Um dos maiores problemas com que se confronta cada um de nós é, parece-me, uma total falta de intensidade no sentir. Temos uma certa agitação emocional constante, relativamente às nossas atividades — o que se deve fazer ou o que não se deve fazer. Entusiasmamo-nos com coisas que, na realidade, não têm qualquer importância. Mas, segundo me parece, há falta de paixão — não por um determinado fim a atingir, não por algum objetivo a alcançar; refiro-me à capacidade de sentir com intensidade e força.
Geralmente, temos mentes muito superficiais — mentes limitadas, estreitas, presas a uma rotina fútil — que vão funcionando sem problemas, a não ser que aconteça um acidente qualquer; há então perturbação, mas, depois delas, as nossas mentes voltam ao estado anterior, submetendo-se a uma nova rotina. A mente superficial não é capaz de encarar problemas. Tem problemas inumeráveis, todo o problema da existência. Mas invariavelmente traduz esses problemas extraordinariamente significativos, que são os problemas da vida, de acordo com o seu entendimento superficial, estreito, limitado, e procura desviar esta caudalosa corrente da vida para os seus acanhados estreitos canais. E é com isso que estamos confrontados agora — e talvez sempre tenhamos estado. Mas muito mais agora, dado que o desafio é muito mais forte, e exige uma resposta igualmente intensa, igualmente enérgica, igualmente viva.
Esta paixão a que nos referimos não é coisa que se possa cultivar facilmente, tomando determinada droga, ficando hipnotizado por certos ideais, etc.. Ela vem naturalmente — tem de vir. Estou a usar propositadamente a palavra paixão. Em geral, só empregamos esta palavra em relação ao sexo; ou quando se sofre intensamente, “apaixonadamente”, tentando-se então terminar esse sofrimento. Mas estou a usar a palavra paixão no sentido de um estado da mente, um estado de ser, um estado da nossa íntima essência — se tal coisa existe — que sente intensamente, que é altamente sensível — igualmente sensível à sujidade, à sordidez, à pobreza, às enormes fortunas e à corrupção, à beleza de uma árvore, de um pássaro, ao correr da água, ao lago que reflete o céu crepuscular. E necessário sentir tudo isso fortemente, intensamente. Porque sem paixão a vida torna-se vazia, superficial e sem muito sentido. Se somos incapazes de ver a beleza de uma árvore e de sentir intensa afeição e interesse por ela, não estamos vivos. Uso as palavras “não estamos vivos” intencionalmente, porque, neste país, a religião parece estar completamente divorciada da beleza.
Se não somos sensíveis a essa extraordinária beleza da vida, à beleza de um rosto, às linhas de um edifício, à forma de uma árvore, ao voo de um pássaro, à canção da manhã — se não estamos atentos a tudo isso, se não sentimos intensamente tudo isso, então, obviamente, a vida, que é cooperação e relação, não tem nenhum sentido; estamos então a funcionar mecanicamente. É sobre isso que gostaria de falar esta tarde.
Esta paixão não é devoção, não é sentimentalismo; e nada tem em comum com sensualidade. Se a paixão tem algum motivo, ou se é inspirada por algum motivo, ou se é paixão por alguma coisa, torna-se prazer e dor. Por favor compreendamos isto. Não tenho agora de entrar cm detalhes, pois vamos continuar a investigar esta questão. Se a paixão é estimulada sexualmente, ou se é paixão por alguma coisa que se deseja atingir, se tem uma causa, se tem um fim em vista, então, nessa chamada paixão há frustração, há dor, há a exigência da continuação do prazer e, portanto, o medo de não ter esse prazer, a preocupação de evitar a dor. Assim, a paixão com um motivo, ou a paixão que é estimulada, acaba invariavelmente em desespero, dor, frustração, ansiedade.
