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domingo, 22 de abril de 2018

O despertar da afeição, do amor

Parece-me que deve ser muito importante para a maioria de nós observar a determinação que está a atingir o caráter, o equilíbrio, a natureza do homem.

Observa-se essa determinação em todos os níveis de atividade.

Especialmente neste país, ela torna-se ainda mais notada — este país que se supunha ser muito religioso por tradição, por herança e pela constante repetição de certas frases e ideias religiosas. Observa-se que a deterioração aqui é ainda mais profunda, mais vasta e, segundo parece, muito poucos se preocupam com ela. Os que se preocupam, tentam reviver o passado; voltam às velhas tradições, aos antigos costumes, hábitos e atitudes de pensamento, e aos velhos valores. Ou então procuram uma solução econômica ou social. Mas, como se vê, os que tomam a vida a sério, ou se refugiam no passado, nas suas velhas ideias visionárias, ou tentam encontrar uma nova concepção, uma nova fórmula, de tipo sociológico ou religioso.

Tendo consciência do que se passa no mundo e neste país, nomeadamente, parece-me que o que é preciso é uma revolução total na consciência. E essa revolução não poderá acontecer se andarmos insensatamente agarrados a crenças, ideias e conceitos. Não encontraremos saída para a nossa confusão, infelicidade e conflito pela constante repetição dos livros sagrados, como o Gita, os Upanishads, e todos os outros — isso pode levar à hipocrisia, a uma vida sem sinceridade e a uma infindável pregação moralista; mas nunca a encarar as realidades.

O que temos de fazer, parece-me, é tomar consciência das condições da nossa existência diária, dos nossos desgostos, das nossas aflições, da nossa confusão e conflito, e tentar compreendê-los muito profundamente, de modo a estabelecermos uma base correta para começar. Não há outra saída. Temos de encarar-nos tal como somos, em vez de tentar ajustar-nos a qualquer padrão ou a qualquer ideal. Temos de encarar realmente aquilo que somos, e a partir daí dar origem a uma transformação radical.

Pode-se dizer, “Que efeito ou que valor terá uma mudança individual? Como é que isso poderá transformar todo o curso da existência humana? Que pode um indivíduo fazer?” Penso que é uma pergunta errada, porque não existe tal coisa, uma consciência “individual”; há apenas consciência, da qual somos uma parte. Uma pessoa pode segregar-se e erguer um muro à volta de um determinado espaço chamado “eu”. Mas esse “eu” está em relação com o todo, esse “eu” não é separado. E na transformação dessa seção particular, dessa parcela, afetaremos a consciência no seu todo. Penso que é muito importante compreender que não estamos a falar de salvação individual ou de reforma individual, mas sim de que temos de perceber o particular, em relação com o todo. Então, dessa compreensão nasce a ação que atingirá o todo.

Quando se considera o que está a acontecer no mundo — como as mentes dos seres humanos se tornaram mecânicas, repetitivas, como estão separadas em nacionalidades, em grupos, divididos pelo conhecimento tecnológico, além das divisões religiosas — hindus, muçulmanos, cristãos, etc. — considerando tudo isto, parece-me que é necessária uma ação totalmente diferente. Temos, obviamente, de descobrir uma fonte diferente, uma diferente abordagem da vida, que não esteja em contradição com a realidade que é o viver cotidiano, e traga ainda consigo uma profunda compreensão religiosa da vida.

O que é importante, quanto a mim, não é só a resposta imediata aos vários desafios — uma resposta que seja adequada — mas também uma resposta que seja fruto de uma vida profundamente religiosa. Entendo por vida religiosa, não uma vida ritualista, ajustada a um determinado padrão, mas uma maneira de viver que nasce da compreensão de nós mesmos. Porque sem o conhecimento de si mesmo, do que realmente se é — mesmo que se veja que se é desonesto, falso, astuto, hipócrita, mesquinho — não se tem nenhuma base para qualquer ação ou pensamento verdadeiramente religiosos.

