A maioria de nós tem pavor da morte, e procuramos fugir a esse medo racionalizando a morte; ou apegando-nos a várias crenças, racionais ou irracionais, manufaturadas, também elas, pelo pensamento.
Ora, para se examinar a questão da morte, requer-se, assim me parece, uma mente não só racional, lógica, sã, mas também capaz de olhar diretamente o fato, ver a morte tal como é, e de não se deixar dominar pelo medo.
(...) temos de abeirar-nos da morte de maneira negativa, porquanto não sabemos o que ela é. Temos visto outras pessoas morrerem. Sabemos que há morte por doença, por velhice, por declínio, morte por acidente e morte propositada; mas não sabemos realmente o que significa morrer. Podemos racionalizar a morte. Vemos a velhice aproximar-se de nós — o gradual enfraquecimento da mente, perder a memória, etc. etc. diremos, porventura: “Ora, a vida é um processo de nascimento, crescimento e declínio, e a extinção do mecanismo físico é inevitável”. Mas isso não nos traz a compreensão profunda do que seja a morte.
A morte deve ser algo extraordinário, como a vida o é. A vida é uma totalidade. Sofrimento, dor, angústia, alegria, ideias absurdas, posse, inveja, amor, a torturante agonia da solidão — tudo isso é a vida. E para compreendermos a morte, devemos compreender o todo da vida, e não apenas tomar um fragmento dela e ficarmos vivendo com esse fragmento, como o faz a maioria de nós. No próprio compreender da vida há o compreender da morte, porque as duas coisas não estão separadas.
Como disse, não estamos interessados em ideias ou crenças, porque elas nada resolvem. O homem que deseja saber o que significa morrer, que deseja realmente experimentar, conhecer o seu pleno significado, deve estar cônscio da morte em vida, isto é, deve morrer todos os dias. Fisicamente, não podeis morrer todos os dias, embora a todos os momentos se esteja verificando alterações fisiológicas. Refiro-me ao morrer psicológico, interior. As coisas que temos acumulado como experiência, conhecimentos, os prazeres e as dores que conhecemos — morrer para tudo isso.
Mas, como sabeis, a maioria de nós não deseja morrer, porque estamos satisfeitos com o nosso viver. E nosso viver é muito feio; é mesquinho, invejoso, uma luta constante. Nosso viver é uma tortura, com esporádicos clarões de alegria que logo se tornam memória, apenas; e a morte é-nos também uma tortura. Mas a morte real é o morrer psicológico para tudo o que conhecemos — isto é, sermos capazes de enfrentar o amanhã, sem saber o que é o amanhã. Não estou enunciando uma teoria ou crença fantástica. A maior parte das pessoas temem a morte e, por isso, acreditam na reencarnação, na ressurreição, ou estão apegadas a uma outra forma qualquer de crença. Mas ao homem que realmente deseja descobrir o que é a morte, a crença não interessa. Crer, meramente, é falta de maturidade. Para descobrirmos o que é a morte, devemos saber morrer psicologicamente.
Não sei se já tentastes alguma vez morrer para algo que vos seja muito caro e vos proporcione imenso prazer — morrer para isso, não com raciocínio, não com uma convicção ou propósito — morrer, simplesmente para isso, como uma folha que cai da árvore. Se souberdes morrer dessa maneira, cada dia, cada minuto, conhecereis então o término do tempo psicológico. E parece-me que, para a mente amadurecida, a mente verdadeiramente desejosa de investigar, a morte, nesse sentido, é muito importante. Porque investigar não é procurar com um motivo. Não podeis descobrir o que é verdadeiro, se tendes um motivo, ou se estais condicionado por uma crença, um dogma. Deveis morrer para tudo isso: morrer para a sociedade, para a religião organizada, para as várias formas de segurança a que a mente está apegada.
Afinal de contas, as crenças e os dogmas oferecem segurança psicológica. Vemos que o mundo se acha num estado de confusão total; nesta universal confusão, tudo está se transformando muito rapidamente. Em face de tudo isso, desejamos algo duradouro, permanente e, por isso, nos apegamos a uma crença, um ideal, um dogma, a uma dada forma de segurança psicológica; e isso nos impede de descobrir realmente o que é verdadeiro.
Para descobrirdes o que é novo, a ele deveis chegar-vos com uma mente “inocente”, uma mente fresca, jovem, não contaminada pela sociedade. A sociedade é a estrutura psicológica da inveja, da avidez, da ambição, do poder, do prestígio; e para descobrir o que é verdadeiro, a pessoa precisa morrer para toda essa estrutura, não teoricamente, não abstratamente, porém morrer realmente para a inveja, a perseguição do mais. Enquanto houver essa perseguição do mais, em qualquer forma, não poderá haver compreensão do imenso significado da morte. Todos sabemos que mais cedo ou mais tarde morreremos fisicamente, que o tempo passa, e a morte nos alcançara no caminho; e, porque temos medo, inventamos teorias, coordenamos ideias a respeito da morte, racionalizamo-la. Mas isso não é compreender a morte.
Afinal, com a morte não se discute; não podemos perdir-lhe que nos dê mais um dia de vida. Ela é determinante, inexorável. E não é possível morrer para a inveja da mesma maneira, sem discutir, sem perguntar o que vos acontecerá amanhã, se morrerdes para a inveja ou a ambição? Isso, em verdade, significa compreender o inteiro processo do tempo psicológico.
Sempre estamos pensando em termos relativos ao futuro, planejando para o amanhã, psicologicamente. Não estou falando sobre o planejar para a vida prática; isso é coisa completamente diferente. Mas, psicologicamente, desejamos ser alguma coisa amanhã. A mente sagaz se ocupa com o que ela foi e o que irá ser, e toda a nossa vida é edificada sobre essa base. Somos o resultado de nossas “memórias”, e memória é tempo psicológico. Mas é possível morrermos, sem esforço, facilmente, para todo esse processo?
Todos quereis morrer para o que vos é doloroso — e isso é relativamente fácil. Mas eu falo do morrer para algo que vos dá muito prazer, um forte sentimento de riqueza íntima. Se morrerdes para a lembrança de uma experiência estimulante, morrerdes para vossas “visões”, vossas esperanças e preenchimentos, ver-vos-eis frente-a-frente com um extraordinário sentimento de solidão, sem nada terdes em que vos amparardes. Igrejas, livros, instrutores, sistemas de filosofia — em nada disso confiareis mais, o que estará muito certo; porque se depositardes confiança em qualquer dessas coisas, estareis ainda com medo, sereis ainda invejoso, ávido, ambicioso, sequioso de poder.
Infelizmente, quando em nada mais confiamos, tornamo-nos em geral amargurados, mordazes, superficiais, e vivemos então, simplesmente, de dia para dia, dizendo que tanto basta. Mas, por mais sagaz ou filosófica que a mente seja, o que daí resulta é uma vida muito superficial, muito medíocre.
Não sei se já alguma vez tentastes ou experimentastes isto: morrer, sem esforço, para tudo o que conheceis, morrer não superficialmente, porém, realmente, sem perguntardes o que acontecerá amanhã. Se puderdes fazê-lo, encontrar-vos-eis com um extraordinário sentimento de solidão, um estado de negatividade (nothingness), no qual não existirá amanhã — e, se experimentardes esse estado até o fim, vereis que não é um estado de lúgubre desespero; pelo contrário.
Afinal de contas, vivemos em maioria terrivelmente sós. Podeis exercer uma ocupação interessante, ter família e dinheiro em abundância, ter os vastos conhecimentos de uma mente culta; mas, se quando vos encontrardes a sós, puserdes de lado tudo isso, conhecereis aquele extraordinário sentimento de solidão.
Mas, vede, nesse momento ficamos muito assustados; nunca “experimentamos” esse estado até o fim, para descobrir o que ele é. Tratamos de ligar o rádio, ler um livro, tagarelar com os amigos, ir à igreja, ao cinema, ou ao botequim — pois tudo isso está no mesmo nível, constituindo meios de fuga. Deus é uma fuga estimulante, exatamente como a bebida. Quando a mente está a fugir, não há muita diferença entre Deus e a bebida. Sociologicamente, talvez não seja bom beber; mas o fugir para Deus tem também seus inconvenientes.
Assim, para compreender a morte, não verbal ou teoricamente, porém, experimentá-la realmente, é preciso morrer para ontem, para todas as suas lembranças, as feridas psicológicas, a lisonja, o insulto, a mesquinhez, a inveja — é preciso morrer para tudo isso, quer dizer, morrer para si mesmo. Porque tudo isso é o que somos. E vereis então, se chegardes até ai, que existe uma solidão que não é isolamento. Solidão e isolamento são duas coisas diferentes. Mas não podeis alcançar a solidão, se não experimentardes até o fim e não compreenderdes esse estado de isolamento, em que as relações nada mais significam. Vossas relações com esposa, marido, filho, filha, amigos, emprego — nenhuma delas já nenhum significado tem ao sentirdes que estais completamente só. Estou certo de que alguns de vós já experimentastes esse estado. E quando fordes capazes de experimentá-lo até o fim e ultrapassá-lo, quando já não vos assustar a palavra “só”, quando estiverdes morto para todas as coisas que conheceis, e a sociedade tiver deixado de influenciar-vos, conhecereis então a “outra coisa”. A sociedade só poderá influenciar-vos enquanto a ela pertencerdes psicologicamente. A sociedade nenhuma influência pode exercer sobre vós, depois de cortardes o laço psicológico que a ela vos vincula. Estais então livre das garras da moralidade e respeitabilidade social. Mas o experimentar desse estado de solidão, até o fim, sem procurar fugir nem verbalizar — e isso significa “ficar com ele”, completamente — isso requer uma grande soma de energia. Necessitais de energia para poderdes viver com algo que é feio e não vos deixardes corromper por ele, assim como também necessitais de energia para viver com algo que é belo, e não vos deixardes acostumar. Essa energia não contaminada é a solidão que deveis alcançar; e, dessa negação, desse vazio total, surge a criação.
Ora, sem dúvida, toda criação se verifica no vazio, e não quando a mente está cheia. A morte só tem significação ao morrerdes para todas as vossas vaidades, superficialidades, todas as vossas inumeráveis lembranças. Apresenta-se então algo que transcende o tempo, algo que não podereis alcançar se sentirdes medo, se estiverdes apegado a crenças, se estiverdes nas malhas do sofrimento.
Krishnamurti — O Homem e seus desejos em conflito