Estamos a falar da paixão que não tem motivo algum — e que é completamente diferente. Se existe ou não, é a vós que pertence descobrir. Mas sabemos que a paixão que é estimulada termina em desespero, em ansiedade, em dor, ou na exigência de uma determinada forma de prazer. E nisso há conflito, há contradição, há uma exigência constante. Estamos a referir-nos a uma paixão sem motivo. Essa paixão existe. Não tem nenhuma relação com qualquer ganho ou perda pessoal, nem com as mesquinhas exigências de um determinado prazer, ou a preocupação de evitar a dor. Sem essa paixão não há possibilidade de se cooperar verdadeiramente, e cooperação é vida, que é relação. Tal cooperação não é a favor de uma ideia; coopera-se, não porque se é levado a isso pelo Estado, nem porque se quer ter uma recompensa ou evitar uma punição, nem porque se trabalha por um certo ideal econômico, por uma utopia; coopera-se, mas não no sentido de trabalhar em comum por algum ideal — tudo isso, para nós, não leva à verdadeira cooperação.
Estou a referir-me ao espírito de cooperação. Se não cooperamos, não pode haver autêntico relacionamento. A vida exige que vós e eu cooperemos, façamos coisas juntos, trabalhemos juntos, sintamos juntos, vivamos juntos, compreendamos coisas juntos. E este “sentido de união” tem de ser ao mesmo tempo, tem de ter a mesma intensidade e estar ao mesmo nível; de outro modo não há união. Se observarmos bem este mundo tão triste e destrutivo, vemos que a mente se está a tornar mecânica, rotineira e, no aspecto tecnológico, está a ser mantida num estreito canal. E, portanto, o sentido de intensidade, a capacidade de sentir intensamente em relação a alguma coisa desaparece gradualmente. E se não somos capazes de sentir intensamente, é óbvio que a mente está sensibilizada, está entorpecida, está com medo, etc...
Assim, a paixão de que estamos a falar é um estado de ser. E realmente um estado extraordinário, como hão de ver se nele penetrarem, um estado sem mancha de sofrimento, sem autopiedade, sem medo. E para o compreender, temos de compreender o desejo. Especialmente os que foram criados com ideias e sanções religiosas de uma dada sociedade, onde a chamada religião tem uma grande influência, pensam que, para “realizar” o que chamam Deus, a mente tem de estar sem desejo; acham que a ausência de desejo, o não ter desejo, é uma das primeiras e mais importantes condições. Provavelmente conheceis todos os livros que falam disto, todas as citações dos livros religiosos, e tudo o resto. Conseguimos matar toda a paixão, exceto num único aspecto — sexualmente. E conseguimos dominar o desejo. A sociedade, a religião, a vida em comum — de tudo isso fizemos uma coisa sem vitalidade, porque temos a ideia de que um homem, um ser humano que sente de modo muito forte, muito próximo de um desejo intenso, não tem possibilidade de compreender aquilo a que se chama Deus.
Que mal há no desejo? Todos o temos, o sentimos, muito intensamente ou de maneira vaga; todos sentem desejo, de uma ou de outra espécie. Que mal há nele? Por que aceitamos tão facilmente subjugar, destruir, perverter, reprimir o desejo? Porque, evidentemente, o desejo traz conflito — o desejo de riqueza, posição, fama, etc. E alcançar fama, adquirir posses, desejar com muita força, implica conflito, perturbação; e não desejamos ser perturbados. E só isso que procuramos essencialmente, profundamente — não ser perturbados. E quando nos vemos perturbados tentamos encontrar uma saída dessa situação e voltar a instalar-nos num estado reconfortante, onde nada nos venha perturbar.
Assim, o desejo é olhado por nós como uma perturbação. Reparemos nisto, por favor. Estamos a apontar fatos psicológicos — não se trata de uma questão de aceitar ou não aceitar, de concordar ou discordar. São fatos, e não opiniões minhas. O desejo torna-se assim uma coisa que é preciso controlar, reprimir; e, portanto, esforçamo-nos nesse sentido — custe o que custar, não vamos deixar-nos perturbar, e tudo o que possa perturbar deve ser reprimido, “sublimado” ou posto de lado.