Parece-me assim que qualquer pessoa real e profundamente interessada não só na situação mundial, mas também em descobrir a Verdade, em descobrir se existe alguma coisa para além dos limites da mente, tem de se compreender totalmente a si mesma. Será esse o nosso único empenhamento no decorrer destas palestras. Porque é essa a fonte, a origem do nosso pensamento, do nosso ser e da nossa ação. Sem o autoconhecimento, sem a compreensão do eu — não o “eu superior” e o “Eu” com E maiúsculo, mas o “eu” que vai todos os dias para o emprego, que é apaixonado, irascível, vicioso, cruel, hipócrita, conformista — se não há essa compreensão total e completa, de todo o nosso ser, então toda a ação, todo o pensamento, toda a ideia, apenas levarão a mais confusão e sofrimento.

E parece-me que temos uma imensa tarefa a realizar, uma tarefa que exige seriedade. Por esta palavra entendo a capacidade de prosseguir, até ao fim, numa observação, ou na pesquisa de uma verdade.

Por não sermos realmente sérios, somos muito superficiais, fáceis de distrair e de satisfazer. Mas para pesquisar profundamente em nós mesmos, temos de ser extremamente sérios e de continuar nessa seriedade. E isso requer energia, não se pode ser sério, se não se tem energia. Essa energia não deve ser esporádica, acidental, mas uma energia constante, capaz de observar uma fato tal como é, e de seguir esse fato até ao fim — um energia espantosa, tanto da mente como do corpo.

E para se ter energia, não deve haver conflito, porque o conflito é o principal fator de deterioração. Somos pessoas que foram criadas para viver com o conflito. Toda a nossa vida é conflito — dentro e fora de nós — com o próximo, com nós mesmos e nas nossas relações. Tudo o que tocamos, tanto psicológica como ideologicamente, gera conflito. E o conflito é o mais importante fator de deterioração.

Compreender esse conflito, não parcial mas totalmente é, parece-me, a tarefa prioritária da mente humana. Porque só quando o conflito cessa completamente, é que termina toda a ilusão, só então a mente pode penetrar muito profundamente na investigação da Verdade, no investigar se existe algo além do tempo. E só essa mente é capaz de descobrir o que é o amor, e de descobrir aquele estado da mente que é verdadeiramente criador — porque de outra forma, só há especulação. A mente religiosa não especula, move-se apenas de fato para fato. E o fato não pode ser observado se há conflito ou tensão de qualquer espécie.

Assim, parece-me que o nosso maior problema é o de termos perdido completamente o espírito verdadeiramente religioso. Podemos ter templos, ir ao templo, usar um símbolo do sagrado, e tudo o mais, todas essas coisas absurdas e imaturas, mas não somos de fato pessoas religiosas. E o problema do mundo não pode ser resolvido em nenhum outro nível exceto o religioso. E a vida realmente religiosa é aquela que vivemos com a compreensão do conflito e, portanto, libertos do conflito.

Assim, o nosso principal empenhamento é compreender o conflito, interior e exterior. Na realidade, “interior” e “exterior” não estão separados. O mundo não está separado de vós e de mim; nós somos o mundo e o mundo é nós. Não se trata de uma teoria; se observarmos bem, veremos que é um fato real.

Estamos condicionados pela sociedade em que vivemos — uma sociedade comunista, socialista, capitalista ou qualquer outra sociedade. Cada um é aquilo que se chama um “indivíduo”, nascido num determinado país e criado de acordo com uma certa tradição, crendo ou não crendo em deus. Cada um é moldado pela sociedade, pelas circunstâncias. As suas crenças, a sua conduta, a sua maneira de pensar, tudo isso é resultado do condicionamento criado pela sociedade em que vive. Isto é um fato óbvio, irrefutável. Mas pomos o mundo à parte, como uma coisa diferente de nós, porque o mundo é pesado de mais, com todas as suas pressões, tensões e conflitos, com as suas exigências inumeráveis e as suas condições de vida. E retiramo-nos para dentro de nós mesmos, para as nossas crenças e esperanças, para os nossos medos e conceitos especulativos. Assim, há uma divisão entre nós e o mundo. Mas se observarmos, veremos que o mundo não é diferente de nós — é como a maré, que flui e reflui. Se não compreendermos o mundo exterior, não compreenderemos o interior. E para o compreender, temos de o observar — não de um determinado ponto de vista, mas do modo como um cientista observa. O cientista observa apenas no seu laboratório, mas nós, seres humanos a viver aqui, temos de observar o mundo cada dia, nas nossas relações, nas nossas atividades. E, como disse, para compreendermos toda esta existência complexa, atormentada, cheia de desespero — uma existência em que não há amor nem há beleza — temos de compreender o conflito.

