Para descobrirmos o significado do amor não deveremos estar livres do sentimento de posse, do sentimento de apego, do ciúme, da irritação, do ódio, da ansiedade e do medo? Tomemos por ora a libertação do apego. Quando sentimos apego, a que coisa nos sentimos apegados? Suponhamos que sentimos apego por uma mesa qualquer. Que coisa implica esse sentimento? Prazer, uma certa sensação de posse, a apreciação da sua utilidade, e sensação de ser uma coisa estupenda, etc. E quando um indivíduo sente apego por outro, o que acontece? Quando alguém sente apego por nós, que sensação sentirá? Há nesse apego uma sensação de orgulho pela posse, uma sensação de domínio, medo de nos perder e portanto ciúme, e desse modo um fortalecimento do sentimento de apego, uma maior sensação de posse e ansiedade. Mas, a ansiedade do apego não significará ausência de amor e responsabilidade?
Para a maioria de nós amar significa esse conflito terrível existente entre os seres humanos, que torna as relações pessoais num perpétuo acto de ansiedade. Isso é sobejamente conhecido, e escusado seria referi-lo. Mas nós chamamos a isso amor. E depois, para podermos fugir dessa enorme tensão a que chamamos "amor", recorremos a todo o gênero de entretenimentos, desde a televisão até á religião; de seguida voltamos a sentir-nos postos em questão e uma vez mais voltamos costas em direção à Igreja, ou ao templo para, uma vez de volta fazermos exatamente a mesma coisa. Isso está a acontecer o tempo todo. Será que o homem (ou a mulher) não poderão ver-se livres disso tudo, ou tal coisa é impossível? Se não for possível então a vida deve ser um estado de perpétua ansiedade em resultado do que ocorrerá todo o tipo de atitudes, crenças e atos neuróticos. Será, pois, possível sermos livres do apego? Isso implica uma tarefa e tanto. Será que conseguiremos ter liberdade do apego e ainda assim possuir um sentido de responsabilidade? Mas ser-se livre do apego não quer dizer o seu contrário, o desapego. Muito importa entender isto porque quando sentimos apego e conhecemos a sua dor, a sua ansiedade, dizemos: ”Por amor de Deus, tenho que me desafeiçoar de todo este horror”. E assim dá-se início a toda uma luta pelo desapego e pelo conflito.
Se tivermos consciência da palavra e do fato (da palavra apego) e possuirmos liberdade com relação à palavra, com relação á sensação, não seremos então capazes de observar a sensação sem nenhum julgamento, e perceber se dessa observação total não poderá ocorrer um movimento completamente distinto que nem constitua apego nem desapego? Estarão a empreender isso á medida que conversamos ou estão meramente a escutar um amontoado de palavras?
Têm consciência que possuem uma vasta sensação de apego por uma crença, um preconceito, uma conclusão, uma pessoa ou por algum ideal- apego esse que lhes dá um enorme sentido de segurança, mas que todavia é uma ilusão, não será?
É uma ilusão estar-se apegado a alguma coisa, simplesmente porque essa coisa pode desaparecer. Por isso aquilo a que estão apegados é a imagem que criaram acerca da coisa. Assim, poder-se-á ser livre do apego de modo que daí resulte um sentido de responsabilidade que não constitua nem um dever nem uma obrigação?
E que coisa será então o amar se não houver sentimento de apego? Se sentirmos apego pela nação, passaremos a venerar a nação com todo um sentido de isolamento em relação às demais, o que é uma forma de tribalismo glorificado. Mas isso deverá contribuir para nos dividir, não será? Se eu possuir um tremendo sentido de ligação á minha nacionalidade de Hindu e vós tiverdes idêntico sentimento com relação á vossa nacionalidade de franceses, italianos ou ingleses, então estaremos apartados e a guerra com toda a sua complexidade só poderá ter continuidade.
Já se não possuirmos tal sentimento de apego o que é que acontecerá? Poderá ocorrer o amor? Por isso, o apego é separativo. Se estiver apegado á minha crença e vós á vossa, desse jeito ocorrerá uma separação. Vejam as consequências e as implicações disso. Onde houver apego haverá separação e portanto conflito. E onde houver conflito não poderá haver amor.
Que relacionamento haverá entre duas pessoas se existir liberdade do apego e das suas implicações? Poderá ser o início da compaixão? Utilizo a palavra início mas não enveredem já por aí.
Se não existir o sentimento de nacionalidade nem apego a qualquer crença ou conclusão então as suas relações brotarão de um sentimento de liberdade, amor e compaixão. Vejam bem, isso faz parte da tomada de consciência.
Mas, deveremos empregar a análise, como o fizemos para ver o significado do apego — com todas as suas implicações — ou poderemos observar a sua totalidade instantaneamente e só então analisar? Não ao contrário, muito embora estejamos acostumados á análise e com ela despendamos muito tempo. Mas propõe-se algo completamente diferente: observar — perceber a sua totalidade e então analisar. Então isso tornar-se-á muito simples. Porém, se analisarmos primeiro e de seguida procurarmos alcançar a totalidade podemos ser mal sucedidos; e isso é o que geralmente acontece.
Mas, a observação da totalidade de uma coisa — que significa não impor sentido nenhum de direção — tanto torna a análise importante como não importante, de modo que tanto podeis empregar a análise como não.
Gostaria porém, de adentrar uma outra questão a que isto conduz. A de sabermos se existe algo de sagrado na nossa vida, que faça parte de tudo isto. Existirá na nossa vida alguma coisa sagrada, santificada? Removam a palavra, separem a palavra da imagem e do símbolo — o que é bastante perigoso — e tendo-o feito questionem-se se existirá alguma coisa verdadeiramente sagrada na vida, ou se tudo não será um mero agregado superficial do pensamento — porque o pensamento não é sagrado. Concordam? Mas vocês pensam que o pensamento e aquilo que ele reuniu são sagrados, porque foram condicionados a tal coisa; fomos condicionados como hindus, budistas ou cristãos a venerar, a adorar, a orar para coisas que o pensamento criou. E chamámos isso de sagrado.
Temos que descobrir isso porque se não pesquisarmos a existência do que seja verdadeiramente sagrado, e não reunido pelo pensamento, a vida torna-se cada vez mais superficial e mecânica, e então a questão de pôr fim a essa forma de vida será completamente destituída de sentido.
Vejam bem, nós encontrámo-nos de tal modo apegados ao pensar e a todo o seu processo que chegamos a venerar as coisas que o pensamento criou. A imagem, o símbolo, a escultura, que foram criados quer pela mão quer pela mente, constituem um processo de pensamento. Mas o pensamento é memória, experiência e conhecimento; tudo isso é o passado e esse passado modifica-se através da tradição; e por sua vez esta torna-se a coisa mais sagrada. Assim, veneramos a tradição, não é mesmo?
Haverá alguma coisa que não tenha nada que ver com o pensamento nem com a tradição, com rituais e todo esse circo? Temos de o descobrir. Mas como haveremos de o fazer? Não que tenhamos de recorrer a qualquer método, porque ao utilizar a palavra como, não estou a sugerir método nenhum.
Existirá pois alguma coisa sagrada na vida? Há todo um conjunto de pessoas que afirma não existir nada sagrado, absolutamente. Dizem que somos o resultado do meio, cuja estrutura podemos modificar sem precisar recorrer a conversa nenhuma com relação ao que quer que seja desse domínio; dizem eles que se agirmos de modo mecânico poderemos tornar-nos indivíduos perfeitamente felizes. Porém, se formos verdadeiramente sérios com relação à questão — e temos que ser profundamente sérios — não pertenceremos nem ao bloco materialista nem ao religioso; que, por sua vez também se acha fundado no pensamento. Em vez disso temos de descobrir a resposta. Não afirmaremos coisa nenhuma, mas trataremos de começar a inquirir.
Mas, o que significa inquirir, de modo a podermos descobrir na nossa vida essa questão do sagrado, desse algo santificado — não na nossa vida, mas — na vida — no viver? Haverá alguma coisa supremamente sagrada? Ou não existirá absolutamente nada?
Precisamos possuir uma mente bastante silenciosa, pois somente nessa liberdade poderemos descobri-lo. Temos que ter liberdade para olhar porém, se dissermos que é preferível manter as crenças, que nos são mais gratificantes, então não seremos livres. E se dissermos que tudo não passa dum processo material, um movimento do pensamento, também não seremos livres. Assim, para o observarmos, tem de haver liberdade com relação às imposições da civilização, dos desejos pessoais, às esperanças pessoais, aos preconceitos, aos anseios e aos medos.
Só podemos observar quando a mente se encontra completamente silenciosa; será que ela poderá permanecer nesse estado sem movimento completamente nenhum? Porque se houver movimento haverá distorção.
Achamos isso terrivelmente difícil porque o pensamento eclode imediatamente e aí dizemos ter de o controlar. Todavia o controlador é a coisa controlada, e se o perceberem, se perceberem que o pensador é o pensamento e que o controlador é a coisa controlada — e o observador a coisa observada — então todo o movimento cessará. Então tomaremos consciência de que a irritação é parte do observador que diz estar irritado, e de que a irritação e o observador são a mesma coisa. Isso é bastante simples e evidente. Do mesmo modo, o pensador que procura controlar o pensamento é ainda pensamento. Se tomarmos consciência disso o movimento do pensamento cessará. E quando não subsistir nenhum movimento na mente — nenhum tipo de movimento — então esta permanecerá naturalmente quieta sem esforço nem compulsão e sem o desejarmos. Ela tornar-se-á naturalmente imóvel. Não se trata de uma imobilidade cultivada porque isso constitui um processo mecânico e não imobilidade, de todo, mas somente uma aparência de imobilidade.
Desse modo resultará liberdade e isso implicará tudo aquilo de que falamos; nessa liberdade haverá silêncio, silêncio esse que significa ausência de movimento. Então, seremos capazes de observar, porque então existirá observação; então existirá unicamente observação e não o observador a observar. Então só existirá observação procedente do completo silêncio, da completa imobilidade da mente.
E que acontece nesse estado?
Se tivermos avançado até esse ponto, que significa liberdade do próprio condicionamento, e assim também ausência de todo o movimento, completo silêncio, imobilidade, então a inteligência entra em operação, não será? Porque perceber a natureza do apego e das suas implicações e obter um vislumbre disso significa inteligência. Somente quando tivermos chegado a esse ponto — que significa que seremos livres — e movermos a operação da inteligência, poderemos ter uma mente serena, saudável e tranquila. E nessa tranquilidade descobriremos se existe alguma coisa verdadeiramente sagrada ou não.
Krishnamurti - 1Agosto 1976