(...) Nesta tarde vamos conversar sobre a questão da morte. Porque é a morte o que mais tememos, a maioria de nós; tratamos de evitá-la, não queremos pensar nela, consideramo-la um assunto desagradável, que devemos afastar de nós, colocar à margem. Porque a morte nos aterroriza, temos uma crença — crença na ressurreição, numa continuidade, na imortalidade, na reencarnação. Mas, essa crença não resolve o problema do medo. Estão dizendo os cientistas que o homem pode viver indefinidamente. provavelmente encontrarão meios e modos de prolongar a vida humana. Mas, esse prolongamento não resolverá o problema do temor.
E a sociedade, o ente humano que não resolveu esse problema da morte, tem uma existência muito superficial. Porque se há morte, aniquilamento, destruição, o fim de tudo, o indivíduo atravessa então como pode sua existência de aflições e ansiedades, e a vida, por conseguinte, se torna inteiramente sem significação; é isso o que está sucedendo no mundo moderno. Muitas civilizações já tentaram resolver o problema da morte.
E por não sermos capazes de compreendê-la, tratamos de inventar teorias que nos pareçam satisfatórias e nos proporcionem conforto e consolação... Todo ente humano, não importa quanto tempo viva, existe sempre a questão da morte. A menos que ele a compreenda, que entre em contato direto com essa questão, esse problema, sua vida será e permanecerá sempre muito superficial. E a mente superficial procura dar significação ao viver por meio de seu condicionamento, de seu ambiente, da sociedade em que se desenvolveu...
Há, pois, a questão do medo da morte. Ora, para compreendê-la, o indivíduo tem de estar livre de todas as crenças, de todas as ideias de reencarnação ou ressurreição ou imortalidade pessoal. Nada se sabe a esse respeito. Se alguma coisa sabeis, trata-se de uma tradição, de um condicionamento verbal. Nunca entrastes diretamente em contato com a morte ou o medo relativo a esse fato. E, como disse, urge que o ente humano que vive neste mundo medonho, brutal, aterrador, com as suas guerras e antagonismos, urge que ele compreenda esse fato. Do contrário, a vida não terá nenhum significado. Frequentar um escritório diariamente, nos próximos vinte, trinta, quarenta anos, fazer repetidamente a mesma coisa desinteressadamente, gerar uns poucos filhos e viver perpetuamente em conflito consigo mesmo — isso nada significa. Quanto mais intelectual o indivíduo, quanto mais conhecedor do mundo, dos fatos que estão ocorrendo, tanto mais procura ele fugir da superficialidade mediante a bebida, divertimentos variados, o inventar uma filosofia, ou reverter à filosofia de um certo livro. É necessário, pois — se desejais tornar a vida uma coisa significativa, se desejais dar a vida significação, riqueza, plenitude, fazê-la completa —é necessário que compreendais esta questão do medo e da morte.
(...) Assim, para se compreender esta questão da morte, devemos libertar-nos do medo, que inventa várias teorias sobre vida futura, imortalidade, reencarnação. Os que vivemos no Oriente dizemos que há reencarnação, que há renascimento, uma renovação constante, infinita, que existe o que se denomina "alma". Agora, escutai com atenção.
Existe essa coisa? Gostamos de pensar que existe, dá-nos prazer de pensá-lo, pois trata-se de uma coisa que colocamos além do pensamento, além das palavras, além de tudo; uma coisa eterna, espiritual, imperecível; a ela, naturalmente, se apega o pensamento. Mas, existe essa coisa, essa alma, essa entidade, além do pensamento, entidade não inventada pelo homem, não formada por sua mente sutil? Porque a mente percebe que há enorme incerteza, confusão, e nada de permanente na vida, nada, absolutamente nada. Vossas relações, vossa esposa, vosso marido, vosso emprego — nada de permanente! Assim sendo, ela precisou inventar uma certa coisa permanente, a que chamou "alma". Mas, visto que a mente pode conceber essa coisa, também pode fazê-lo o pensamento; e já que o pensamento pode concebê-la, ela se acha na esfera do tempo, naturalmente. Se posso conceber uma coisa, essa coisa faz parte do pensamento. E meu pensamento resulta do tempo, da experiência, do conhecimento. A alma, portanto, está na esfera do tempo. Correto? Vede, por favor, não estamos aceitando nem rejeitando. Não estou fazendo propaganda de uma certa teoria, pois isso seria falta de madureza, infantilidade. estamos fazendo uma viagem de exploração. E essa exploração, se seguirdes passo a passo e penetrardes muito profundamente, poderá colocar-vos em contato com algo que vos fará medo.
Assim, a ideia da continuidade de uma alma que renascerá vezes sobre vezes, infinitamente, não tem significação nenhuma, porque é invenção da mente que sente medo, da mente que deseja duração, permanência, que deseja certeza, esperança. Assim, o homem se apega a àquela ideia e, portanto, irá ter muitas vidas e trabalhos sem fim. Mas isso significa, se credes na reencarnação, que é muito importante que vos comporteis bem nesta vida, porque na próxima tereis de responder pelo que fizestes. — Mas a quase ninguém interessa o "comportar-se bem" — que significa "atuar virtuosamente". Se crêsseis realmente na reencarnação, vossos atos, vossa maneira de pensar, de viver, vossa dureza e indiferença para com todos, desapareceriam, porque teríeis de pagar por tudo isso na próxima vida, teríeis de sofrer. Mas, em nada disso acreditais. Com efeito, não credes. Trata-se de uma simples ideia, uma ideia que pensais ser muito espiritual, mas que é puro contra-senso. Entretanto, permanece o fato que é o medo da morte, o qual no Ocidente inventou uma diferente forma de ressurreição, de continuidade, numa diferente esfera de renovação.
Há, pois, a questão do medo de uma coisa que desconhecemos e chamada "morte". Portanto, separamos a vida, o viver, da morte. E, assim, não compreendemos nem a vida nem a morte. Porque compreender a vida significa entranhar-se na vida, entrar em contato com a vida, que é avidez, inveja, brutalidade, ódio, guerras, fugas, bestialidade, ânsia de poder e de posição. É isso o que chamamos "vida". É essa a vida que viveis todos os dias, se sois sanyasi, se sois negociante, se sois artista. Há, internamente, uma certa coisa em efervescência. É essa coisa que chamamos "vida". Ainda não a compreendemos, ainda não nos livramos dela; não estamos livres de nossas ansiedades, de nosso "sentimento de culpa", de nossas agonias, e tampouco compreendemos essa imensidade que se chama "a morte". Não compreendemos o viver, nem compreendemos a enorme significação do morrer.
Ora, tendes de compreender o viver — o viver que não é batalhar, que não é estar em conflito, que não é deixar-se torturar ou torturar a si próprio a fim de achar Deus. O ser humano que se tortura para encontrar Deus não é digno de achá-Lo. Nunca achará Deus! Pela deformação, não se encontra a Verdade. necessitamos de uma mente lúcida, sã, racional, vigorosa, e não uma mente torturada, deformada.
Deveis, pois, ser livre, livrar-vos do medo à própria vida, livrar-vos de vossas ansiedades, de vossos conflitos, de vossa avareza, avidez, inveja, quer por causa de dinheiro, quer por causa de Deus. Se tudo isso deveis livrar-vos, para entrardes em contato direto com a vida; então, o viver está relacionado com o morrer. Peço-vos seguir o que vou dizer. Sem dúvida, o homem que não tem amor vive sempre no desespero; anda em contínua busca de autoridade, de posição, de prestígio; é invejoso, duro; esse homem não está vivendo. Não sabe o que é a vida. Só conhece sua mente insignificante — de político, de sanyasi, de negociante, de artista — essa mente pequenina, trivial, e suas tribulações. Nada mais conhece. Só quando estiver livre de sua mesquinhez, de seus temores, saberá ele o que é o viver. E quando souber o que é viver, saberá também o que é morrer. Pois nós separamos o viver do morrer, que, para nós, é chegar ao fim, psicológica e fisiologicamente. Pensamos estar vivendo. Nosso viver é penar. E se não findar nosso sofrimento, não haverá compreensão da morte.
temos, pois, de investigar por nós mesmos, e não porque outro nos diz que o devemos fazer. tendes sido nutrido e continuais a ser nutrido dos descobrimentos feitos por outros; estais escravizados pela tradição, pela autoridade, pelo medo; e não descobristes ainda, como ente humano, vivente neste mundo de torturas e sofrimento, não descobristes ainda o meio de colocar fim ao sofrimento. Dele só sabemos fugir — por meio da bebida, dos divertimentos, do sexo, do templo, da leitura — temos dúzias de vias de fuga. Mas, cumpre, entrar em contato com o sofrimento, e extingui-lo. Só a mente que coloca termo ao sofrimento pode ter sabedoria. E só quem está livre do sofrimento pode saber o que significa amar.
Nossa questão, pois, é esta: É possível vivermos neste mundo — agora, hoje, e não num futuro distante — livres do sofrimento e em contato com essa coisa que desconhecemos e que chamamos "morte"? O que tememos não é o desconhecido, porém perder o conhecido. Não achais? Não tendes medo da morte, do fim, mas temeis perder o que possuís, o que conheceis, vossa experiência, vossa família, vossos pequenos prazeres, vosso saber, vossa tecnologia, enfim, as coisas conhecidas. Dizeis: "Ora, aprendi tantas coisas, sei tantas coisas, e vem a morte e arrebata-me tudo". — Disso é que tendes medo, e não da morte, de sua sublime natureza. E que é isso a que estais apegado? O conhecido. E que é o conhecido? Vossa família, vossa casa, as ruas sujas e sem beleza; esforços, rivalidades, ansiedades; a rotina do escritório e a inevitável presença do "chefe". É só isso que conheceis e tendes medo de perder! Ora, soltar das mãos tudo isso, alegre e facilmente, com graça e beleza, significa "morrer para o conhecido". Sabereis então o que é morrer, conhecereis então o desconhecido.
(...) Morrer, pois, é morrer para as coisas que conhecemos, não apenas as desagradáveis, mas também as agradáveis. Bem que gostaríeis de afastar de vós, de morrer para a lembrança das dores e mágoas que sofrestes; mas gostaríeis de conservar a lembrança das coisas agradáveis, proporcionadoras de satisfação. Mas, colocar termo, morrer tanto para o prazer como para a dor, isso só será possível se aplicardes toda a vossa atenção a cada pensamento, cada sentimento. Atenção, e não contradição; não é citar aquilo de que "gosto" e aquilo de que "não gosto" — porém, tão-só, prestar atenção.
(...) Se a mente compreendeu a natureza do medo, a natureza da morte, e essa coisa extraordinária chamada "amor", se de fato compreendeu, o que não é verbalizar nem pensar a seu respeito, mas tê-las vivido, então, dessa compreensão, surge uma mente nova, uma mente ativa e ao mesmo tempo inteiramente silenciosa. Esse "processo" da compreensão da vida, da libertação de todas as nossas lutas, não futuramente, porém imediatamente, essa aplicação total da atenção — eis o que é meditação. Meditação não é ficar sentado a um canto, pegando no nariz e repetindo palavras estúpidas; isso não é meditação, absolutamente; é auto-hipnotismo. Mas a compreensão da vida, a libertação do sofrimento — de fato, e não verbal ou teoricamente: realmente — a libertação do medo e da morte exige silêncio da mente. Isso é meditação.
Krishnamurti — 18 de novembro de 1965
A Suprema Realização