Como dissemos outro dia e de novo dizemos em cada palestra, o que é importante não é ouvir as palavras, mas escutar realmente. Há grande beleza no escutar. Esta tarde, vimos da janela um pássaro, um alcião. Tinha um bico comprido e penas brilhantes, de cor intensamente azul. Estava a chamar, com o seu canto, e outra ave da mesma espécie, outro alcião, respondia ao longe. Ficar apenas a escutá-lo — sem dizer, “É um alcião. Como é belo!”, ou “Como é feio!”, “Quem me dera que aquela espécie de corvo parasse de grasnar!” — não sei se já alguma vez escutaram com esse estado de espírito. Escutar, simplesmente — quando não há nada a lucrar, quando não há qualquer objetivo utilitário; escutar, quando não se está a tentar alcançar, ou evitar, alguma coisa. Ou olhar o sol poente, aquele esplendor do entardecer, aquele brilho de Venus, aquele pequeno retalho de lua crescente — olhar, apenas, e sentir intensamente tudo isso.
Se escutarmos, de fato, nessa feliz disposição, tranquilamente, sem qualquer tensão, então o próprio ato de escutar é um verdadeiro milagre. Milagre, porque nessa ação, nesse momento, compreendemos tudo o que está contido no ato de escutar, de perceber, de ver; foram eliminadas todas as barreiras, e há espaço, entre nós e o mundo, e aquilo que estamos a escutar. Precisamos de ter esse espaço para observar, ver, escutar; quanto mais amplo, quanto mais profundo ele for, mais beleza e profundidade haverá. E algo de qualidade diferente surge quando há esse espaço entre nós e aquilo que estamos a escutar.
Não estou a ser poético, sentimental ou romântico. Mas, na realidade, não sabemos escutar, escutar simplesmente — escutar a nossa mulher, ou o nosso marido, que está a implicar, a questionar, a zangar-se ou a arreliar-nos. Quando apenas escutamos, compreendemos muito; e os céus abrem-se-nos largamente. Façamos isso, de quando em quando; não o tentemos apenas — façamo-lo, e descobriremos por nós mesmos.
Espero que estejais a escutar dessa maneira. Porque aquilo de que estamos a falar é algo que está além da mera palavra. A palavra não é a coisa. A palavra “paixão” não é paixão. Sentir aquilo que transcende a palavra, e deixar-se “captar” por isso, sem qualquer volição, sem diretiva ou objetivo, escutar aquilo a que se chama desejo, escutar os nossos próprios desejos — e temos tantos, vagos ou intensos — então, quando os escutarmos, veremos o enorme mal que fazemos quando reprimimos o desejo, quando o distorcemos, quando queremos satisfazê-lo, quando queremos fazer alguma coisa em relação a ele, quando temos uma opinião a seu respeito.
A maior parte das pessoas perdeu o sentir apaixonado. Talvez o tenha tido outrora, na juventude — talvez apenas num vago murmúrio — tornar-se rico, alcançar a fama, e viver uma vida burguesa, respeitável... Mas a sociedade — que é o que nós somos — reprime o sentir. E, assim, cada um é levado a ajustar-se àqueles que estão “mortos”, que são “respeitáveis”, que não têm sequer uma centelha de paixão; e passa então a fazer parte deles, perdendo assim o sentir apaixonado.
Para compreender todo este problema do desejo, temos de compreender o esforço. Porque, desde o momento em que vamos para a escola até morrermos, vivemos num constante esforço; a nossa mente, a nossa psique, é um campo de batalha. Nunca há um momento de quietação, de descompressão, de liberdade; estamos sempre a batalhar, a lutar, a esforçar-nos, a adquirir, a evitar, a acumular — é isto a nossa vida! Não estou a descrever uma coisa que não existe. A nossa vida é esforço constante. Não sei se já notastes que quando não fazemos qualquer esforço o que não quer dizer estagnar ou dormir — quando todo o nosso ser está tranquilo, sem esforço, então vemos as coisas com muita clareza e penetração, com vitalidade, energia, paixão.
Fazemos esforço, porque somos impelidos por dois ou mais desejos contrários. Estamos sempre a opor um desejo a outro desejo, o desejo de ter e o desejo de não ter — se temos realmente este problema... Mas se temos um só desejo, não há então problema nenhum. Procuramos satisfazê-lo implacavelmente, lógica ou ilogicamente, com todas as suas consequências — dor, prazer. Mas como em geral somos um pouco civilizados — embora não demais... — temos esses desejos contrários e assim há sempre uma batalha.
Há o preceito religioso que manda viver sem desejo — o padrão, o ideal estabelecido por este ou aquele instrutor, este ou aquele “guru”, por meio de uma constante repetição. Há o padrão implantado na consciência, através de séculos de propaganda, a que chamam “religião”. E há também, por outro lado, o desejo instintivo de cada um, em face das exigências, das pressões, das tensões cotidianas. Há assim contradição entre o padrão religioso e o desejo. E a pessoa tem de reprimir um e aceitar o outro, ou recusar o outro e não abandonar aquele que tem — e tudo isso implica esforço.
Para mim, todo o ato de “vontade”, todo o ato de desejo — e o desejo é uma reação — tem de trazer consigo esforço e contradição, e implica, portanto, uma mente dividida, dilacerada entre desejos inumeráveis. Por exemplo, vê-se uma determinada coisa, um carro, um belo carro; tomamos contacto com ele por meio dos sentidos, e vem-nos então o desejo de o possuir. Ou podemos ter qualquer outra forma de desejo — mas podemos sempre observar por nós mesmos como o desejo nasce. Quando nasce em nós qualquer desejo, temos também consciência do desejo de o reprimir — desejo este inculcado pela tradição, e que está profundamente enraizado nas pessoas. Mas quando um desejo nasce, temos de dar-lhe atenção, de o compreender, de escutar todos os indícios e sinais. Temos de o escutar — em vez de o negar, de o reprimir, de o pôr de lado ou de fugir-lhe. Não é possível fugir dos desejos.
Os “santos” e “yogis” são impelidos, dilacerados pelo desejo. Quando se vestem como ascetas e se cobrem de cinzas, pensam que levam uma vida simples. Nada disso. Interiormente estão em ebulição, tendo, ou não, consciência disso — e não sabem o que hão de fazer. E assim tornam a sua vida e a sua congregação de “santos” uma coisa feia, desumana, envenenada, cheia de ressentimentos. Porque quando não se compreende o desejo, cria-se inimizade e antagonismo. E por mais que se pregue a fraternidade isso não terá qualquer significado se não se compreender essa coisa tão simples chamada desejo. Se negamos o desejo, se dizemos, por exemplo, “Já passei por uma provação com esse desejo e não devo tê-lo mais”, então estamos meramente a comparar o desejo presente com uma experiência que já tivemos e se tornou uma lembrança que irá controlar o desejo. E assim ficamos de novo enredados na batalha.
Mas, ao nascer cada desejo — mesmo que da coisa mais simples — temos de observá-lo, de vê-lo nascer, viver, florescer, ganhar vitalidade. E se não o reprimirmos, se não o compararmos, se ele não for dominado pela lembrança daquela passada experiência, e se pudermos observá-lo com aquele espaço de que falamos, veremos então que esse desejo se vai transformando num sentir intenso e sem objeto, se vai transformando apenas num sentir. Mas para quase todos nós, a vontade é que é importante, necessária, ou pelo menos pensamos que o é. A vontade é uma corda tecida de muitos desejos. E no momento em que existe vontade, vontade de levar até ao fim, ou vontade de negar, está-se num estado de resistência. E, portanto, regressa-se outra vez a um estado de conflito.
Estamos a falar de uma mente amadurecida, que compreende o conflito. A mente que compreende o conflito, que compreende toda esta questão de desejo, com todos os seus problemas, está amadurecida — e só essa mente pode compreender o que é real, o que é verdadeiro. Só ela, e não a mente que reprime o desejo, pode compreender a realidade. Porque para compreender o que é verdadeiro, precisamos de paixão. A paixão é uma energia extraordinária que nos impele e que não é estimulada, nem movida pelo desejo. E uma chama, e sem ela nenhuma transformação podemos criar no mundo, porque o mundo está cheio de problemas.
E como fazemos parte do mundo, estamos cheios de problemas — os conflitos entre marido e mulher, a desumanidade, o problema da fome, neste país, na Ásia, em geral, etc.; os problemas da guerra; a chamada “paz”; o problema da cooperação. Há problemas, e não podemos evitá-los. Em nós, existem a cada minuto e, consciente ou inconscientemente, estão a afetar a nossa mente. E, ou os compreendemos quando eles surgem, quando tomamos consciência deles — e compreendê-los é resolvê-los em nós, imediatamente — ou os transportamos para o dia seguinte. Transportá-los para o dia seguinte é o verdadeiro problema — e não se resolveremos, ou não, os problemas. Porque quando os transportamos para o dia seguinte, a mente torna-se embotada, entorpecida; damos tempo ao problema para se enraizar na nossa mente. Portanto, submetemos as células do cérebro a uma pressão, a uma tensão que as fatiga. Um cérebro cansado não tem possibilidade de compreender. Precisamos de uma mente fresca, em cada dia. Assim, temos de compreender os problemas, e não de os adiar.
E para compreender um problema, a primeira condição é não dizer “Tenho de o resolver, tenho de encontrar uma resposta, preciso de descobrir uma saída; como é que vou encontrar a solução correta?” — não nos inquietarmos com o problema, como um cão com um osso. Mas é só isso o que fazemos, e quanto mais nos afligimos, tanto mais sérios nos julgamos. Observai, por favor, as vossas mentes, a vossa vida, e não as palavras que se estão a dizer. Para resolver problemas — resolvê-los e não adiá-los — temos de olhar para eles; temos de ser bastante sensíveis, para observar as implicações, o significado, a natureza íntima de um problema. Isso significa que temos de o escutar — escutar todos os seus “murmúrios”, todo o seu significado, não apenas verbalmente, mas ver, sentir, tocar o problema, com os olhos, nariz, ouvidos, com todo o nosso ser. Isso significa não ficar enredado na palavra que aponta para o problema. Não sei se compreendeis que a palavra não é o problema. A palavra “árvore” não é árvore. Mas, para quase todos nós, a palavra é que é importante e não o que está por trás da palavra; o símbolo tem muito mais significado do que o fato.
A mente tem, assim, de estar desperta, cheia de vitalidade, a observar, a escutar cada problema. O problema existe, e não podemos negá-lo. Um problema significa uma resposta a um desafio, e podemos responder totalmente, completamente ou de modo inadequado. Uma resposta inadequada ao desafio é que cria o problema. Não estamos sempre despertos, não somos capazes de estar atentos, sensíveis, nas vinte e quatro horas do dia; assim, as nossas respostas são inadequadas, e é isso que cria o problema; além disso, não enfrentamos o problema imediatamente. Enfrentar completamente o problema imediato — um pensamento, um sentimento — não é tentar resolvê-lo, não é fugir dele, não é compará-lo, não é dizer, “Este é o modo de o resolver” — todas as coisas vagas e absurdas de que a mente e o cérebro se ocupam, na esperança de compreender o problema. Encarar o problema de modo completo é escutá-lo, estar sensível a ele. E não podemos estar sensíveis ao problema se estamos a fugir dele, se o estamos a reprimir, se já temos para ele uma “resposta”.
Começamos assim a ver que a mente tem de estar desperta e sensível. Estou a usar a palavra mente para designar a interação entre o cérebro e a “coisa” que controla o cérebro, pois a mente não é formada apenas pelos nervos, pelas células cerebrais; ela é aquilo que não só é transcendente, mas também é constituída por células — a coisa total. A mente de quase todos nós está sobrecarregada de inúmeros problemas, e em cada dia lhes juntamos outros. Assim, todo o nosso ser se torna embotado, e perdemos toda a sensibilidade. E quando não somos sensíveis, fazemos esforço. Vejamos, por favor, o círculo vicioso em que estamos enredados.
Assim, é necessário compreender o desejo. Temos de compreender o desejo, e não de “viver sem desejo”. Se se mata o desejo, fica-se paralisado. Quando olhamos aquele pôr do sol à nossa frente, o próprio ato de olhar é um encantamento, se somos realmente sensíveis. Isso também é desejo — o encantamento. E se não somos capazes de ver o pôr do sol e de nos encantarmos com ele, não somos sensíveis. Se vemos um homem rico num belo automóvel e não somos capazes de gostar de ver isso — não porque desejamos tal coisa, mas simplesmente por vermos alguém a guiar um belo carro — ou se, ao vermos um pobre ser humano, sujo, andrajoso, inculto, desesperado, não sentimos uma pena imensa, afeição, amor, não somos sensíveis. Como podemos então encontrar a Realidade se não temos essa sensibilidade, esse sentir profundo?
Temos, assim, de compreender o desejo. E para compreender cada incitamento do desejo, temos de ter espaço, e de não tentar preencher esse espaço com os nossos pensamentos ou lembranças, ou com a preocupação de como satisfazer ou destruir esse desejo. Dessa compreensão nasce, então, o amor. Geralmente, não temos amor, não sabemos o que ele significa. Conhecemos o prazer, conhecemos a dor. Conhecemos a inconsistência do prazer e, provavelmente, a continuidade da dor. E conhecemos o prazer sexual e também o prazer de alcançar fama, posição, prestígio, e o prazer de exercer um enorme domínio sobre o próprio corpo, como os ascetas, de manter um “Record”... — conhecemos todas estas coisas. Falamos interminavelmente acerca do amor; mas não sabemos o que ele significa, porque não compreendemos o desejo, que é o começo do amor.
Sem amor não há verdadeira moralidade; o que há é ajustamento a um padrão, social ou supostamente religioso. Sem amor não há virtude, integridade. O amor é espontâneo, real, vivo. E a bondade não é uma coisa que se possa criar pelo exercício constante; é espontânea, como o amor. A virtude não é uma lembrança de acordo com a qual funcionamos como ser humano “virtuoso”. Se não temos amor, não somos bondosos. Podemos frequentar templos, levar uma vida familiar extremamente respeitável, seguir as regras da moral social, mas não somos bondosos. O nosso coração é estéril, vazio, está embotado, entorpecido, por não compreendermos o desejo. A vida, portanto, torna-se um constante campo de batalha e o esforço só termina com a morte. Só termina com a morte, porque só sabemos viver com esforço.
Assim, para compreender o desejo precisamos de compreender, de escutar, cada movimento da mente e do coração, cada alteração, cada mudança do pensamento e do sentir, precisamos de observar o desejo, de nos tornarmos sensíveis, despertos a ele. Não podemos tornar-nos sensíveis ao desejo se o condenarmos ou se o compararmos. Temos de estar muito atentos ao desejo, porque ele nos dará uma compreensão imensa. E dessa compreensão nasce a sensibilidade. Somos então sensíveis — e não só fisicamente sensíveis — à beleza, à sujidade, às estrelas, ao sorriso ou às lágrimas, e sensíveis também a todos os murmúrios, a todos os sussurros que nos povoam a mente, aos nossos secretos medos e esperanças.
E desse escutar, desse observar, vem a paixão, esta paixão igual ao amor. Só neste estado se é capaz de cooperar. E, porque se é capaz de cooperar, também só neste estado se pode saber quando não se deve cooperar. Assim com esta profunda compreensão e vigilância, a mente torna-se eficiente, lúcida, cheia de vitalidade e de vigor; e só uma mente assim pode viajar para muito longe.
Krishnamurti, Madrasta, 22 de janeiro de 1964,
O despertar da sensibilidade