O mecanismo do inconsciente
Outro dia estive falando sobre a morte. Precisais morrer para todo o conhecimento que tendes acerca de vós, porque o “eu” jamais é estático, está sempre variando, não só física, mas também psicologicamente. Não sois o que ontem fostes, embora o desejásseis ser; operou-se uma mudança, da qual podeis não estar ciente.
Para conhecer-vos — e deveis conhecer-vos completamente, de ponta a ponta — o mecanismo de acumular conhecimento sobre vós mesmo deve terminar; e esse término só pode verificar-se quando deixardes de julgar, de avaliar, de condenar, de justificar. Isso parece muito simples, mas para a maioria de nós não é, porque fomos exercitados para condenar, julgar, avaliar, comparar, justificar. Tal é nosso condicionamento. E o ver as coisas claramente como são, sem a desfiguração causada por nosso condicionamento, não é questão de tempo; é uma questão de imediata necessidade. É óbvio que não podeis ver o que o fato realmente é, se para vosso exame trazeis todas as vossas lembranças e opiniões. Se isto está claro, não apenas verbal ou intelectualmente, porém realmente, poderemos continuar com uma investigação do inconsciente.
O inconsciente tem um papel muito importante em nossa vida. A maioria de nós não conhece o inconsciente, a não ser através de sonhos, através de ocasionais sugestões ou mensagens relativas a coisas que estão ocultas. Eu acho que não é absolutamente necessário sonhar; isso é um desperdício de energia. Se estais desperto, apercebido, sem escolha, momento por momento, e portanto sem acrescentar nada ao que antes conhecestes; se observardes tudo o que vos cerca, bem como todo movimento de pensamento, descobrireis, então, que o sonhar cessa completamente — embora os psicólogos insistam em que não se pode evitar o sonhar, conquanto nem sempre nos lembremos de nossos sonhos. Isto não é questão para controvérsia ou argumentação. Vós mesmo podeis experimentá-lo. Se não estais semi-adormecido durante o dia, porém completamente desperto, observando tudo o que se passa ao redor e dentro de vós — cada movimento de pensamento, cada sentimento, cada reação — descobrireis, então, que quando dormis não sonhais.
O inconsciente, que está oculto e que tão pouco conhecemos, pode ser alcançado negativamente. É o que tento fazer-vos ver, quando digo que não há necessidade de sonhar. Não sei até onde examinastes diretamente esta questão. Provavelmente achais ser muito enfadonho falar a respeito do inconsciente; muito “junguiano” ou “freudiano”, etc. Mas vós deveis conhecer o inconsciente, porque é o inconsciente que orienta a maior parte de nossa vida, que molda os nossos pensamentos, nossos sentimentos, e produz várias espécies de conflito. Se não conheceis o inconsciente, podeis falar sobre Deus, a oração, a guerra, a paz, a bomba atômica, mas o que disserdes pouco significará.
No inconsciente estão enraizadas não só as reações comuns do indivíduo, mas também as reações coletivas da raça a que pertence, no meio cultural em que foi criado — não apenas o meio cultural imediato, destes poucos anos, mas a tremenda acumulação de experiência humana no decurso das idades. Tudo isso lá está, no inconsciente. Descobrir todo o inconsciente por meio de análise, de investigação gradual, é absolutamente impossível; porque, se cometemos um erro em algum ponto do mecanismo de análise, como é inevitável, o resto da análise ficará também errado. Se perceberdes a futilidade dessa análise, se perceberdes que com ela não se pode penetrar muito tio inconsciente, e muito menos transcendê-lo, tereis então de abeirar-vos do inconsciente de maneira negativa — quer dizer, totalmente. Já explico o que quero dizer.
Espero não vos seja demasiado difícil o que estou dizendo. Não estou agora tomando uma atitude condescendente, ou professoral, ou superior — nada disso. Mas é provável que a maioria de vós nunca tenha pensado nesta matéria; e, para seguirdes logicamente, sãmente, o que se está dizendo sem ficardes confusos ou perturbados, tendes de escutar. Talvez não compreendais uma boa parte do que estamos dizendo, mas se a semente cair em terreno já amanhado pelo correto escutar, compreendereis. Se nossa maneira de observar ou escutar é negativa, não há, então, separação entre o pensador e o pensamento. Mas, para a maioria de nós existe uma separação, um conflito entre o pensador e o pensamento, entre o observador e a coisa observada, entre a parte da mente que diz “devo” e a outra parte que diz “não devo”. Um desejo nos solicita numa direção, e outro desejo na direção oposta. Todos conhecemos essa dualidade “censor e pensamento” — o censor sempre a observar, a julgar, a avaliar o pensamento.
Ora, existe de fato separação entre o observador e a coisa observada, entre o pensador e o pensamento? Pensamos que sim; mas existe mesmo? É muito importante averiguá-lo; porque, se não há censor, pensador, centro de onde procede o julgamento, a avaliação, — o conflito cessa então completamente.
Certo, só existe pensamento — pensamento como reação mecânica da memória acumulada. Esse pensamento criou o pensador, a entidade permanente, “eu” — a que chama, então, “ego”, “alma”, “eu superior”; mas isso ainda é um resultado do pensamento, porque pode ser condicionado para pensar tudo o que a sociedade exigir que pense. Os comunistas não creem em Deus, mas vós credes, porque fostes educados nesta crença. É só questão de propaganda. Para se compreender inteiramente esse mecanismo, a totalidade do inconsciente, cumpre observá-la negativamente — pois esta é a única maneira de observá-la, porquanto toda observação positiva do inconsciente produz divisão entre o observador e a coisa observada.
Não sei se já notastes que no momento em que se vê algo sem o pensamento, não há observador: só há observação. Quando olhais para uma nuvem, sem vossas lembranças acumuladas relativas às nuvens, estais observando. Da mesma maneira temos de observar o inconsciente e quando observais assim, negativamente, existe inconsciente? Não apagastes completamente o inconsciente com todo o seu conteúdo? Há, pois, um percebimento imediato da totalidade da consciência. Mas não podereis ver a totalidade da consciência enquanto estiverdes observando através de vosso condicionamento, através da experiência acumulada no passado.
Ao chegardes a esse ponto — e deveis chegar — tereis lançado as bases da meditação; porque tereis então eliminado completamente o sofrimento. Isso não significa que não haverá mais compaixão. Mas tereis eliminado o sofrimento, que embota e insensibiliza a mente — sofrimento que significa autopiedade, “preocupação consigo mesmo”, que nenhuma relação tem com a verdadeira compaixão.
Agora, que é meditação? Há quem diga que na meditação é preciso controlar o pensamento. Que implica esse controle? Implica contradição, que é uma forma de conflito. A pessoa procura concentrar-se numa coisa e outros pensamentos se insinuam, os quais ela tem de repelir continuamente; torna-se, assim, a concentração, gradualmente, um processo de exclusão. É coisa semelhante ao caso do aluno que deseja olhar pela janela, mas o professor lhe manda olhar para o livro; o esforço de “olhar para o livro” chama-se concentração. Mas tal concentração é exclusão.
Penso haver um estado de atenção em que a concentração não é exclusão. Quando a mente se concentra por meio de disciplina, de controle, de repressão, de várias formas de punição e recompensa, essa concentração divide a mente contra si própria, e produz conflito. Na atenção não há conflito. Só se pode compreender a atenção quando se percebe a significação do tentar concentrar-se por meio de controle; e isso significa que cessa o esforço para se concentrar. Enquanto fizerdes esforço para vos concentrardes, haverá contradição, conflito e, por conseguinte, não haverá atenção; e vós precisais da atenção.
A meditação não é prece; a prece implica súplica, rogo, e isso é extremamente infantil. Vós só rezais quando vos vedes em dificuldades. Um homem feliz não reza. Só reza o homem que sofre, o homem que deseja algo ou tem medo de perder algo. E a contemplação, conforme o praticada pelos ocidentais, essa também não é meditação.
Notai, por favor, que empreguei a palavra “ocidentais” apenas como meio de comunicação. Para mim não há divisão entre Oriente e Ocidente. Tal divisão é absurdamente nacionalista, perniciosa.
O que, em geral, se chama contemplação subentende um centro de onde contemplar, significa pôr-se num estado adequado para receber, aceitar, e isso, mais uma vez, não é meditação.
Para lançar as bases da meditação, a pessoa tem de compreender tudo isso, para que não haja medo, nem aflição, nem motivo, nem esforço de espécie alguma. Mas se deixais de forcejar porque alguém vos diz que não o deveis fazer, nesse caso estais tentando “produzir” aquele estado em que não há esforço — e esse estado não pode ser produzido; tendes de compreender toda a estrutura do esforço, porque só então tereis lançado as bases da meditação. Essa base não é fragmentária, não é uma coisa que se constrói gradualmente, com o pensamento, com o desejo de êxito, de realização, ou com a esperança de experimentar algo mais amplo, superior. Tudo isso tem de cessar. E, lançada essa base, o cérebro se torna então completamente quieto. Já não está reagindo a qualquer espécie de influência ou sugestão; já cessou de ter visões; já não está enredado no passado ou por ele condicionado. Esse estado de quietude é absolutamente essencial. O cérebro é o resultado de séculos de tempo. É o resultado biológico, zoológico, da influência, da cultura, de toda a estrutura psicológica da sociedade. E é só quando o cérebro está quieto, completamente imóvel, porém vivo, e não amortecido pela disciplina, pelo controle, pela repressão — é só então que a mente pode começar a operar. Mas essa absoluta quietude do cérebro não é um estado que se pode “produzir”. Ela nasce, natural e facilmente, uma vez lançada a base, quando já não existe a divisão “pensador-pensamento”.
Tudo isso constitui parte da meditação; a meditação não se encontra no fim. “Lançar a base” é ficar livre do medo, da aflição, do esforço, da inveja, da avidez, da ambição — livre de toda a estrutura psicológica da sociedade. Quando, graças ao autoconhecimento, o cérebro já não é uma máquina acumuladora, ele está quieto, tranquilo, silencioso. Deveis alcançar esse estado de silêncio, porque, do contrário, não sereis realmente uma pessoa religiosa. Estareis apenas brincando com coisas que nada significam. Podeis intitular-vos cristão, hinduísta, budista, o que quer que seja, mas estas palavras são mero resultado de propaganda e nenhum valor têm para o homem verdadeiramente religioso. Mas, quando há aquele estado de silêncio, torna-se então existente aquela inefável imensidade. Não há mais aceitação nem rejeição; não há entidade que experimenta a imensidade. Não há experimentador, e esta é a parte mais maravilhosa da coisa. Só há aquele movimento imenso, atemporal; e se chegardes até aí, vereis que existe criação.
Krishnamurti, Londres, 14 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito