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sábado, 24 de março de 2018

Beleza e Percepção


BELEZA E PERCEPÇÃO

Interlocutor P: Onde descansa a beleza? Onde reside? Evidentemente, as manifestações exteriores de beleza são observáveis; a correta relação entre espaço, forma e cor, e a correta relação entre os seres humanos. Mas, qual é a essência da beleza? Nos textos sânscritos se igualam três fatores: a Verdade, o Bem, a Beleza  Satyam, Sivam, Sundaram.

KRISHNAMURTI: O que você trata de investigar? Quer investigar a natureza do belo? O que os profissionais dizem a respeito?

P:  O tradicionais dirão: Satyam, Sivam, Sundaram. O artista de hoje não distinguirá entre o aparentemente feio e o aparentemente formoso, mas consideraria o ato criativo como a expressão de um momento, de uma percepção que se transforma dentro do indivíduo e  encontra expressão na obra do artista.

KRISHNAMURTI: Você pergunta que é a beleza, que é a expressão da beleza e como se realiza o indivíduo mediante a beleza. Que é a beleza? Se você começara como se não soubesse nada a respeito, qual seria sua reação? Este é um problema universal. O tem sido para os gregos, para os romanos, e segue sendo um problema para o homem contemporâneo. O que é então a beleza? Ela está no por de sol, numa manhã formosa, na relação humana, na mãe e o menino, no esposo e a esposa, o homem e a mulher? Radica a beleza no movimento extraordinariamente sutil do pensamento, e em uma clara percepção? É isso o que coce chama de beleza?

P: Pode também haver beleza no terrível, o feio?

KRISHNAMURTI: Há beleza no assassinato, nas carnificinas, no lançar bombas, na violência, na mutilação, na tortura, na cólera? Há beleza no brutal, na perseguição agressiva e violenta de uma ideia, no desejo de ser superior que algum outro?

P: Em todos esses atos não há beleza.

KRISHNAMURTI: Onde está a beleza se um homem ataca a outro?

P: Na obra criativa de um artista que interpreta o terrível como o “Guarnica” de Picasso, há beleza?

KRISHNAMURTI: Então temos que perguntar-nos o que é a expressão, o que é a criatividade. Você pergunta o que é a beleza. Ela está em um por do sol, na pura luz da manhã, no entardecer, na luz sobre a água, na relação, etc. Há beleza em qualquer forma de violência, incluída a realização competitiva? Existe a beleza per si, e não no modo como o artista se expressa a si mesmo? Um menino torturado pode ser expressado pelo artista, mas, isso é beleza?

P: A beleza é uma coisa relativa.

KRISHNAMURTI: O “eu” que vê é relativo, condicionado, está preso na busca da própria realização. Antes de tudo, o que é a beleza? É o bom gosto? Ou a beleza nada tem que ver com todas essas coisas? Consiste a beleza na expressão e, portanto, na realização? Por isso o artista diz: devo realizar-me por meio da expressão. Um artista estaria perdido sem a expressão, que é parte da beleza e da auto-realização. Assim, antes de investigar tudo isto, qual é a natureza intrínseca, o sentimento, a condição sutil da palavra beleza, de tal modo que a beleza seja verdade, e a verdade, beleza?

De algum modo, mediante a expressão, tratamos de encontrar beleza na arquitetura, na maravilhosa ponte — a Golden Gate de São Francisco ou o poente sobre o rio Sena —, nos modernos edifícios de vidro e aço, e na delicadeza de uma fonte. Buscamos a beleza nos museus, na sinfonia. Sempre estamos buscando a beleza na expressão de outras pessoas. O que há de mal em um homem que vai em busca da beleza?

P: A expressão de outras pessoas são as únicas fontes acessíveis para nós.

KRISHNAMURTI: E isso, o que significa?

P: Ao ver a ponte, dentro de mim surge uma certa qualidade à que chamamos beleza. É só com a percepção de algo belo que aparece a qualidade da beleza em muitos indivíduos.

KRISHNAMURTI: Compreendo isso. E pergunto: a beleza está na autoexpressão?

P: Você tem que começar com o que existe.

KRISHNAMURTI: O que é a expressão de outras pessoas. Não tenho a visão perceptiva, o estranho sentimento interno da beleza, digo: que formosa é essa pintura, esse poema, essa sinfonia. Se acabamos com tudo isso, o individuo não conhece a beleza; portanto, para sua apreciação da beleza ele confia na expressão, no objeto, na ponte ou em uma boa cadeira.

A beleza requer expressão, especialmente, autoexpressão?

P: Ela pode existir independentemente da expressão?

KRISHNAMURTI: A percepção da beleza é sua expressão, não são duas coisas separadas. Percepção, visão, ação; perceber é expressar. Nisso não há, absolutamente, um intervalo de tempo. Ver é fazer, atuar. Não existe uma brecha entre o ver e o fazer.

Quero ver a mente que vê, a mente em que o ver é atuar; quero observar a natureza da mente que possui esta qualidade. O que é esta mente? No essencial, ela não se preocupa com a expressão. A expressão pode ter lugar, mas a mente não está interessada em expressar-se. Porque a expressão toma tempo — construir uma ponte, escrever um poema —, mas a mente que vê, que percebe, está em plena ação. Para uma mente assim o tempo, absolutamente, não existe; essa mente é uma mente sensível, é uma mente que possui o mais alto grau de inteligência. E sem essa inteligência, há beleza?

P: Que lugar o coração tem nisto?

KRISHNAMURTI: Você se refere ao sentimento de amor?

P: A palavra “amor” está muito carregada. Se você permanece quieto, silencioso, há uma estranha sensação, tem lugar um movimento a partir da região do coração. O que é isto? É algo necessário ou é um estorvo?

KRISHNAMURTI: Esta é a parte mais vital e indispensável; sem ela não há percepção. A mera percepção intelectual não é percepção. A ação da percepção intelectual só é uma ação fragmentária, enquanto que a inteligência inclui o afeto, o coração. De outro modo você não é sensível, não pode perceber. Perceber é atuar. Perceber, atuar sem tempo, é beleza.

P: Os olhos e o coração operam simultaneamente no ato de perceber?

KRISHNAMURTI: A percepção significa atenção plena — nervos, ouvidos, cérebro, coração, tudo opera em seu mais alto nível. De outro modo não há percepção.

P: A qualidade, a natureza fragmentária da ação sensorial, consiste em que todo o organismo não opera ao mesmo tempo.

KRISHNAMURTI: O cérebro, o coração, os nervos, a vista, o ouvido — a coisa total —, nunca se acham em um estado de atenção plena. Se não estão, você não pode perceber. Portanto, o que é a beleza? Ela está na expressão, na ação fragmentária? Eu posso ser um artista, um engenheiro, um poeta. O poeta, o engenheiro, o artista, o cientista, são seres humanos fragmentários.  Um fragmento se torna extraordinariamente perceptivo, sensível, e sua ação pode expressar algo maravilhoso. Mas essa segue sendo uma ação fragmentária.

P: Quando o organismo percebe a violência, o terreiro da perversidade, o que é esse estado?

KRISHNAMURTI: Tomemos a violência em suas múltiplas formas. Mas, por que você formula esta pergunta?

P: É necessário formulá-la para investigar isto.

KRISHNAMURTI: Você pergunta se a violência forma parte da beleza?

P: Eu não colocaria desse modo.

KRISHNAMURTI: Você vê a violência. Qual é a resposta de uma mente perceptiva — no sentido em que estamos usando a palavra “perceptiva” —, para toda forma de destruição, a qual é parte da violência? (Pausa).

O captei! É a violência um ato totalmente perceptivo ou uma ação fragmentária?

P: Não está claro. Não se trata disso.

KRISHNAMURTI: Você introduziu a violência. Eu quero investigar a violência. A violência é um ato de uma percepção totalmente harmoniosa?

P: Não.

KRISHNAMURTI: Você diz então que é uma ação fragmentária, e a ação fragmentária deve negar a beleza.

P: Você inverteu a situação.

KRISHNAMURTI: Qual é a resposta de uma mente perceptiva quando vê a violência? A olha, a investiga e a vê como uma ação fragmentária. Portanto, não é um ato de beleza. O que ocorre a uma mente perceptiva quando vê um ato de violência? Essa mente vê “o que é”.

P: Segundo isso, para você, a natureza da mente, não muda?

KRISHNAMURTI: Por que haveria de mudar? A mente está vendo “o que é”. Avance um passo a mais.

P: O fato de ver “o que é”, muda a natureza de “o que é”? Há um perceber. Há a violência, que é fragmentária. A percepção disso, modifica a natureza da violência?

KRISHNAMURTI: Espere um momento. Você pergunta qual é o efeito de uma mente perceptiva que observa a violência, não é certo?

P: Você disse que ela vê “o que é”: Isso altera “o que é”? A mente perceptiva observa a violência e vê “o que é”, o fato mesmo de ver, atua sobre a violência mudando sua natureza?

KRISHNAMURTI: Você quer saber se a mente perceptiva, ao ver o ato de violência, de “o que é”, pergunta: que devo fazer?

P: Uma mente assim não “faz”. Sem dúvida, por parte da mente perceptiva tem que haver uma ação que modifica a natureza do ato violento do outro.

KRISHNAMURTI: Que ação poderia haver por parte da mente perceptiva?

P: Essa mente “vê” a violência que provem de X. Ver é atuar.

KRISHNAMURTI: Mas o que ela pode fazer?

P: Eu diria que se a mente perceptiva atua, deve modificar a violência em X.

KRISHNAMURTI: Deixemos isto claro. A mente perceptiva vê que o outro atua violentamente. Para ela, o mesmo ver é o fazer. Esse é um fato: que a percepção é ação. Esta mente perceptiva vê a X atuando com violência. Qual é a ação envolvida nesse ver? A de deter a violência?

P: Todas essas ações são periféricas. O que eu digo é que quando uma mente perceptiva se depara com um ato de violência, o mesmo ato de ver altera a ação da violência.

KRISHNAMURTI: Há várias coisas envolvidas nisto. A mente perceptiva vê um ato de violência. O homem que está atuando violentamente pode responder não-violentamente, porque a mente perceptiva esta próxima, muito próxima dele, e isso ocorre prontamente.

P: Alguém vem a Você com um problema — ciúmes. O que ocorre em uma entrevista com você quando a ela chega uma pessoa que está confusa? No ato mesmo de perceber, não há confusão alguma.

KRISHNAMURTI: É obvio que isso tem lugar por causa do contato. Você tomou o aborrecimento de discutir a violência, e algo ocorre porque compartilhamos juntos o problema de maneira direta. Há comunicação. É muito simples. Você vê a um homem que está agindo com violência e esse homem se encontra muito longe.  Qual é aí a ação da mente perceptiva?

P: Uma mente perceptiva deve emanar uma tremenda energia. Isso tem que exercer alguma ação.

KRISHNAMURTI: Talvez atue. Não se pode estar seguro disso como posso está-lo quando se encontra próximo. Talvez o outro se desperte em meio da noite, talvez se dê conta que a resposta chega estranhamente mai tarde, depende da sensibilidade. Isso pode dever-se ao impacto da mente perceptiva, enquanto que esta comunicação estreita é diferente. Ela produz uma modificação.

Voltemos. Você perguntava o que é a beleza. Penso que podemos dizer que a mente que em si não é fragmentária, que não está dividida, tem esta beleza.

P: A beleza está relacionada de algum modo com a percepção sensorial se se fecha os olhos e os ouvidos...?

KRISHNAMURTI: É independente disso. Quando você fecha os ouvidos, os olhos, não há fragmentação; portanto, isso tem a qualidade da beleza, da sensibilidade. Não depende da beleza externa. Ponha o instrumento de uma mente assim, em meio da cidade mais ruidosa. O que ocorre? A partir do ponto de vista físico, ele se vê afetado, mas não a qualidade da mente que não se acha fragmentada. Ela é independente das circunstancias que a rodeiam; portanto, não se interessa na expressão.

P: Isso significa a solidão da mente.

KRISHNAMURTI: Em consequência, a beleza é solidão. Por que este desejo veemente de autoexpressão? Ele faz parte da beleza, tanto se é o desejo de uma mulher de ser mãe, ou do marido por sexualidade nesse momento de ternura, ou o do artista ansiando expressar-se?

A mente perceptiva exige alguma forma de expressão? Não, porque perceber é expressar, atuar. O artista, o pintor, o consultor, buscam a autoexpressão, que é fragmentária e, portanto, a expressão dele não é a beleza. Uma mente condicionada, fragmentária, expressa esse sentimento do belo, mas este se acha condicionado. Isso é beleza? Portanto, o eu que é a mente condicionada nunca pode ver a beleza, e qualquer coisa que expresse deve ter sua mesma qualidade.

P: No entanto, você não contestou um aspecto da questão. Existe algo como o talento criativo, a habilidade de produzir coisas de uma maneira tal que elas procurem felicidade?

KRISHNAMURTI: A dona de casa que orna pão, mas não “a fim de”. No momento em que você faz as coisas com um propósito, está perdido.

P: Trata-se de criar felicidade.

KRISHNAMURTI: Não é função de alguma outra coisa. Não se senta na plataforma e fala com o motivo de que isso procure por felicidade. A fonte de água nunca está vazia. Sempre brota borbulhante, tanto se é água contaminada ou água a qual se rende culto; está aí, brota.

As pessoas que se ocupam da autoexpressão estão em sua maioria interessadas em si mesmas. O artista, famoso ou não, pertence a essa categoria. E o “eu” é o autor da fragmentação. Na ausência do “eu” há percepção. A percepção é ação, e isso é beleza.

Estou seguro que o escultor que cinzelou o Mahesha Murti de Elephanta, o criou em sua meditação. Antes de que você tenha colocado sua mão em uma pedra ou em um poema, o estado tem que ser o da meditação. A inspiração não deve provir do “eu”.

P: A tradição do escultor hindu era essa.

KRISHNAMURTI: A beleza é a total abnegação do eu, e com a total ausência do eu surge “aquilo”. Nós tratamos de capturar “aquilo” sem a ausência do eu, e a criação se converte, então, em um mero assunto de ostentação.

Nova Déli, 29 de dezembro de 1970
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sexta-feira, 23 de março de 2018

O primeiro passo é o último passo


O PRIMEIRO PASSO É O ÚLTIMO PASSO

Interlocutor P: Ontem você disse que o primeiro passo é o último passo. Para poder compreender esta afirmação, eu penso que deveríamos investigar o problema do tempo, e se é que existe uma coisa como o estado final de iluminação. A confusão surge porque nossas mentes estão condicionadas para pensar na iluminação como um estado final. É a compreensão ou iluminação um estado final?

KRISHNAMURTI: Veja, quando dissemos que o primeiro passo é o último passo, não estávamos pensando no tempo como um movimento horizontal ou vertical? Não pensávamos em um movimento ao longo de um plano? Dizíamos ontem que se pudéssemos descartar completamente o vertical e o horizontal, estaríamos capacitados para observar este fato de que onde quer que nos encontremos, a qualquer nível de condicionamento, de existência, a percepção da verdade, o fato, nesse instante é o último passo.

Tomemos um escrevente em um pequeno escritório, com toda a infelicidade que isso implica; o escrevente escuta e percebe. O homem escuta, e nesse momento realmente vê. Esse ver e essa percepção são o primeiro e o último passo. Porque nesse instante ele tocou a verdade e vê algo muito claramente.

Mas o que ocorre depois é que ele deseja cultivar esse estado. Deseja perpetuá-lo, converter a percepção em um processo, a libertação e a mesma percepção que produz a libertação. Como consequência, fica preso e perde completamente a qualidade da percepção.

O que dizemos, pois, é que qualquer processo envolve uma finalidade. E por isso pensamos que a percepção, a libertação, é uma finalidade, um ponto que carece de movimento. Depois de tudo, os métodos, as práticas, os sistemas, implicam um processo para uma finalidade.

Se não existisse uma ideia conceitual de finalidade, não haveria processo.

P: Toda a estrutura do pensamento está edificada sobre o movimento horizontal e, portanto, qualquer postulado de eternidade tem que achar-se sobre o plano horizontal.

KRISHNAMURTI: Estamos habituados a ler um livro horizontalmente. Tudo é horizontal, todos nossos livros.

P: Tudo tem um princípio e um final.

KRISHNAMURTI: E pensamos que o primeiro capítulo deve conduzir inevitavelmente ao último capítulo. Sentimos que todas as práticas se dirigem a uma finalidade, a um desenvolvimento. Tudo isso constitui uma leitura horizontal. Nossas mentes, olhos e atitudes estão condicionados para funcionar no horizontal, e como conclusão assiste uma finalidade. Esse livro se encerrou. Você pergunta se a verdade e a iluminação é uma realização final, um ponto decisivo mais além do qual nada há?

P: Um ponto a partir do qual não é possível deslizar para trás. Eu posso perceber por um instante, e compreender a qualidade disso. Um pouco depois volta a surgir o pensamento. E digo-me: “estou de volta ao velho estado”. Pergunto-me se esse “contato” tem em absoluto alguma validade. Eu coloco uma distância, um bloqueio entre mim e este estado; digo que se ele fora verdadeiro, não haveria surgido o pensamento.

KRISHNAMURTI: Já vejo. Percebo algo que é extraordinário, algo que é verdadeiro. Quero perpetuar essa percepção, dar-lhe continuidade, de modo que essa percepção-ação prossiga ao longo de toda minha vida. Creio que ao é onde reside o erro. A mente tem visto algo verdadeiro. Isso é o suficiente. Essa mente é uma mente muito clara, inocente, que não tem sido ferida. O pensamento deseja continuar essa percepção através dos atos cotidianos. A mente tem visto algo com muita clareza. Deixe-o aí. O seguinte passo é o passo final. O deixá-lo é o passo seguinte, o passo final. Por causa de que minha mente já está fresca para dar o próximo passo final, no movimento diário do viver, ela não leva consigo coisa alguma. A percepção não se converte em conhecimento.

P: É o eu que tem que cessar — o eu é como o ator com relação ao pensamento —, ou é o ver?

KRISHNAMURTI: Morra para a coisa que é verdadeira. De outro modo ela se converte em recordação, o que então se torna pensamento, e o pensamento pergunta: como hei de perpetuar esse estado? Se a mente vê com clareza — e só pode ver com clareza total quando o ver é o cessar disso —, então a mente está em condições de iniciar um movimento onde o primeiro passo é o último passo. Nisto não há envolvido nenhum processo. Não existe o elemento do tempo. O tempo se introduz quando havendo visto claramente o fato, havendo-o percebido, há um carregar com isso para aplicá-lo no acontecimento seguinte.

P: O carregar com isso é o não ser, é o não perceber.

KRISHNAMURTI: De modo que todos os enfoques tradicionais que oferecem um processo, devem ter um ponto, uma conclusão, uma finalidade. E tudo aquilo que tem uma finalidade, um ponto final, não é absolutamente uma coisa viva. É como dizer que há muitos caminhos para a estação. A estação está fixa. E a verdade uma finalidade que quando alcançada se termina com tudo; a ansiedade, os medos, etc.? Ou isso funciona de um modo completamente diferente? Quero dizer que uma vez que me encontro no trem, e nada pode ocorrer-me? Significa que espero que o trem me conduzirá  para meu destino? Todos estes são movimentos horizontais.

É assim que um processo implica um ponto fixo. Todos os sistemas, métodos, práticas, oferecem um ponto fixo, e prometem ao homem que quando ele o alcançar, terminarão todas as dificuldades. Existe algo que seja verdadeiramente atemporal? Um ponto fixo está no tempo. Está no tempo porque você o tem postulado, porque tem havido um pensar em um ponto final, e o pensar sobre isso está no tempo. Pode-se dar com isto que deve estar isento de tempo, que não tem processo, nem sistema, nem método, nem direção alguma? Pode esta mente que de tal modo se acha condicionada no horizontal, sabendo que vive horizontalmente, pode perceber aquilo que não é horizontal nem vertical? Pode ela perceber por um instante?

Pode a mente perceber que o ver a tem purificado, e assim terminar com isso? Nisto se encontra o primeiro e o último passo, porque a mente tem visto de um modo novo. Você pergunta: uma mente assim, está sempre livre da inquietude? Creio que é uma pergunta equivocada. Você ainda está pensando em termos de finalidade quando formula esta pergunta. Chegou a uma conclusão, e, por conseguinte se voltou outra vez ao processo horizontal.

P: A sutileza disso é que a mente tem que formular perguntas fundamentais, mas nunca o “como”.

KRISHNAMURTI: Terminantemente. Eu tenho visto com muita clareza, percebo. A percepção é luz. Quero levá-la comigo como recordação, como pensamento, e aplicá-la ao viver de todos os dias; portanto, introduzo nisso a dualidade, o conflito, a contradição. De modo que digo: como hei de estar fora disto? Todos os sistemas oferecem um processo, um ponto fixo e o fim para todas as dificuldades.

O ato de perceber é a luz para a mente. Ela não se interessa mais na percepção porque se se interessa, essa percepção se converte em recordação. Pode a mente que vê algo com absoluta clareza, terminar com essa percepção? Então, aqui o primeiro passo é o último passo. A mente está fresca para observar. Para uma mente assim, terminam-se as dificuldades? Eu não formulo uma pergunta semelhante. Quando isso suceda, verei. O que ocorre então? Quando pergunto: “terminará isto com todas as dificuldades?”, já estou pensando no futuro e, por conseguinte, estou preso ao tempo.

Mas isso não me interessa. Percebo. Acabou-se. Vejo algo muito claramente — a claridade da percepção. A percepção é luz. Coisa terminada. Portanto, a mente jamais está presa ao tempo. Porque tenho dado o primeiro passo e também tenho dado, a cada vez, o último passo.

Vemos então que todos os processos, todos os sistemas, devem ser descartados totalmente, porque eles perpetuam o tempo. Através do tempo você espera chegar ao atemporal.

P: Eu vejo que os instrumentos empregados no que você disse são o ver e o escutar. Estes são os movimentos sensoriais. É também através de movimentos sensoriais que surge o condicionamento. O que é que faz que um dos movimentos dissolva o condicionamento, e o outro o reforce?

KRISHNAMURTI: Como escuto esta pergunta? Em primeiro lugar, não sei; vou aprender. Se aprendo com o fim de adquirir conhecimentos, a partir dos quais atuarei, essa ação se torna mecânica. Mas quando aprendo sema cumular — o que significa perceber, escutar sem adquirir —, a mente está sempre vazia. Qual é então a pergunta?

Pode a mente vazia estar alguma vez condicionada, e se é assim, por que se condiciona? Uma mente que em verdade está escutando, pode alguma vez ser condicionada? Sempre está aprendendo, sempre se acha em movimento. Não é um movimento de algo para algo. Esse movimento não pode ter um começo e um final. É algo vivo, jamais condicionado. Uma mente que adquire conhecimento para de funcionar, é uma mente condicionada por seu próprio conhecimento.

P: É o mesmo instrumento que opera em ambos os casos?

KRISHNAMURTI: Não o sei. Realmente, não o sei. A mente que se acha repleta de conhecimentos, vê de acordo com esses conhecimentos, de acordo com esse condicionamento.

P: Senhor, ver é como ascender a luz. Em si mesmo, carece de condicionamento.

KRISHNAMURTI: A mente está cheia de imagens, palavras, símbolos. Ela pensa que através de tudo isso, vê.

P: Vê?

KRISHNAMURTI: Não. Eu tenho uma imagem de você, e olho através dessa imagem. Isso é distorção. A imagem é meu condicionamento. O vaso com todas as coisas dentro segue sendo o mesmo vaso quando nada contém. O conteúdo do vaso é o vaso. Quando não há conteúdo, o vaso não tem forma.

P: Então pode receber “o que é”.

KRISHNAMURTI: A percepção só é possível quando não há imagem. Isso é muito simples. A percepção é possível unicamente quando não há símbolo, nem ideia, nem palavras — tudo o qual é imagem. Então a percepção é luz. Não é que eu vejo a luz, a percepção mesma é a luz. Por onde, a percepção é ação. E uma mente que está cheia de imagens, não pode perceber. Vê através das imagens e em consequência, está deformada.

O que temos dito é verdadeiro. Logicamente é assim. Tenho escutado isto. No fato de escutar não há “eu”. No fator de carregar com isto, há “eu”. O “eu” é tempo.

Nova Delhi
19 de dezembro de 1970
Tradição e Revolução

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O despertar da energia


O DESPERTAR DA ENERGIA

Interlocutor P: Quando estávamos discutindo o Tantra, você disse que há um modo de despertar a energia. Os tântricos se concentram e certos centros físicos, com o qual liberam a energia latente em nossos centros. Você diria que isto tem certa validade? Qual é o modo de despertar a energia?

KRISHNAMURTI: Concentrar-se em vários centros psicofísicos implica um processo de tempo, não é assim? De modo que gostaria de perguntar o seguinte: pode essa energia despertar-se sem um processo de tempo?

P: Em todo este processo, o método tradicional existe uma postura correta e um equilíbrio na respiração. Se o corpo não sabe como se sentar direito e como respirar corretamente, não pode haver um cessar para o pensamento. A fim de levar o corpo e a respiração a um estado de equilíbrio, se torna inevitável um processo de tempo.

KRISHNAMURTI: Pode haver uma forma completamente diferente de abordar este problema. A tradição começa com o psicossomático; a postura, o controle respiratório, e gradualmente passa por diversas formas de concentração até o pleno despertar da energia. Este é o método aceito. Não existe um modo de despertar esta energia sem passar por todas estas práticas?

P: Isso é como o que dizem os mestres do Zen: que o verdadeiro mestre é aquele que descarta o esforço. Sem dúvida no Zen, para chegar ao total domínio do arco, é necessária uma tremenda destreza técnica. Somente quando existe a completa maestria, desaparece o esforço.

KRISHNAMURTI: Você começa por este extremo antes que pelo outro — sendo este extremo tempo, controle, energia, perfeição, perfeito balanço.

Tudo isto me parece como tratar com uma parte muito pequena de um campo muito vasto. A tradição concede grande importância ao passado, à respiração, à postura correta. Todas estas coisas estão limitadas a um abrigo do campo, e através desse abrigo você espera obter a iluminação. O abrigo então se torna um truque. Por meio de algum tipo de acrobacias psicossomáticas se espera que se agarre a luz, a totalidade do universo. Eu não creio que aí esteja a iluminação — não é através de um abrigo. Isso é como ver o céu por uma pequena janela e não sair jamais para olhá-lo diretamente. Sinto que esse modo é um modo absurdo de abordar algo que é absolutamente imenso, atemporal.

P: Você ainda admitiria que a postura correta e a respiração apropriada fortalecem a estrutura da mente?

KRISHNAMURTI: Quero abordar tudo isto de uma maneira completamente diferente. Para fazê-lo é necessário descartar tudo quanto se tem dito a respeito. Vejo que o abrigo é como uma vela à luz solar. A lida da vela se mantém muito cuidadosamente acesa enquanto brilha o sol. Você não se interessa na luz do sol senão que se ocupa em acender a vela.

Há outras coisas envolvidas nisto; há o despertar da energia que até agora tem sido desperdiçada.

Na ação de centralizar a energia, de acumulá-la em sua totalidade, estão envolvidas a atenção e a completa eliminação do tempo. Penso que estes são os principais fatores — o tempo, uma atenção não forçada que não é concentração, que não está centrada em torno de uma parte, e a acumulação de energia. Penso que estas são as coisas fundamentais que se há de compreender, porque a iluminação deve consistir e consiste em abarcar e compreender esta vida imensa — sendo a vida o viver, morrer, o amar, é toda esta ansiedade, e o ri mais além dele.

Os mestres tradicionais também estão de acordo em que se deve ter a atenção para ir mais além do tempo. Mas eles são os adoradores do abrigo. Eles utilizam o tempo para ir mais além do tempo.

P: Como, senhor? Eu adoto uma postura e dirijo minha atenção. De que modo está envolvido o tempo nisto?

KRISHNAMURTI: É a atenção um produto do tempo?

P: Não. Você faz uma pergunta e há uma atenção imediata. É esta atenção produto do tempo?

KRISHNAMURTI: Não, certamente não.

P: Estando aí sua pergunta e minha atenção, nisso o tempos está envolvido? Se você o considera desse modo, o processo de autoconhecimento que prossegue constantemente, também envolve tempo. Vinte anos atrás minha mente não haveria conhecido a qualidade atual. Este estado não existia então.

KRISHNAMURTI: Vamos devagar. Estamos tratando de compreender algo que está fora do tempo.

P: A tradição diz que é necessário preparar o corpo e a mente.

KRISHNAMURTI: Eu pergunto: você diz que através do tempo aperfeiçoa o instrumento, não é assim? Eu questiono isso. Você pode aperfeiçoar o instrumento através do tempo? Bem, vejamos antes de tudo quem é o que aperfeiçoa o instrumento. É o pensamento?

P: Não teria validade dizer que é só o pensamento. Há muitos outros fatores envolvidos.

KRISHNAMURTI: O pensamento, o conhecimento que lhe pertence, a inteligência, todos estão sustentados pelo pensamento. Dizer que o pensamento deve cessar e que deve surgir a inteligência, constitui outra vez uma ação do pensamento. A declaração de que o pensamento e o pensador são uma só coisa é também uma ação do pensamento.

Você diz que o instrumento se aperfeiçoa por meio do pensamento. Para mim o enfoque tradicional de aperfeiçoar ao instrumento através do ato de pensar e assim ir mais além do pensamento, e o ato de cultivar a inteligência e ir mais além do tempo, tudo isso segue estando na área do pensamento. É assim. Portanto, nesse mesmo pensamento está o pensador. Esse pensador diz: isto deve ocorrer, isto não deve ocorrer. Esse pensador converteu-se no desejo de realização. O desejo de aperfeiçoar o instrumento é parte do processo de pensar, é parte do pensamento.

P: Neste círculo que você acaba de descrever também está envolvido o ato de questionar o instrumento mesmo, vale dizer, o pensamento.

KRISHNAMURTI: Mas o questionador é parte do pensamento. Você pode dividir, subdividir, mudar, mas tudo isso está dentro do campo do pensamento e isso é tempo. O pensamento é memória, o pensamento é de natureza material; o material é memória. Ainda seguimos funcionando dentro da área do conhecido, e o homem que cultiva o pensamento diz que ele chegará ao desconhecido através do conhecido, que aperfeiçoando o conhecido alcançará a iluminação. Tudo isto é assim mesmo o pensamento.

P: Se tudo é pensamento, então se faz necessário criar um instrumento novo.

KRISHNAMURTI: Quando o pensamento diz que deve tornar-se silencioso e se torna silencioso, isso é ainda pensamento. O que fazem os tradicionalistas é trabalhar dentro da área do pensamento que é o abrigo do vasto campo vida. Mas isso é ainda o resultado do pensamento. O atman é resultado do pensamento. O brahman que o homem tanto respeita, é o resultado do pensamento. Aquele que o experimentou nada tem que ver com o pensamento. Isso ocorreu, simplesmente, mas vieram seus discípulos e disseram: “Faça isto, faça aquilo”. Tudo isto está dentro do campo do pensamento.

P: Então não há modo de proceder.

KRISHNAMURTI: Veja como o pensamento aplica truques a si mesmo — eu devo ter equilíbrio, eu devo adotar a postura correta a fim de que a energia vital possa fluir livremente — não é verdade? O pensamento é do passado. O pensamento pode criar o mais maravilhoso dos instrumentos — por ir a Lua, a Venus mas o pensamento jamais poderá alcançar “o outro”, porque o pensamento nunca é livre; é velho, está condicionado. O pensamento é a estrutura total do conhecido.

P: O que você quer significar por “o outro”?

KRISHNAMURTI: O que não é isso.

P: O que não é isso?

KRISHNAMURTI: Isto está dentro do campo do tempo; o pensamento, que é tempo. Aquilo está no campo do silêncio. Portanto, averigue se a dor pode terminar. Salte do abrigo. Descubra o que é a vida, o que significa a morte, o que significa terminar com a dor. Se não se der com isto, aplicar truques com o pensamento não tem sentido algum. Você poderá despertar todas as Kundalinis, mas com que propósito?

Portanto, aqueles que ensinam como despertar as Kundalinis, ou como tornar-se um especialista no manejo do arco segundo o método Zen, ou como adquirir pericia na prática de diversas formas de Tantra, estão todos presos ao tempo, que é pensamento. Vejo isso e vejo que isso está sempre girando em círculos. O círculo pode ser mais amplo, mas segue sendo um círculo, significa escravidão, a qual é tempo.

Em consequência, eu não tocaria nisso. Não o tocaria porque vejo a natureza, a estrutura, o caráter deste abrigo. O abrigo carece de sentido para mim. Quando existe este sol maravilhoso, todos os siddhis e poderes são como muitas luzes de vela.

Ao escutar isto, pode a mente eliminá-lo? O mesmo escutar é o eliminar. Então você tem aquela. Então há atenção, amor; tudo está aí. Como vê, isto é válido enquanto que o outro não o é. O exercício do cérebro é para poder descobrir a verdade e o falso, para ver o falso como falso. Veja, quando o menino Krishnamurti viu a verdade, isso se encerrou; renunciou a todas as organizações, etc. Não teve que treinar-se para “ver”.

P: Mas você teve uma preparação, foi submetido a um vigoroso treinamento do corpo.

KRISHNAMURTI: Assim dizem. Por causa de que o corpo havia sido descuidado, eles disseram que se a ele não se lhe cuidava, adoeceria.

P: Mas senhor, separado da disciplina física, teve instruções de como devia educar-se a esse menino.

KRISHNAMURTI: Coisas como pentear o cabelo, fazer asanas, pranayama;  tudo estava nesse nível.

B: É algo muito sutil. Eu não digo que o que ocorreu estivesse de algum modo relacionado com a iluminação, mas é necessário atender ao corpo.

KRISHNAMURTI: Sim, é necessário conservar o corpo saudável.

P: Senhor, se posso assinalá-lo, você tem as maneiras de um iogue, tem a aparência de um iogue, seu corpo adota a postura de um iogue. Você tem estado praticando asanas, pranayama todos os dias, durante anos. Por que?

KRISHNAMURTI: Isso não é importante. É como manter limpas minhas unhas. Estou dizendo que o outro é infantil; gastar anos em aperfeiçoar o instrumento. Tudo o que você tem que fazer é “observar”.

P: Mas se você nasceu cego, só quando uma pessoa como você, vem e diz “observem” ocorre algo. A maior parte das pessoas entenderá aquilo de que você fala.

KRISHNAMURTI: A maior parte das pessoas não escutaria tudo isto. O deixaria de lado.

B: O outro é mais fácil; dá algo, enquanto que isto não dá nada.

KRISHNAMURTI: Veja, eu estou terrivelmente interessado nisto: como se manteve a mente de Krishnamurti neste estado de inocência?

P: O que você está dizendo não é pertinente. Você pode ser uma exceção. Como deu com isso o menino Krishnamurti? Teve dinheiro, organização, teve tudo e sem dúvida abandonou tudo. Se eu tomasse a minha neta e a deixasse com você, e ela não tivesse outra companhia que a sua, ainda assim ela não teria isso.

KRISHNAMURTI: Não, não a teria. (Pausa). Descarte tudo isto.   

P: Quando você diz isso, é como o koan do Zen; o ganso que está fora da garrafa. Você teve um centro ao que necessitou eliminar?

KRISHNAMURTI: Não.

P: Assim que você não teve um centro que eliminar? Você é o único e, portanto você é um fenômeno; de modo que não pode dizer-nos que você faz isto e então isso ocorreu. Você só pode dizer-nos “não é isto e se nos afogarmos ou não, nenhum outro pode dizer-nos. Isto o vemos. Poderemos não estar iluminados, mas não estamos “desiluminados”.

KRISHNAMURTI: Penso que é tremendamente interessante ver que qualquer coisa que o pensamento toca, não é o real. O pensamento é tempo. O pensamento não pode tocar o real.

Nova Delhi
16 de dezembro de 1970
Tradição e Religião
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Alquimia e Mutação


ALQUIMIA E MUTAÇÃO

Interlocutor P: Estava pensando se valeria a pena discutir a antiga atitude hindu para a alquimia e a mutação, e ver se os descobrimentos da alquimia têm alguma relação com o que você expressa. É significativo que Nagarjuna, um dos grandes sustentadores do pensamento budista, fora ele mesmo um mestre alquimista. A busca da alquimia na Índia não estava dirigida tanto à transmutação dos metais básicos em ouro, como a uma investigação dentro de certos processos psicofísicos e químicos nos quais, através da mutação, o corpo e a mente podiam ver-se livres dos estragos do tempo e dos processos da degeneração. O campo de investigações incluía o domínio da respiração, a participação de um elixir preparado em laboratório — uma substância na qual o mercúrio desempenhava um papel fundamental —, e a descarga de uma explosão na consciência. A ação dos três elementos leva a uma mutação do corpo e da mente. O simbolismo usado pelo alquimista era sexual; o mercúrio era a síntese masculina de Shiva, a mica a síntese da Deusa; a união de ambos, não só fisicamente e nos crisóis do laboratório, senão na mesma consciência, dava origem à mutação, um estado livre do tempo e dos processos de envelhecimento, um estado que não tinha relação com os dois elementos que em união total haveriam desencadeado a mutação. Isto está de algum modo relacionado com o que você disse?

KRISHNAMURTI: Você pergunta a respeito do estado de consciência que não pertence ao tempo?

P: Em todo indivíduo pode-se ver como opera um elemento masculino e o feminino. O alquimista bia a necessidade da união, de um equilíbrio. Há alguma validade nisto?

KRISHNAMURTI: Penso que isso pode ser observado em si mesmo. Muitas vezes tenho observado que em cada um de nós estão operando os elementos masculino e feminino. Ou se acham em um estado de perfeito equilíbrio ou estão em desequilíbrio. Quando existe este equilíbrio completo entre masculino e feminino, o organismo físico nunca fica realmente enfermo; pode ser que haja algum mal-estar superficial, mas no mais fundo não há enfermidade que destrua o organismo. Isto é o que provavelmente tem buscado, identificando-o com o mercúrio e a mica, o macho e a fêmea, e tratando através da meditação, do estudo e talvez mediante algum tipo de medicina, de produzir esta perfeita harmonia. Pode-se ver claramente em si mesmo como operam o masculino e o feminino. Quando um ou outro se torna exagerados, o desequilíbrio produz enfermidade; não doenças superficiais, senão enfermidades nas profundidades. Pessoalmente tenho notado em mim mesmo, debaixo de diferentes situações e climas, com distintas pessoas agressivas, violentas, como o feminino toma posse e se torna dominante. Este domínio do feminino utiliza o outro para afirmar-se a si mesmo. Mas quando ao redor de si há demasiada feminilidade, o masculino não se torna agressivo senão que se retira sem nenhuma resistência.

P: O que são os elementos feminino e masculino?

KRISHNAMURTI: O masculino é geralmente o agressivo, o violento, o dominante; e o feminino é o tranquilo, que geralmente se toma por submissão e então é explorado pelo homem. Mas a submissão, entendida como a qualidade do feminino, é na verdade a delicadeza que gradualmente conquista ao outro. Quando o masculino e o feminino estão em completa harmonia, transforma a qualidade de ambos. Já não é mais o masculino e o feminino. É algo completamente diferente com relação ao que se considera como masculino e feminino. O masculino e o feminino o positivo e o negativo, são dualísticos por causa de sua mesma natureza, enquanto que o completo equilíbrio, uma harmonia de ambos, tem uma qualidade diferente. Isso é como a qualidade da terra na qual tudo vive, mas não é da terra. Tenho notado com muita frequência este modo de operar. Quando a totalidade da mente se afasta do físico e do meio ambiente, é como se estivesse muito longe; muito longe no espaço e no tempo, senão que se trata de um estado ao qual nada pode afetar. Este estado não é uma abstração, nem um afastar-se do mundo, senão um absoluto estado interno de não-ser. Quando tem lugar esta perfeita harmonia devido a que não há conflito, ela tem sua própria vitalidade. Não destrói o outro. Assim que o conflito não está só no externo, mas também no interno, e quando este conflito cessa completamente, há uma mutação que não é afetada pelo tempo.

P: O alquimista chamava a isto de o nascimento de Kumara, o menino mágico; aquele que nunca envelhece, que é completamente inocente.

KRISHNAMURTI: Isso é muito interessante. Mas a alquimia se converteu em um sinônimo de tanta magia falsificada...

P: Mas os alquimistas, os mestres que eram colocados como os rasa siddhas — os portadores da essência —, afirmavam que aquilo que descreviam o haviam visto com seus próprios olhos, que o que relatavam não era de ouvidos nem havia sido ditado por um mestre. Há outro fator interessante; na alquimia se tem prestado muita atenção ao instrumento — o vaso. A ciência da metalurgia se desenvolveu a partir disto — um dos vasos ou yantras era conhecido como o garbha yantra, o vaso matriz. É uma palavra chave da alquimia. Existe uma tal coisa como a preparação da matriz da mente?

KRISHNAMURTI: No momento em que você usa a palavra preparação, isso significa um processo no qual o tempo está envolvido.

P: Os alquimistas também eram conscientes de que no ponto de mutação, de fixação do mercúrio, do nascimento do atemporal, não estava o tempo envolvido.

KRISHNAMURTI: Não use a palavra preparação. Coloquemos deste modo: É necessário um estado, um plano de fundo, um vaso que possa conter isto? Eu diria que o é, porque quando descobriram ao menino Krishnamurti, as pessoas que se supunha eram clarividentes para isso então, viram que ele carecia da qualidade do eu e que, portanto, era digno de ser o vaso. E penso que ele tem permanecido assim durante toda sua vida.

S: Pode ser que isso seja assim, mas, o que há com relação às pessoas correntes com nós? Este é um privilégio concedido a uns poucos, muito poucos, um em mil anos ou mais, ou isso pode ocorrer com pessoas que se interessam por tudo isto, que estão entregues a isto, que são verdadeiramente sérias em sua investigação?

KRISHNAMURTI: Certos fatores físicos e alguns estados psicológicos são necessários. Fisicamente tem que haver sensibilidade. A sensibilidade física não pode ter lugar quando se fuma, se bebe, ou se come carne. A sensibilidade do corpo deve conservar-se; isso é absolutamente essencial. Tradicionalmente, um corpo assim permanece em um lugar, sustentado por discípulos, pela família. Não é exposto nem submetido a agitações.

Um homem que é muito sério com relação a tudo isto, pode tornar altamente sensível a um corpo que tenha passado pelos normais efeitos embrutecedores? E o mesmo com uma psique que tenha sido ferida pela experiência?  Pode ela eliminar todas as feridas e cicatrizes, e renovar-se a si mesma de modo que haja um estado no qual não exista lesão alguma? Estas duas coisas são essenciais: a sensibilidade e a psique são cicatrizes. Eu penso que isto pode modificar qualquer pessoa que seja realmente seria.

Você já vê que a matriz está sempre pronta para conceber. Ela se renova a si mesma.

P: Como a terra, a matriz tem sua qualidade intrínseca de renovação.

KRISHNAMURTI: Penso que a psique tem exatamente a mesma qualidade.

P: Quando a terra se acha inativa e a matriz está quieta, em ambas existe a capacidade intrínseca de renovação.

KRISHNAMURTI: A terra, a matriz e a mente são da mesma qualidade. Quando a terra descansa e a matriz está vazia e na mente não há movimento algum, então tem lugar a renovação. Quando a mente está completamente vazia, é como a matriz: pura para renovar-se, para receber.

P: Este é então o vaso, o receptáculo.

KRISHNAMURTI: Sim. Este é o vaso, mas quando você emprega as palavras vaso, e receptáculo, tem que ser sumamente cauteloso.

Esta qualidade intrínseca da mente para renovar-se a si mesma, pode ser chamada de eterna juventude.

P: É conhecida como kumara vidya.

KRISHNAMURTI: O que é então que envelhece a mente? É óbvio que a mente envelhece devido ao movimento do eu, do ego.

P: O ego desgasta as células cerebrais?

KRISHNAMURTI: A matriz está sempre pronta para receber. Tem a qualidade de purificar-se a si mesma a todo tempo, mas a mente que está carregada com o ego — a fricção do ego —, carece de espaço para renovar-se a si mesma. Quando o ego está tão ocupado consigo mesmo e com suas atividades, a mente não tem espaço para renovar-se. De modo que o espaço é necessário tanto para o físico como para a psique. Como isto concorda com a alquimia?

P: A linguagem que eles empregam é diferente. Eles chamam de mutação através da união.

KRISHNAMURTI: Tudo isso implica esforço, fricção.

P: Como você o sabe?

KRISHNAMURTI: Se isso implica qualquer tipo de processo, qualquer forma de realização, então implica esforço.

Nova Delhi
14 de dezembro de 1970
Tradição e revolução
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Pode o cérebro libertar-se de sua própria limitação?


PODE O CÉREBRO LIBERTAR-SE DE SUA PRÓPRIA LIMITAÇÃO?

Jiddu Krishanamurti (K): Como Asit está comprometido na fabricação de computadores, ele e eu, cada vez e donde quer que nos temos encontrado em diferentes partes do mundo, temos falado a respeito da relação entre a mente humana e o computador. Temos tentado descobrir o que é a inteligência e se há uma ação que o computador não possa realizar — alguma aça muito mais penetrante que qualquer coisa que o homem possa fazer externamente

Asit Chandmal (AC): Veja, senhor, os norte-americanos estão desenvolvendo supercomputadores. Agora nós, como seres humanos, temos que ser, em certo sentido, muito mais inteligentes que a tecnologia dos norte-americanos, se temo de contestar a ameaça dessa tecnologia. E a tecnologia não se limita aos computadores, senão que se estende também à engenharia genética, à bioquímica, etc. Eles estão tratando de controlar completamente as características genéticas. Estou seguro de que é só uma questão de tempo antes de que sejam criadas as interfaces computador-cérebro. Além do mais, na Rússia, se está investigando muitíssimo a capacidade de ler pensamentos e transmiti-los a alguma outra pessoas.

Gostaria de especular um pouquinho. Uso a palavra “especular” no sentido de considerar hoje certos problemas que serão solucionados tecnologicamente nos próximos anos. Penso que é importante fazer isto, por que você não está falando só para nós, senão que também fala para aqueles que virão nos séculos futuros e para quem tudo isto será uma realidade. Por exemplo, consideremos o papel do professor, hoje em dia. Você pode adquirir um pequeno computador, lhe colocar uma cinta magnética, e o computador se comunicará com você em francês. Se introduzir outra cinta, se comunicará fluida e instantaneamente em árabe, japonês ou o idioma que for. Suponhamos que a cinta pudesse ser colocada no cérebro humano; o problema é tão só a interface entre o cérebro e a cinta, por que o cérebro funciona como um circuito elétrico. A pergunta é: O que ocorre, então, com o papel do professor?

O seguinte ponto é que, nas sociedades ricas, devido ao tremendo acréscimo dos artefatos materiais como os automóveis ou lavadoras, o corpo tem se deteriorado. Bem, agora, visto que mais e mais funções mentais vão ser assumidas pelo computador, a mente sofrerá uma deterioração não só no nível do que você fala, mas sim, inclusive, em seu funcionamento corrente. Vejo isto como um enorme problema. Como se pode fazer frente a este problema no mundo que se move nessa direção?

K: Se a aprendizagem pode ser instantânea, digamos, por exemplo, se posso ser um poliglota quando desperto pela manhã, então, qual é a função do cérebro? Qual é a função do ser humano?

Pupul Jayakar (PJ): O problema, não é o caso, saber em que consiste a qualidade do humano? Separado de tudo isto, o que vai ocorrer com o ser humano?

K: Aparentemente, um ser humano tal como é, consiste em uma massa de conhecimentos acumulados e em reações de acordo com esses conhecimentos. Vocês estariam de acordo com isso? Se a máquina, ou o computador, vai se encarregar de tudo isso, o que vai ser,  então, o homem, o ser humano? E, qual é, então, a função de uma escola? Por favor, pensem a fundo sobre isto. Não é algo que requeira uma resposta rápida. Isto é tremendamente sério. O que é um ser humano se seus medos, seus sofrimentos, suas ansiedades, se eliminam mediante substâncias químicas ou implantando-lhe algum circuito elétrico? Então, que sou eu? Não creio que captemos isto em sua totalidade.

PJ: Se você toma um forte tranquilizante, suas ansiedades desaparecem temporariamente. Isso é indiscutível. Mas se se pode reproduzir por clonagem, pode se fazer de tudo. Em tudo isto há algo que estamos passando por cima. Parece-me que não estamos chegando a questão central. Há algo mais envolvido em tudo isto.

K: Olhe Pupul, se minhas ansiedades, se meus medos e meus sofrimentos podem ser aliviados e pode meu prazer ser aumentado, pergunto: O que é, então, um ser humano? O que é nossa mente?

Achyut Patwardhan (AP): Entendo se digo que, enquanto por um lado o homem tem desenvolvido estas capacidades extraordinárias, há também um processo correspondente de deterioração mental, o qual é um efeito secundário da supermecanização?

AC: Se você possui um automóvel e por isso deixa de caminhar, seu corpo se deteriorará. De igual modo, se o computador se ocupa das funções mentais, a mente se deteriorará. Isso é, exatamente, o que quero dizer.

K: Não creio que compreendamos a profundidade do que está ocorrendo. Discutimos sobre se isso poderia ocorrer. Isso vai ocorrer. Então, o que somos nós? O que é um ser humano? E depois, quando o computador — uso a palavra “computador” para incluir os produtos químicos e tudo mais — se ocupar completamente de nós e já não exercitarmos nossos cérebros, estes se deteriorarão fisicamente. A pergunta é: Como impediremos isso? O que faremos? Devemos exercitar nossos cérebros. Atualmente, o cérebro se exercita por causa da dor, do prazer, do sofrimento, da ansiedade e de todas essas coisas. Funciona por meio delas. Mas quando a máquina e os produtos químicos se ocuparem, o cérebro deixará de trabalhar. E se não trabalha, se deteriorará.

Podemos começar com a hipótese de que estas coisas vão acontecer, gostemos ou não? De fato, estão acontecendo justamente agora. A menos que estejamos cegos ou desinformados — e o estamos — sabemos a respeito. Investiguemos, pois, se a mente pode, em modo algum, sobreviver privando-a de seus problemas, seja quimicamente ou por meio do computador.

AP: Há um ponto que não tenho claro. Em cada ser humano existe um sentimento de um vazio que é necessário ser preenchido.

K: Será preenchido pelos produtos químicos.

AP: Não pode ser preenchido; não, senhor.

K: Oh, sim, pode sê-lo.

AP: Eu questiono isso. Há um vazio estranho em todos os seres humanos.

Radha Burnier (RB): O que disse Krishnaji é que haverá outras formas de LSD, outras drogas sem os efeitos secundários, as que preencheram essa brecha.

K: Tome uma pílula e jamais sentirá o vazio.

AP: Você tem que ver que, em algum ponto, há algo que permanecerá intacto.

AC: O que ocorre se você não encontra isso?

AP: Antes de chegar a isso, de encontrá-lo, se deve ao menos postular uma necessidade a respeito.

K: Estou postulando uma necessidade.

AP: Qual é a necessidade?

K: Necessidade de produtos químicos, necessidade de computadores, e tanto um como o outro vão destruir-me, vão destruir meu cérebro.

AC: Eu digo algo ligeiramente distinto, e é que, se continua esta tecnologia, não haverá nenhum vazio em nenhum ser humano, porque finalmente eles — os seres humanos — podem extinguir-se como espécie. Ao mesmo tempo, como ser humano, sinto que há alguma outra coisa que não conheço, mas que desejo descobrir. Existe algo diferente, algo que necessita ser preservado? Posso compreender a inteligência? Como vou preservar isso contra todos estes perigos?

K: Asit, talvez não se trate em absoluto de preservação. Olhe, senhor, demos por certo que os produtos químicos e os computadores vão substituir ao homem. E se o cérebro não se exercita tal como se está exercitando com os problemas, as ansiedades, os medos, etc., então se deteriorará inevitavelmente. E a deterioração significa que, pouco a pouco, o homem irá se convertendo em um robô. Então, como ser humano que tem sobrevivido durante vários milhões de anos, pergunto-me: O homem vai terminar nisto? Pode ser, e provavelmente assim terminará.

AC: A mim me parece que o movimento desta tecnologia é a muito ruim, porque há certa bondade que está sendo destruída.

K: Concordo.

AC: A tecnologia é criada pelos seres humanos. Parece ser um movimento de mal, e essa coisa maligna vai assumir o controle.

K: Por que o chama de mal?

AC: É o mal porque está destruindo o mundo.

K: Mas nos estamos destruindo a nós mesmos. A máquina não está nos destruindo. Nós no destruímos.

AC: A pergunta é, então: Como o homem pode criar a tecnologia e, no entanto, não ser destruído por ela?

K: Isso é correto. A mente se deteriora porque não permitirá que nada penetre em seus valores, em seus dogmas. Está presa aí. Se tenha uma forte convicção ou opinião, estou deteriorando. E a máquina vai ajudar-nos a que nos deterioremos mais rapidamente. Isso é tudo. Então, o que há de fazer um ser humano? E me pergunto: O que é um ser humano privado de tudo isto? Em outras palavras: Se ele não tem problemas e só persegue o prazer, o que é? Penso que essa é a raiz do problema. Isto é o que hoje busca o homem: prazeres em diferentes formas. E ele não será nada. Só estará comprometido na perseguição do prazer.

AC: E o computador e a televisão promoverão o prazer diretamente em sua casa. Senhor, agora mesmo há, não só cientistas em computação, senão também cientistas em genética, assim como multinacionais, comprometidos em criar entretenimentos eletrônicos; todos vão convergir em um ponto onde o homem terminará destruindo a capacidade do cérebro humano ou, como ser humano, viverá em um estado constante de prazer sem nenhum tipo de efeitos secundários. E o prazer será obtido por meio dos computadores e os produtos químicos. E uma relação direta com outros seres humanos, irá desaparecendo gradualmente.

K: Talvez nenhum experimento químico ou em computadores tenha chegado tão longe, mas nós devemos nos adiantar a eles. Isso é o que sinto. O que é, então, o que o homem tem perseguido através de toda sua existência? Qual é a corrente que tem perseguido sempre através de toda sua existência? O prazer.

AC: O prazer, sim, mas também o término da dor.

K: Não, o prazer. Evita o outro, mas, em essência, persegue o prazer.

AC: Persegue o prazer e, em certo ponto, vê a necessidade não tão só de prazer senão, em sentido negativo, de terminar com o sofrimento.

K: O que implica prazer.

K: É prazer a terminação do sofrimento?

K: Não. Você não entende meu levantamento. Eu desejo ter prazer a qualquer preço, e o sofrimento é, para mim, uma indicação de que não estou tendo prazer. Discute-o; não o aceite.

AC: O que eu digo é que, historicamente, o homem sempre tem perseguido o prazer.

K: E o que significa isso? Prossiga, analise-o.

AC: O “eu” o tem perseguido.

AP: Quando você diz o “eu”, está falando do “eu” físico ou do “eu” psicológico?

K: De ambos, não é verdade? Eu quero sobreviver física e psicologicamente, e para sobreviver tenho de fazer certas coisas; e para que faça certas coisas, estas devem ser prazerosas. Senhor, por favor, examine isto muito cuidadosamente. No fundo, o que o homem deseja é prazer. A busca de Deus é prazer. Correto? Isso é o que vai ser estimulado pela máquina, pelas drogas? E o homem, será tão só uma entidade interessada no prazer? O conflito consiste em encontrar um equilíbrio entre o bem e o mal?

Não creio que compreendam o significado disto. O conflito entre o bem e o mal tem existido desde tempos imemoriais. O problema é encontrar um equilíbrio ou um estado onde este conflito não exista — o qual é prazer. E o prazer é a coisa mais destrutiva em nossa vida. Concorda?

AP: Do ponto de vista do que você está dizendo, a investigação para liberar a mente de sua escravidão, cai no reino do prazer?

AC: Na realidade, o reduzimos tudo a isso: isso é o que os seres humanos têm feito. O apego, a escravidão mental, geram sofrimento. Por isso desejamos a liberdade. Podemos ver que toda ação humana termina finalmente em desejar a felicidade ou o prazer, e que ambos desejos são enormemente destrutivos? Vieram a parar em uma tecnologia que é também uma perseguição do prazer e que resulta autodestrutiva. Tem que haver algum outro movimento da mente, outro movimento que não consista em buscar o prazer, que não seja autodestrutivo. Não sei se existe, mas tem que existir.

K: Asit, tenhamos isto claro entre nós, entre você e eu. É um fato que os seres humanos, historicamente, sempre tem estado em conflito; sempre tem existido o conflito entre o bem e o mal; as pinturas antigas indicam uma luta. Estão cheias do espírito de conquista, o qual termina em prazer. As tenho contemplado, e ao contemplá-las me dou conta instantaneamente de que todo o movimento do homem tem sido isto. Não creio que alguém possa discuti-lo. Digo que a totalidade disso, não só a autoconservação física senão também a psicológica, formam parte desse movimento. Isso é um fato. É isso o que se mostra destrutivo da mente, do cérebro?

RB: Senhor, o que você entende por “bem” e que entende por “mal”, quando disse que o prazer não é outra coisa que a intenção de equilibrar o bem e o mal?

K: Você tem visto essas pinturas nas cavernas da França e Espanha. Tem milhares de anos de antiguidade. E nessas antigas pinturas se vê ao homem lutando contra o toro.

RB: Sim, em uma forma ou outra, isso existe em todas as partes.

K: Sim. Este conflito entre ambos — o que chamamos “bem” e o que chamamos “mal” — tem existido desde tempos imemoriáveis. Correto? O homem tem inventado o bem e o mal. Observe-o, observe sua própria mente. Não teorize. Observe-se a si mesma se pode, e veja o que são o bem e o mal. O fato jamais é “mal”. Estão de acordo? A ira é ira. Mas eu digo que é má e que, portanto, devo livrar-me da ira. Mas a ira é um fato. Por que necessita ser chamada “boa” ou má”?

RB: Chame-a ou não de má, pode ser terrivelmente destrutiva.

K: Pode ser muito destrutiva, mas tão logo a tenha chamado “má”, é algo que deve ser evitado, não é assim? E então começa o conflito. Mas a ira é um fato. Por que lhe dou qualquer outro nome?

PJ: Consideremos a magia negra. Você diria ou não que a busca disso é, por sua própria natureza, o mal?

K: A que você chama “magia negra”?

PJ: A magia negra é a busca de algo com a intenção de destruir outra pessoa.

K: Que é o que estamos fazendo, ainda que possamos não chamá-lo de magia negra. Veja, Pupul, o que é, no fim das contas, a guerra?

PJ: Deixe-me ir devagar; você não está apreciando. Do que eu falo é de colocar em funcionamento, supostamente, poderes que não são poderes físicos.

K: Fazem alguns anos, tenho visto aqui, no Vale de Rishi, cravada debaixo de uma árvore, uma figura de um homem, ou uma mulher, na qual haviam introduzido alfinetes. Perguntei de que se tratava, e me o explicaram. Bem, agora, existia a intenção de causar danos a alguém. Entre isso e a intenção de ir a guerra, qual a diferença?

Vocês perdem, passam por alto, uma quantidade impressionante de coisas. O que há de mal com todos vocês é que são sumamente prontos. A luz não é boa nem má. O que significa isso? Olhe, senhor, o computador, os produtos químicos, estão tomando o lugar do homem. Isto não é bom nem mal; está ocorrendo. Certamente, há crueldade; certamente, há bondade. Isso é óbvio. Há a mãe dando umas palmadas no menino, e há a que, compassivamente, diz: “Não cause dano a ninguém”, há uma diferença, é evidente. Por que chamam a isso de bom ou mal? Por que chamam a algo de “mal”? Estou rebatendo a palavra, isso é tudo.

Podemos passar a outra coisa? O prazer está sempre no conhecido. Não tenho prazer hoje, mas passado amanhã, isso poderia chegar a ocorrer. Gosto de pensar que ocorrerá. Não sei se veem o que quero dizer. O prazer é um movimento no tempo. Há prazer que não esteja baseado no conhecimento? Toda minha vida é o conhecido. Projeto o conhecido para o  futuro. O futuro é o presente modificado, mas segue sendo o conhecido. Não tenho prazer no desconhecido. E o computador, etc., estão no campo do conhecido. A verdadeira pergunta é, então, se a partir do conhecido há liberdade. Essa é a verdadeira pergunta, porque o que há é prazer, sofrimento, medo. Todo o movimento da mente é o conhecido. E a mente que pode projetar o desconhecido, pode teorizar, mas isso não é um fato. De modo que os computadores, os produtos químicos, a engenharia genética, a clonagem, tudo isso é o conhecido. Pode, pois, haver liberdade com relação ao conhecido? O conhecido está destruindo o homem. Os astrofísicos se projetam ao espaço a partir do conhecido. Perseguem a investigação dos céus, do cosmos, por meio de aparatos construídos pelo pensamento, e observam através desses aparatos e descobrem o universo, o observam, mas tudo isso segue sendo o conhecido.

PJ: A mente do homem se vê hoje ameaçada e está sendo destruída, por causa do modo como está funcionando. Algo muito interessante tem me impactado já faz um tempo: a afirmação de que o atual funcionamento da mente — tal como a conhecemos — será destruído, seja pela máquina que a substituirá ou por outro, quer dizer, pela liberdade com relação ao conhecido. Assim que eu vejo, senhor, o desafio é muito mais profundo.

K: Sim. Isso é o que eu disse. Você o captou. O que Pupul disse é, se o entendo corretamente, que o conhecido, dentro do qual funcionam nossas mentes, está nos destruindo. O conhecido é também o que se projeta ao futuro, tal como as máquinas, as drogas, a genética, a clonagem; tudo isso tem sua origem no conhecido. De modo que ambas coisas estão nos destruindo.

AC: Ela também disse que a mente do homem tem se movido sempre no conhecido, na perseguição do prazer. O resultado disso tem sido a tecnologia que destruirá a mente. Depois ela disse que o outro movimento, que é a liberdade a respeito do conhecido, também destruirá a mente tal como agora a conhecemos.

K: O que você está dizendo?

AC: Ela disse que há dois movimentos. O movimento do conhecido está nos conduzindo a uma destruição cada vez maior da mente. A saída é liberar-se do conhecido, e isso também destrói o movimento do conhecido.

K: Espere. A liberdade não é libertar-se de algo. A liberdade é um findar. Entende?

AC: Você disse, senhor, que esta liberdade com relação ao conhecido é de tal natureza que não se destrói este movimento? Disse que nesta liberdade com relação ao conhecido, o pensamento tem seu lugar, a mente tem seu lugar? Você disse que nisto há liberdade?

K: Digo que só há liberdade, mas não que se liberta do conhecido.

PJ: Eu quero dizer que o que chamamos mente, opera, funciona, de uma maneira particular. Essa mente humana é colocada sob pressão pelos avanços tecnológicos. Este outro, quer dizer, a liberdade com relação ao conhecido, é também totalmente destrutivo desta função da mente. Portanto, uma mente nova — seja ela nascida da tecnologia ou uma que esteja livre do conhecido — é inevitável. Essas são as únicas duas coisas; a situação presente está excluída.

K: Sejamos claros. Ou tem que haver uma mente nova, ou o que hoje ocorre vai destruir a mente. Correto? Mas a mente nova só pode existir de fato, não teoricamente, quando cessa o conhecimento. O conhecimento tem criado a máquina e nós vivemos com base no conhecimento. Somos máquinas; mas agora estamos separando ambas as coisas. A máquina está nos destruindo. A máquina é o produto do conhecimento. Em consequência, o que nos destrói é o conhecimento, não a máquina. De modo que a interrogação é, então, se o conhecimento pode terminar, e não se podemos nos libertar do conhecimento.

AC: A pergunta é: Pode o conhecimento terminar? Ou a ação nascida do conhecimento? A ação que procede do conhecimento pode terminar. O conhecimento não pode terminar.

K: Pode. Veja, a ação é liberdade com relação ao conhecimento.

AC: O conhecimento não pode terminar.

K: Sim, senhor.

PJ: O que você quer dizer quando sustenta que todo o conhecimento chega a seu fim?

K: O conhecimento é o conhecido. Pode terminar o conhecimento? Agora não estamos falando do conhecimento tecnológico. Quem vai terminar com o conhecimento? A pessoa que termina com o conhecimento segue fazendo parte do conhecimento. Não há, pois, uma entidade separada do conhecimento, que possa terminar com o conhecimento. Por favo, vejam devagar.

AC: Só há conhecimento?

K: Só existe o conhecimento, não o findar do conhecimento. Não sei se estou me expressando com clareza.

AC: Então, senhor, há a tremenda força de conservação própria e só há conhecimento. E você pergunta: Pode o conhecimento terminar? O qual implica autoaniquilação.

K: Não; entendo o que você disse. Deixo, então, por hora, o findar do conhecimento. Estou dizendo que ambos — o computador e minha vida — se baseiam no conhecimento. Não há, pois, divisão entre ambos.

AC: Isso eu entendo.

K: Isto é algo extraordinário. E enquanto estejamos vivendo com base no conhecimento, nossos cérebros vão ser destruídos pela rotina, pela máquina, etc. De modo que a mente é conhecimento. Não é questão de dizer que ela deve libertar-se do conhecimento. Veja isso. Só existe a mente que é conhecimento.

Vou dizer-lhe algo. Veja, você tem se bloqueado a si mesmo. Não diga que isso é impossível. Se você houvesse dito que isso é impossível, não poderia ter inventado computadores. Mova-se a partir daí. Qualquer coisa que a mente faz — inclusive dizer que deve ser livre — estará sempre dentro do campo do conhecimento. Qual é, então, o estado da mente que se dá conta completamente, ou sabe, que é inteiramente conhecimento?

Movi-me. Não vê?O que ocorreu agora? Ao que parece, o conhecimento é movimento. O conhecimento foi adquirido por obra do movimento. De modo que é movimento. Assim, pois, o tempo e tudo isso, é movimento.

AC: Você está falando do estado da mente quando o tempo se detém.

K: Isso é liberdade. O tempo é movimento. O que isso implica? É muito diferente, senhor. Unamos isto: A mente inventou o computador. Tenho usado a palavra “computador” para incluir toda a tecnologia: a genética, a clonagem, os produtos químicos, etc. Tudo isso tem sua origem no conhecimento que o homem tem adquirido. Segue sendo o conhecido, o produto do conhecido, com suas hipóteses, suas teorias e refutações, etc. O home também tem feito exatamente a mesma coisa que a máquina. Não há, pois, divisão entre ambos. A mente é conhecimento — seus deuses, seus templos tem nascido do conhecimento. O conhecimento é um movimento. Pode esse movimento se deter?

Isso é realmente liberdade. Quer dizer que a percepção está livre do conhecimento, e a ação não surge da percepção baseada no conhecimento. Quando percebemos a serpente, essa percepção se baseia em séculos de condicionamento com respeito à serpente. A percepção de que sou hindu, com tudo o que tem ocorrido em nome disso ao longo de três mil anos, é o mesmo movimento. E nós estamos vivendo nesse campo todo o tempo. Isso é o destrutivo, não a máquina. A menos que a máquina da mente se detenha — não o computador — vamos destruir a nós mesmos.

Existe, pois, uma percepção que não tenha sua origem no conhecimento? Porque quando este movimento chega a seu fim, tem que haver ação.

AC: Em outras palavras, isso é atuar no mundo, mas sem que nada nos afete, sem deixar nenhuma pegada. Nada deixa raízes.

K: E o que isso significa? Uma percepção que não pertence ao conhecimento. Existe uma percepção assim? Certamente, há uma percepção que não pode ser computadorizada. Esta investigação, se origina no instinto de prazer? Todos estamos investigando.

PJ: Não sei se é por prazer ou por algo diferente.

AC: Não importa se o computador pode fazê-lo ou não. O essencial é que nós o façamos.

PJ: O qual nos conduz à situação de que há algo que deve ser investigado.

K: Vocês já veem quão profundamente arraigado isso está!

AC: A pergunta é esta: Qual é o mecanismo da mente, a estrutura da mente que opera com a percepção, com o discernimento instantâneo, e sem que haja acumulação alguma?

K: Mas considerem o que temos feito, vejam quanto tempo tem levado para chegar a esse ponto que é a percepção sem registro algum! Por quê? Porque funcionamos no tempo.

AC: Em outras palavras, o que você disse é que não se tem que passar por esse processo. Se nós temos chegado a este ponto e não atuamos, isso é muito perigoso, muito mais perigoso que não ter nenhuma discussão a respeito.

K: Isso é o que estou dizendo. É um tremendo perigo. Vocês têm chegado a um ponto onde veem o que a mente tem inventado: a máquina que é o computador, as drogas, os produtos químicos, a clonagem, tudo isto? E vem que isso é a mesma coisa que nossas mentes? Nossas mentes são tão mecânicas como isso. E estamos atuando sempre nessa área. Portanto, estamos nos destruindo a nós mesmos. Não é a máquina o que nos destrói.

PJ: Você pode dizer, ao final disso, sacrifício, sacrifício, sacrifício. Quer dizer que não temos feito nossos deveres.

K: Não estou seguro se não você não retrocedeu no tempo. Veja, um pianista disse uma vez: “Se você pratica, está praticando o indevido”.

PJ: Isto não é uma questão de prática.

K: Pupulji, todos os professores estão sentados ali. O que vão fazer? Colocar aqui uma bomba? Entende o que quero dizer? Estamos manipulando uma bomba, e pode explodir a qualquer momento. Não sei se se dão conta disto. É algo tremendo.

AC: É muito mais perigoso.

K: Isto é realmente alarmante. Pergunto-me se o advertem. O que farão? Esta é a verdadeira revolução.

AC: E não só para os professores e os estudantes.

K: Certamente, certamente.

AC: Eu queria perguntar-lhe: A mente que o tenha acompanhado até um ponto, a mente que alcança este ponto, se torna muito mais vulnerável ao mal?

K: Compreendo o que você quer expressar.  Não o discutiremos agora. De modo, senhor, que o problema é deter o movimento, colocar-lhe fim, e não colocar fim ao conhecimento. Esse é o verdadeiro problema.

Rishi Vale
4 de dezembro de 1980
Fogo na Mente

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill