver as coisas exteriores precisa, clara e objetivamente, tais como são; e esse mesmo movimento se verifica também interiormente, não como reação, porém como o movimento das marés, que é o fluxo e refluxo das mesmas águas. O movimento para fora significa ter os olhos, os sentidos, todo o nosso ser, abertos, vivos. E o movimento para dentro é o fechar dos olhos — emprego esta expressão como meio de comunicação; ninguém precisa ficar de olhos fechados. O movimento para dentro é a visão interior. Depois de compreender o exterior, os olhos se voltam para dentro; mas não como reação. E a visão interior, a compreensão interior significa quietude, tranqüilidade, completas; porque nada mais há para buscar, para compreender.
Não gosto de empregar a palavra “interior”, mas espero tenha mos entendido. Esse estado interior é que é criação. Ele nada tem em comum com o poder humano de inventar, de produzir coisas, etc.
É o estado de criação. Esse estado de criação só se manifesta quando a mente compreendeu a destruição, a morte. E só quando a mente vive esse estado de energia, que é amor, só então há criação.
Agora, a parte nunca é o todo. Temos descrito as partes; mas os raios de uma roda não constituem a roda, embora a roda contenha os raios. Não podemos alcançar o todo por meio de uma parte. O todo só pode ser compreendido ao perceber-se tudo o que estivemos dizendo sobre as várias partes da mente religiosa. Ao terdes esse percebimento total, então, nesse sentimento total está incluída a morte, a destruição, o sentimento de força pelo amor, e a criação. E isso é a mente religiosa. Mas para alcançar esse estado religioso, a mente deve ser precisa, pensar com clareza, logicamente, nunca aceitando as coisas externas ou as coisas internas que para si mesma criou, como conhecimento, experiência, opinião, etc.
Vemos, pois, que a mente religiosa encerra em si a mente científica; mas a mente científica não contém a mente religiosa. O mundo vem tentando consorciar as duas, mas isso é impossível; assim sendo, tratarão de condicionar o homem para aceitar a separação. Mas esta mos falando de coisa totalmente diferente. Estamos tentando uma jornada de descobrimento, e isso significa que tendes de descobrir. Aceitar o que se está dizendo não tem valor algum, pois, assim, estais de volta à velha rotina, sois escravos da propaganda, da influência e tudo o mais.
Mas, se empreendestes também a jornada e sois capazes de descobrir, vereis então que podeis viver neste mundo; então, as agitações deste mundo têm significação. Porque, neste conteúdo total, neste sentimento total, há ordem e desordem. Não é assim? É preciso destruir, para criar. Mas não é a destruição à maneira dos comunistas. A desordem, se podemos empregar tal palavra, existente na mente religiosa, não é o contrário da ordem. Sabeis como gostamos da ordem. Quanto mais burgueses somos, quanto mais limitados e medíocres, tanto mais amamos a ordem. A sociedade precisa de ordem; quanto mais corrupta se torna, tanto mais deseja ordem. E o que querem os comunistas: um mundo em perfeita ordem. E nós outros desejamos a mesma coisa: temos medo à desordem. Compreendei, por favor, que não estou advogando um mundo em desordem; não estou absolutamente empregando a palavra “desordem” em sentido reacionário. A criação é desordem; mas essa desordem, sendo criadora, contém a ordem. Isto é muito difícil de transmitir. Percebeis?
A mente religiosa, pois, não é escrava do tempo. Onde existe o tempo — ontem, com todas as suas lembranças, movendo-se através de hoje e criando, assim, o futuro e condicionando a mente — não existe aquela desordem criadora. A mente religiosa, portanto, é uma mente que não tem futuro, não tem passado, e tampouco não está vivendo no presente, compreendido como oposto de ontem e de amanhã, porquanto nesta mente religiosa não está contido o tempo. Não sei se estais entendendo.
A mente, pois, pode alcançar aquele estado religioso. Estou empregando a palavra “religioso” com um novo sentido, indicando algo não relacionado com as religiões do mundo, todas elas mortas, moribundas, decadentes. Assim, a mente religiosa é aquela que só pode “viver com a morte”, com a extraordinária e poderosa energia do amor. Não traduzais isto. Não façais perguntas sobre o “amar um” ou “amar todos”; isto é infantil. Só a mente religiosa pode voltar-se para dentro; e esse “voltar-se para dentro” não está em relação com o tempo e o espaço. É ilimitado, infinito, não pode ser medido por uma mente aprisionada no tempo. E só a mente religiosa resolverá os nossos problemas, porque ela não tem problemas. E só a mente que não tem problemas, uma mente realmente religiosa, pode resolver todos os problemas. Essa mente, por conseguinte, está em relação íntima com a sociedade; mas a sociedade não está em relação com ela.
Assim, no sentido da palavra “religioso”, é necessária uma revolução em cada um de nós — revolução total e não parcial. Toda reação é parcial; e a revolução a que nos referimos não é parcial e, sim, uma coisa total. E só essa mente pode ter intimidade com a Verdade. Só essa mente pode ter “amizade” com Deus — ou o nome que preferirdes. Só essa mente pode participar da Realidade.
Krishnamurti – Do livro: O PASSO DECISIVO – Ed. Cultrix