Ora bem, por que existe o temor da morte? O temor da morte existe porque estamos apegados à continuidade. Estou
escrevendo um livro, e pode acontecer que eu morra amanhã, antes de concluí-lo;
estou juntando dinheiro, e posso morrer sem realizar o meu propósito; desejo
ardentemente ser alguma coisa e não sou. Temos, assim, o temor da morte. Haverá
temor da morte, enquanto houver o desejo de continuidade — continuidade de
ação, continuidade de caráter, continuidade de realização, continuidade de
faculdade, continuidade de uma conta bancária, de um nome, de uma família.
Enquanto houver o agente, que é a ação em busca de um resultado, há de haver continuidade,
e, portanto, o temor da descontinuidade; porque a morte pode não me deixar acabar
o livro, colocar fim à minha conta no banco, às qualidades, às características que
tenho cultivado. Tudo isso tem de acabar, e por isso existe o temor. Por
conseguinte, haverá medo da morte, enquanto houver continuidade.
Que acontece quando há esse senso
de continuidade? Não estamos discutindo se há continuidade ou não, mas sim a
ação que exerce na mente a ideia da continuidade. Já notaram o que acontece a
uma coisa que continua? Tudo o que continua está em estado de contínua
desintegração, não é verdade? Se vocês têm um problema que continua através de
um período de anos, causando-lhes constante preocupação, há desintegração, não
é verdade? Qualquer forma de continuidade, quer ignóbil, quer nobre, é um
processo de desintegração. Se percebemos essa verdade — que qualquer forma de
continuidade é um processo de desintegração — percebemos também a verdade
acerca do falso. Temos, portanto, a libertação do falso, o que significa viver constantemente
no presente, e não em continuidade; e cessa, por conseguinte, o temor da morte.
É só quando a mente está presa na rede da continuidade que há o temor da morte;
e só quando a mente reconhece que tudo o que continua nunca se renova, há
isenção do medo da morte. Como pode haver renovação enquanto há continuidade?
Só pode haver renovação quando há um findar, isto é, quando há morte. Não sei
se já notaram que quando liquidamos um problema, dá-se uma renovação; mas
enquanto o problema persiste, há decomposição. Não é possível viver cada dia,
cada minuto, acompanhando cada pensamento até à sua conclusão, para que ele não
seja continuado? Quer dizer, não é possível viver com a morte, morrendo momento
por momento? Só então se dá a renovação; porque só no terminar há renovação,
não na continuidade. A renovação e a continuidade são contraditórias. Na
continuidade, não há renascimento, não há renovação, nem criação, mas só no
findar. Quando um problema termina, um novo problema pode manifestar-se; mas no
intervalo entre dois problemas, há sempre renovação. E por conseguinte, não há
temor da morte.
Expressando-o diferentemente: a
morte é o estado de não continuidade, que é o estado de renascimento. A morte é
o desconhecido, porque é um findar, no qual há renovação. Mas uma mente que é
contínua não pode conhecer o desconhecido; só pode conhecer o conhecido, porque
só pode agir e mover-se no conhecido, que é o contínuo. Por conseguinte, o
conhecido, o contínuo, está sempre cheio de temor do desconhecido, da morte, na
qual, tão só, temos a renovação. No findar há renovação, e não na continuidade.
Por essa razão, o desconhecido nunca pode ser conhecido por intermédio do
contínuo. Por conseguinte, a morte permanece um mistério, porque nós sempre
procuramos conhece-la através do conhecido, através do contínuo. Se puderem
colocar fim a essa continuidade, dia a dia, momento por momento, verão que há
renovação; há morte, na qual há renovação. A morte, por conseguinte, não é
temível; porque no findar há renascimento, e na continuidade há decomposição,
desintegração. Pensem nisso a fundo, Senhores, e perceberão a sua beleza, a sua
verdade. Não é teoria, é um fato. O que tem fim tem renascimento; o que é
contínuo nunca conhecerá renovação. A morte é o desconhecido, e o que é
contínuo é o conhecido. O contínuo nunca pode conhecer o desconhecido e por
isso teme o desconhecido, perturba-se diante dele. A imortalidade não é o “eu”
continuado. O “eu” pertence ao tempo, é resultado do tempo. O que é imortal
está fora do tempo. Por conseguinte, não há relação entre o “eu” e o atemporal.
Gostamos de pensar assim, mas esse é outra emboscada que a mente nos prega. O
que é imortal não pode ser encaixado no mortal, não pode ser colhido na rede do
tempo. Só quando o “eu”, que é continuidade, que é tempo, chega ao fim,
alcançamos aquele estado que é imperecível, imortal. Afinal de contas, temos
terror à morte por força do hábito, porque o desejo busca a continuidade no
preenchimento. O preenchimento, porém, não tem fim, está sempre buscando outras
fontes de satisfação. O desejo busca constantemente novos objetos de preenchimento,
fazendo assim nascer a continuidade, que é o tempo. Mas se cada desejo for
compreendido ao surgir, ele se extinguirá e haverá então renovação. Essa
renovação pode constar de um novo desejo, não importa: continuem até o fim,
fazendo cada desejo extinguir-se e, desse terminar de momento em momento, verão
surgir uma renovação, que não é a renovação do desejo, mas a renovação que a
verdade nos dá. E a verdade não é contínua; a verdade é um “estado de ser”
atemporal. Esse estado só pode experimentar-se quando cada desejo, que dá nascimento
à continuidade, é compreendido e, assim, extinto. O conhecido não pode conhecer
o desconhecido. A mente, que é o resultado do conhecido, do passado, não pode
conhecer o imensurável, o atemporal. A mente, o processo de pensamento, precisa
terminar; então, o incognoscível, o imensurável, o eterno vem à existência.
Jiddu Krishnamurti — Da insatisfação à felicidade