O conflito surge, certamente, quando há contradição — contradição de diversos desejos, de exigências várias, tanto conscientes como inconscientes. Geralmente apercebemo-nos desses conflitos. Mas se nos apercebermos não temos resposta para eles; assim fugimos deles, evadimo-nos para a religião, para o trabalho social, para várias formas de entretenimento, como ir ao templo, ir ao cinema ou beber. Mas só é possível resolver estes conflitos quando a mente é capaz de se compreender a si mesma.

Vamos então examinar esta questão do conflito. Para compreender o conflito temos de nos observar a nós mesmos. E a observação requer atenção cuidadosa. Essa atenção significa compreensão, afeição: como quando se gosta e se cuida de uma criança — não há rejeição, não há condenação. Cuidar afetuosamente de uma criança é observar a criança, sem a condenar, sem a comparar. É observá-la com infinita afeição, com imensa compreensão; é estudá-la, em todas as suas atividades, em todas as suas diferentes fases, nas suas travessuras, nas suas lágrimas, nos seus risos.

Observar exige pois atenção compreensiva. Assim, esta atenção é a primeira coisa que precisamos de ter na completa observação de nós mesmos, e portanto nem por um momento deve haver condenação, justificação ou comparação, mas só a auto-observação pura e simples do que está a ter lugar em cada momento do dia, quer estejamos no trabalho, quer a viajar de carro, ou a falar com alguém, etc. Temos de observarmos tão completamente, com tão infinito cuidado, que desse cuidado nasça a precisão, uma precisão total — e não ideias vagas e ação ineficaz.

Assim, para nos observarmos a nós mesmos, tem de haver atenção completa. Uma mente que está atenta a si mesma, no próprio ato de se observar, começa a aprender acerca de si mesma.

Aprender é inteiramente diferente de acumular conhecimentos. Penso que isto tem de ser cuidadosamente compreendido. A maioria de nós acumula conhecimentos. Desde a infância até que morremos, estamos sempre a registrar; a nossa mente torna-se uma espécie de fita de gravação em que tudo é registrado. E é em função desse registro que agimos, pensamos, reagimos; e, consciente ou inconscientemente, todos os dias vamos acrescentando coisas a esse registro. Guardamos todas as experiências, todas as informações, todos os incidentes, todas as lembranças. E a isto chamamos experimentar. A isto chamamos aprender. Mas aprender não é isto; aprender é completamente diferente. No momento em que se acumula, deixa-se de aprender. Porque só a mente que está fresca, nova, e observa com atenção, é que aprende.

Penso que temos de ver a diferença entre estas duas coisas. O conhecimento tecnológico é acumulativo. Vai-se acrescentando mais e mais e é a partir desse conhecimento que se atua. Como engenheiro ou físico, por exemplo, acumula-se o máximo de informação possível, e é com base nela que se age. Neste campo, pois, não há liberdade. Atua-se sempre em função do aprendido, do adquirido.

Ao nível do conhecimento tecnológico, essa ação, essa memória, esse mecanismo acumulativo, são absolutamente necessários. Mas estamos a falar de uma coisa inteiramente diferente — ou seja que observar com atenção não implica nenhum mecanismo aditivo. Porque, se estamos meramente a adicionar, a adquirir, então, no minuto seguinte em que observamos, estamos a observar em função do que acumulamos e, portanto já não há observar. Compreendamos isto, por favor.

É muito importante compreender que, quando a mente está meramente a adquirir, a acrescentar algo a si própria, e em função desse conhecimento observa, então o que observa é “contaminado” pela assimilação anterior, pelo conhecimento previamente acumulado. Essa mente é, portanto, incapaz de compreender um fato novo. E a vida é sempre nova; o viver é totalmente novo a cada minuto do dia. Mas perdemos essa frescura, esse extraordinário sentido de vitalidade, de beleza, de imensidão, por irmos sempre ao encontro da vida através do nosso conhecimento acumulado e, assim, nunca estamos a aprender mas só a adicionar mais coisas às já existentes; e é com base no que temos acumulado que olhamos e esperamos aprender.

Assim, a mente que é séria, que está consciente da situação mundial, compreende que o mundo todo está num estado de caótica confusão. Há um constante declínio em todos os países; só poucas pessoas são capazes de funcionar com inteligência, e talvez com liberdade; as outras limitam-se a imitar — são pobres imitações de computadores; agem inadequadamente.

O sofrimento, a aflição, a ansiedade, o desespero é que são fatos, e não as nossas crenças, as nossas esperanças, os nossos deuses. O fato do desespero, da ansiedade, da extraordinária persistência do sofrimento, um sofrimento sem fim; ódio e desumanidade crescentes — esse é o mundo de que fazemos parte. E a função da mente verdadeiramente séria é compreender e transcender tudo isso. A mente séria tem de observar o mundo. Isto é, temos de observar-nos a nós mesmos, porque nós somos o mundo, porque há em nós infelicidade, dor, isolamento, desespero, ansiedade, medo, porque somos levados pela ambição, a avidez, a inveja — somos tudo isso. Não somos o que imaginamos ser — nomeadamente que somos Deus e tudo o mais; isso é só especulação absurda. Temos de partir dos fatos e de aprender a respeito de nós mesmos.

Assim, há diferença entre aprender e acumular conhecimentos. O aprender é infinito; o aprender sobre nós mesmos não tem fim. E, portanto, a mente que não está a acumular, mas a aprender constantemente, é capaz de observar os seus conflitos, as suas tensões, as suas dores, os seus secretos desejos e medos. Se formos capazes de fazer isso, não ocasionalmente, só de vez em quando, mas todos os dias, em cada minuto — e isto é possível — se estivermos constantemente a observar, então veremos que temos uma energia extraordinária. Porque então a contradição conosco próprios estará a ser compreendida.

Com a palavra compreender não me refiro a algo intelectual. A mente que está fragmentada nunca poderá compreender. Quando dizemos “Compreendo uma determinada coisa intelectualmente”, o que queremos realmente dizer é que ouvimos a palavra, e compreendemos a palavra — o que não tem nada a ver com compreensão.

Compreensão implica não só a natureza semântica, o sentido da palavra, mas também a apreensão do conteúdo total dessa palavra, e a plena tomada de consciência do seu significado ao aplicar-se a nós mesmos. Assim a compreensão não é uma questão meramente mental, um mero mecanismo intelectual. Só podemos compreender alguma coisa quando aplicamos a mente, o corpo, os sentidos, os olhos, os ouvidos, o nosso ser inteiro. E dessa compreensão nasce a ação total, e não uma ação fragmentária, contraditória.

Assim o que interessa — especialmente àqueles que são realmente sérios — é compreender. E a vida exige que sejamos sérios, porque não podemos viver neste mundo levianamente. Não podemos só estar interessados nas nossas próprias aflições, nos nossos divertimentos, nos nossos próprios medos. Fazemos parte do mundo e temos de compreender-nos a nós mesmos e de compreender o mundo. Esta compreensão exige extraordinária seriedade, e isso é uma tarefa imensa. E quando se é sério tem de se levar ao máximo essa compreensão, temos de ver tudo o que a existência implica.

Temos, pois, de compreender o conflito — compreender, e não dominar. Não devemos tentar negá-lo nem fugir dele, mas compreendê-lo, ver todo o seu significado, estando atentos às nossas várias contradições, na palavra, no pensamento, na ação. Geralmente vivemos vidas duplas — ou triplas ou múltiplas... Funcionamos em fragmentos, o nosso ser está fragmentado; desejamos as coisas mundanas, desejamos todas as comodidades que nos são devidas. O conforto, obviamente, é necessário, mas com o conforto vem a exigência de segurança. E não só desejamos estar seguros nos nossos empregos — o que é uma reação natural e sã — mas também estar seguros psicologicamente, interiormente.

Será possível alguma vez estarmos psicologicamente “seguros” — ou seja, psicologicamente seguros nas nossas relações e psicologicamente seguros com aquilo com que estamos identificados?

A segurança exterior é, obviamente, necessária. Exteriormente, é absolutamente necessário ter um abrigo, um lar, um emprego; mas não nos contentamos com isso. Queremos estar seguros psicologicamente, interiormente; e aí começa a inquietação. Nunca investigamos se há realmente segurança interior, mas dizemos que temos de estar em segurança interiormente, e assim surge a ilusão. A partir desse momento começa toda uma série de conflitos intermináveis.

Temos, pois, de descobrir, por nós mesmos, a verdade relativamente a este enorme problema de segurança psicológica — sem dependermos do que outra pessoa diz. Psicologicamente estamos inseguros; por isso criamos deuses e estes deuses tornam-se a nossa “segurança permanente”. E isso gera conflitos. Compreendem o que entendemos por conflitos? Queremos referir-nos à contradição, à ação fragmentária, aos pensamentos incoerentes, aos desejos que se opõem entre si, às exigências contraditórias — as pressões do mundo e a exigência interior de viver em paz com o mundo; a necessidade de encontrar algo, além da existência diária, monótona e sem sentido, e o estar-se enredado nessa existência, e desesperado, sem nunca se encontrar solução para esse desespero e para o imenso sofrimento — um sofrimento não apenas pessoal, mas também o sofrimento do mundo. E nunca encontrarmos uma saída para este sofrimento. Tudo isto cria contradição, da qual podemos ou não estar conscientes. E quando a mente está em contradição, tem de haver conflito.

E, como é óbvio, a mente que está em conflito não pode avançar, pode prosseguir na ilusão, mas não pode avançar para descobrir se há algo além do tempo, além da medida do homem. Esta é, certamente, a função da religião. A função da mente religiosa é descobrir o verdadeiro. E a verdade não pode encontrar-se num templo, num livro, por mais antigo que seja. Temos de descobri-la por nós mesmos. Não podemos comprá-la com lágrimas, com orações, com repetições, com rituais — esse caminho leva ao absurdo, à ilusão, ao desequilíbrio psicológico.

Assim, a mente séria tem de estar consciente deste conflito. Com “estar consciente” quero dizer observar, escutar. Escutar, ouvir atentamente, é uma arte. Na verdade, escutar um som é uma arte extraordinária. Não sei se já escutaram realmente um som — o som de um pássaro pousado numa árvore, ou o distante buzinar de um carro. Ao escutarem, sem julgar, sem identificar esse ruído com uma determinada ave ou um determinado carro, ou um determinado rádio na casa ao lado, mas ao escutarem apenas, verão — se assim escutarem — como se tornam extraordinariamente sensíveis. A mente torna-se extraordinariamente desperta quando escutamos, simplesmente — sem interpretar o que ouvimos, sem tentar traduzi-lo, sem o identificar com o que já conhecemos — pois tudo isso nos impede de escutarmos simplesmente — se escutarmos os nossos pensamentos, as nossas exigências, o desespero em que estamos — sem tentar interpretar, sem traduzir nada, sem tentar fazer alguma coisa em relação a isso — então veremos que a nossa mente se torna espantosamente lúcida.

E só a mente extremamente lúcida, a mente sã — equilibrada, racional, lógica e sem nenhum conflito, consciente ou inconsciente — só essa mente pode ir mais adiante, e descobrir, por si própria, se há uma Realidade. Só essa mente é religiosa. E só essa mente é capaz de resolver os problemas deste mundo.

Os problemas do mundo são inumeráveis e estão a multiplicar-se. E se não formos capazes de os resolver logicamente, com equilíbrio, saudavelmente, com a mente livre de todo o conflito, estaremos apenas a criar mais confusão, mais infelicidade para o mundo e para nós mesmos.

Assim a primeira coisa que cada um tem de aprender, por si, é observar com atenção, escutando todos os murmúrios, todos os medos, ilusões, desesperos, do seu próprio ser. E veremos, então, por nós mesmos — e isso não precisa de provas, nem de “gurus”, nem de livros sagrados — se há uma Realidade. E encontraremos, então, um extraordinário sentimento de libertação do sofrimento. E nisso há claridade, beleza e aquilo que hoje falta à mente humana — a afeição, o amor.

Krishnamurti, Madrasta, 12 de janeiro de 1964,
O despertar da sensibilidade

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Desconhecemos a real afeição

Desconhecemos a real afeição

PERGUNTA: Porque será que neste país parecemos sentir tão pouco respeito pelos outros?

KRISHNAMURTI: Não sei em que país existe respeito aos semelhantes. Na Índia, as mesmas pessoas que nos cumprimentam com profundas inclinações e nos oferendam grinaldas e flores, maltratam os vizinhos, os criados e os animais. Isso é respeito? Aqui, como na Europa, há respeito ao homem possuidor de automóvel caro e palacete; há respeito para com os considerados superiores e desprezo aos demais. Mas é este o problema? Todos queremos sentir-nos iguais aos que estão mais alto, não é verdade? Queremos ombrear com os famosos, os ricos, os poderosos. Quanto mais industrializada uma civilização, tanto mais prevalece a ideia de que os pobres podem tornar-se ricos, de que o homem que vive numa cabana pode chegar a presidente, e, desse modo, naturalmente, não há respeito a ninguém; e, acredito, se pudermos compreender o problema da igualdade, estaremos aptos a compreender a natureza do respeito.

Ora, existe igualdade? Embora todos os governos, quer da esquerda, quer da direita, salientem que todos somos iguais, somos de fato iguais? Tendes uma cabeça melhor, uma capacidade maior, sois mais prendado do que eu; sabeis pintar e eu não sei; sabeis inventar; eu sou um simples operário. Pode jamais existir igualdade? Poderá haver igualdade de oportunidade: nós dois podemos ter a possibilidade de comprar um carro; isso, porém, é igualdade? O problema, por certo, não se refere a como promover a igualdade, economicamente, mas ao descobrimento de se a mente pode ficar livre dessa noção de superior e de inferior, dessa tendência a venerar o homem que tem muito e a desprezar o que tem pouco. Acho que o problema é este. Respeitamos os que estão em condições de ajudar-nos, de dar-nos alguma coisa, e desprezamos os que não podem fazê-lo. Acatamos o patrão, o homem que pode proporcionar-nos um emprego melhor, uma missão política; ou respeitamos o sacerdote, outra espécie de patrão, no chamado mundo espiritual. Estamos, pois, sempre respeitando e desprezando; e não pode a mente libertar-se desse estado de desprezo e de falso respeito?

Observai bem a vossa própria mente, e descobrireis não existir respeito enquanto prevalece o sentimento de superioridade e inferioridade. E o que quer que façam os governos com o fim de igualar-nos, nunca haverá igualdade, desde que todos nós temos capacidades diversas, diferentes aptidões; mas o que pode haver é um sentimento muito diferente, um sentimento de amor, talvez, no qual não existe o desprezo, o julgamento, a noção de superior e inferior, o que dá e o que recebe. Senhores, isto não são meras palavras; não estou descrevendo um estado desejável, visto que o que é desejável faz surgir o problema: “Como chegarei lá?” — o qual, por sua vez, só conduz a atitudes superficiais. Uma vez, porém, percebais a vossa própria atitude e conheçais as atividades da vossa mente, nascerá, então, talvez, um sentimento distinto, um sentimento de afeição; e não é isso que tem importância?

O mais importante não é saber porque umas pessoas têm respeito e outras não, mas, sim, o despertar aquele sentimento, aquela afeição, aquele amor (ou como quer que o chameis) em que cessa totalmente a noção de “alto” e “baixo”. E isso não é uma Utopia, não é um estado que se alcança com luta, um exercício que se deve praticar todos os dias, até chegar à meta final. Acredito, o importante é que “escutemos” a revelação desse estado, absorvendo-a como quem contempla um belo quadro, ou como quem ouve o canto de um pássaro; e se sabemos escutar verdadeiramente, o próprio escutar, a própria percepção realiza algo radical. Mas no momento em que a mente interfere com seus inumeráveis problemas, surge o conflito entre o que deveria ser e o que é; introduzimos então ideais e a imitação desses ideais, e desse modo nunca descobrimos por nós mesmos aquele estado em que não existe o desejo de ser mais, e não existe, por conseguinte, o desprezo. Enquanto vós e eu andarmos em busca de satisfação, não haverá respeito, não haverá amor. Enquanto a mente tiver o desejo de satisfazer-se com alguma coisa, haverá ambição; e é porque quase todos nós somos ambiciosos, em diferentes direções, em níveis diferentes, que esse sentimento, não de igualdade, mas de afeição, de amor, se torna impossível.

Não falo de algo sobre-humano; mas penso que, se pudermos realmente compreender a ambição, o desejo de nos tornarmos mais, de satisfazer-nos, de realizar, de brilhar, se pudermos “viver com ele”, conhecer por nós mesmos todo o seu alcance, olhá-lo como nos olhamos a um espelho, ver exatamente o que somos, sem condenação — se pudermos fazer tal coisa, que é o começo do autoconhecimento, da sabedoria, haverá então a possibilidade de nascer essa afeição.

Krishnamurti em, Percepção Criadora,
4 de julho de 1953
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill