BELEZA E PERCEPÇÃO
Interlocutor
P: Onde descansa a beleza? Onde reside?
Evidentemente, as manifestações exteriores de beleza são observáveis; a correta
relação entre espaço, forma e cor, e a correta relação entre os seres humanos.
Mas, qual é a essência da beleza? Nos textos sânscritos se igualam três
fatores: a Verdade, o Bem, a Beleza Satyam,
Sivam, Sundaram.
KRISHNAMURTI:
O que você trata de investigar? Quer investigar a natureza do belo? O que os
profissionais dizem a respeito?
P:
O
tradicionais dirão: Satyam, Sivam, Sundaram. O artista de hoje não distinguirá
entre o aparentemente feio e o aparentemente formoso, mas consideraria o ato
criativo como a expressão de um momento, de uma percepção que se transforma dentro
do indivíduo e encontra expressão na
obra do artista.
KRISHNAMURTI:
Você pergunta que é a beleza, que é a expressão da beleza e como se realiza o
indivíduo mediante a beleza. Que é a beleza? Se você começara como se não
soubesse nada a respeito, qual seria sua reação? Este é um problema universal.
O tem sido para os gregos, para os romanos, e segue sendo um problema para o
homem contemporâneo. O que é então a beleza? Ela está no por de sol, numa manhã
formosa, na relação humana, na mãe e o menino, no esposo e a esposa, o homem e
a mulher? Radica a beleza no movimento extraordinariamente sutil do pensamento,
e em uma clara percepção? É isso o que coce chama de beleza?
P:
Pode também haver beleza no terrível, o
feio?
KRISHNAMURTI:
Há beleza no assassinato, nas carnificinas, no lançar bombas, na violência, na
mutilação, na tortura, na cólera? Há beleza no brutal, na perseguição agressiva
e violenta de uma ideia, no desejo de ser superior que algum outro?
P: Em todos esses atos não há beleza.
KRISHNAMURTI:
Onde está a beleza se um homem ataca a outro?
P: Na obra criativa de um artista que
interpreta o terrível como o “Guarnica” de Picasso, há beleza?
KRISHNAMURTI:
Então temos que perguntar-nos o que é a expressão, o que é a criatividade. Você
pergunta o que é a beleza. Ela está em um por do sol, na pura luz da manhã, no
entardecer, na luz sobre a água, na relação, etc. Há beleza em qualquer forma
de violência, incluída a realização competitiva? Existe a beleza per si, e não no modo como o artista se
expressa a si mesmo? Um menino torturado pode ser expressado pelo artista, mas,
isso é beleza?
P: A beleza é uma coisa relativa.
KRISHNAMURTI:
O “eu” que vê é relativo, condicionado, está preso na busca da própria
realização. Antes de tudo, o que é a beleza? É o bom gosto? Ou a beleza nada
tem que ver com todas essas coisas? Consiste a beleza na expressão e, portanto,
na realização? Por isso o artista diz: devo realizar-me por meio da expressão.
Um artista estaria perdido sem a expressão, que é parte da beleza e da
auto-realização. Assim, antes de investigar tudo isto, qual é a natureza
intrínseca, o sentimento, a condição sutil da palavra beleza, de tal modo que a
beleza seja verdade, e a verdade, beleza?
De
algum modo, mediante a expressão, tratamos de encontrar beleza na arquitetura,
na maravilhosa ponte — a Golden Gate de São Francisco ou o poente sobre o rio
Sena —, nos modernos edifícios de vidro e aço, e na delicadeza de uma fonte.
Buscamos a beleza nos museus, na sinfonia. Sempre estamos buscando a beleza na
expressão de outras pessoas. O que há de mal em um homem que vai em busca da
beleza?
P: A expressão de outras pessoas são as únicas
fontes acessíveis para nós.
KRISHNAMURTI:
E isso, o que significa?
P: Ao ver a ponte, dentro de mim surge uma
certa qualidade à que chamamos beleza. É só com a percepção de algo belo que
aparece a qualidade da beleza em muitos indivíduos.
KRISHNAMURTI:
Compreendo isso. E pergunto: a beleza está na autoexpressão?
P: Você tem que começar com o que existe.
KRISHNAMURTI:
O que é a expressão de outras pessoas. Não tenho a visão perceptiva, o estranho sentimento interno da beleza, digo:
que formosa é essa pintura, esse poema, essa sinfonia. Se acabamos com tudo
isso, o individuo não conhece a beleza; portanto, para sua apreciação da beleza
ele confia na expressão, no objeto, na ponte ou em uma boa cadeira.
A
beleza requer expressão, especialmente, autoexpressão?
P: Ela pode existir independentemente da
expressão?
KRISHNAMURTI:
A percepção da beleza é sua expressão, não são duas coisas separadas.
Percepção, visão, ação; perceber é expressar. Nisso não há, absolutamente, um
intervalo de tempo. Ver é fazer, atuar. Não existe uma brecha entre o ver e o
fazer.
Quero
ver a mente que vê, a mente em que o ver é atuar; quero observar a natureza da
mente que possui esta qualidade. O que é esta mente? No essencial, ela não se
preocupa com a expressão. A expressão pode ter lugar, mas a mente não está
interessada em expressar-se. Porque a expressão toma tempo — construir uma
ponte, escrever um poema —, mas a mente que vê, que percebe, está em plena
ação. Para uma mente assim o tempo, absolutamente, não existe; essa mente é uma
mente sensível, é uma mente que possui o mais alto grau de inteligência. E sem
essa inteligência, há beleza?
P: Que lugar o coração tem nisto?
KRISHNAMURTI:
Você se refere ao sentimento de amor?
P: A palavra “amor” está muito carregada. Se
você permanece quieto, silencioso, há uma estranha sensação, tem lugar um
movimento a partir da região do coração. O que é isto? É algo necessário ou é
um estorvo?
KRISHNAMURTI:
Esta é a parte mais vital e indispensável; sem ela não há percepção. A mera percepção intelectual não é percepção.
A ação da percepção intelectual só é uma ação fragmentária, enquanto que a
inteligência inclui o afeto, o coração. De outro modo você não é sensível, não
pode perceber. Perceber é atuar.
Perceber, atuar sem tempo, é beleza.
P: Os olhos e o coração operam simultaneamente
no ato de perceber?
KRISHNAMURTI:
A percepção significa atenção plena — nervos, ouvidos, cérebro, coração, tudo
opera em seu mais alto nível. De outro modo não há percepção.
P: A qualidade, a natureza fragmentária da
ação sensorial, consiste em que todo o organismo não opera ao mesmo tempo.
KRISHNAMURTI:
O cérebro, o coração, os nervos, a vista, o ouvido — a coisa total —, nunca se
acham em um estado de atenção plena. Se não estão, você não pode perceber.
Portanto, o que é a beleza? Ela está na expressão, na ação fragmentária? Eu
posso ser um artista, um engenheiro, um poeta. O poeta, o engenheiro, o
artista, o cientista, são seres humanos fragmentários. Um fragmento se torna extraordinariamente
perceptivo, sensível, e sua ação pode expressar algo maravilhoso. Mas essa
segue sendo uma ação fragmentária.
P: Quando o organismo percebe a violência, o
terreiro da perversidade, o que é esse estado?
KRISHNAMURTI:
Tomemos a violência em suas múltiplas formas. Mas, por que você formula esta
pergunta?
P: É necessário formulá-la para investigar isto.
KRISHNAMURTI:
Você pergunta se a violência forma parte da beleza?
P: Eu não colocaria desse modo.
KRISHNAMURTI:
Você vê a violência. Qual é a resposta de uma mente perceptiva — no sentido em
que estamos usando a palavra “perceptiva” —, para toda forma de destruição, a
qual é parte da violência? (Pausa).
O
captei! É a violência um ato totalmente perceptivo ou uma ação fragmentária?
P: Não está claro. Não se trata disso.
KRISHNAMURTI:
Você introduziu a violência. Eu quero investigar a violência. A violência é um
ato de uma percepção totalmente harmoniosa?
P: Não.
KRISHNAMURTI:
Você diz então que é uma ação fragmentária, e a ação fragmentária deve negar a
beleza.
P: Você inverteu a situação.
KRISHNAMURTI:
Qual é a resposta de uma mente perceptiva quando vê a violência? A olha, a
investiga e a vê como uma ação fragmentária. Portanto, não é um ato de beleza.
O que ocorre a uma mente perceptiva quando vê um ato de violência? Essa mente
vê “o que é”.
P: Segundo isso, para você, a natureza da mente,
não muda?
KRISHNAMURTI:
Por que haveria de mudar? A mente está vendo “o que é”. Avance um passo a mais.
P: O fato de ver “o que é”, muda a natureza de
“o que é”? Há um perceber. Há a violência, que é fragmentária. A percepção
disso, modifica a natureza da violência?
KRISHNAMURTI:
Espere um momento. Você pergunta qual é o efeito de uma mente perceptiva que
observa a violência, não é certo?
P: Você disse que ela vê “o que é”: Isso
altera “o que é”? A mente perceptiva observa a violência e vê “o que é”, o fato
mesmo de ver, atua sobre a violência mudando sua natureza?
KRISHNAMURTI:
Você quer saber se a mente perceptiva, ao ver o ato de violência, de “o que é”,
pergunta: que devo fazer?
P: Uma mente assim não “faz”. Sem dúvida, por
parte da mente perceptiva tem que haver uma ação que modifica a natureza do ato
violento do outro.
KRISHNAMURTI:
Que ação poderia haver por parte da mente perceptiva?
P: Essa mente “vê” a violência que provem de
X. Ver é atuar.
KRISHNAMURTI:
Mas o que ela pode fazer?
P: Eu diria que se a mente perceptiva atua,
deve modificar a violência em X.
KRISHNAMURTI:
Deixemos isto claro. A mente perceptiva vê que o outro atua violentamente. Para
ela, o mesmo ver é o fazer. Esse é um fato: que a percepção é ação. Esta mente
perceptiva vê a X atuando com violência. Qual é a ação envolvida nesse ver? A
de deter a violência?
P: Todas essas ações são periféricas. O que eu
digo é que quando uma mente perceptiva se depara com um ato de violência, o
mesmo ato de ver altera a ação da violência.
KRISHNAMURTI:
Há várias coisas envolvidas nisto. A mente perceptiva vê um ato de violência. O
homem que está atuando violentamente pode responder não-violentamente, porque a
mente perceptiva esta próxima, muito próxima dele, e isso ocorre prontamente.
P: Alguém vem a Você com um problema — ciúmes.
O que ocorre em uma entrevista com você quando a ela chega uma pessoa que está
confusa? No ato mesmo de perceber, não há confusão alguma.
KRISHNAMURTI:
É obvio que isso tem lugar por causa do contato. Você tomou o aborrecimento de
discutir a violência, e algo ocorre porque compartilhamos juntos o problema de
maneira direta. Há comunicação. É muito simples. Você vê a um homem que está
agindo com violência e esse homem se encontra muito longe. Qual é aí a ação da mente perceptiva?
P: Uma mente perceptiva deve emanar uma
tremenda energia. Isso tem que exercer alguma ação.
KRISHNAMURTI:
Talvez atue. Não se pode estar seguro disso como posso está-lo quando se
encontra próximo. Talvez o outro se desperte em meio da noite, talvez se dê
conta que a resposta chega estranhamente mai tarde, depende da sensibilidade.
Isso pode dever-se ao impacto da mente perceptiva, enquanto que esta
comunicação estreita é diferente. Ela produz uma modificação.
Voltemos.
Você perguntava o que é a beleza. Penso que podemos dizer que a mente que em si
não é fragmentária, que não está dividida, tem esta beleza.
P: A beleza está relacionada de algum modo com
a percepção sensorial se se fecha os olhos e os ouvidos...?
KRISHNAMURTI:
É independente disso. Quando você fecha os ouvidos, os olhos, não há
fragmentação; portanto, isso tem a qualidade da beleza, da sensibilidade. Não
depende da beleza externa. Ponha o instrumento de uma mente assim, em meio da
cidade mais ruidosa. O que ocorre? A partir do ponto de vista físico, ele se vê
afetado, mas não a qualidade da mente que não se acha fragmentada. Ela é
independente das circunstancias que a rodeiam; portanto, não se interessa na
expressão.
P: Isso significa a solidão da mente.
KRISHNAMURTI:
Em consequência, a beleza é solidão. Por que este desejo veemente de
autoexpressão? Ele faz parte da beleza, tanto se é o desejo de uma mulher de
ser mãe, ou do marido por sexualidade nesse momento de ternura, ou o do artista
ansiando expressar-se?
A
mente perceptiva exige alguma forma de expressão? Não, porque perceber é
expressar, atuar. O artista, o pintor, o consultor, buscam a autoexpressão, que
é fragmentária e, portanto, a expressão dele não é a beleza. Uma mente condicionada,
fragmentária, expressa esse sentimento do belo, mas este se acha condicionado.
Isso é beleza? Portanto, o eu que é a mente condicionada nunca pode ver a
beleza, e qualquer coisa que expresse deve ter sua mesma qualidade.
P: No entanto, você não contestou um aspecto
da questão. Existe algo como o talento criativo, a habilidade de produzir
coisas de uma maneira tal que elas procurem felicidade?
KRISHNAMURTI:
A dona de casa que orna pão, mas não “a fim de”. No momento em que você faz as
coisas com um propósito, está perdido.
P: Trata-se de criar felicidade.
KRISHNAMURTI:
Não é função de alguma outra coisa. Não se senta na plataforma e fala com o
motivo de que isso procure por felicidade. A fonte de água nunca está vazia.
Sempre brota borbulhante, tanto se é água contaminada ou água a qual se rende
culto; está aí, brota.
As
pessoas que se ocupam da autoexpressão estão em sua maioria interessadas em si mesmas.
O artista, famoso ou não, pertence a essa categoria. E o “eu” é o autor da fragmentação.
Na ausência do “eu” há percepção. A percepção é ação, e isso é beleza.
Estou
seguro que o escultor que cinzelou o Mahesha Murti de Elephanta, o criou em sua
meditação. Antes de que você tenha colocado sua mão em uma pedra ou em um poema,
o estado tem que ser o da meditação. A inspiração não deve provir do “eu”.
P: A tradição do escultor hindu era essa.
KRISHNAMURTI:
A beleza é a total abnegação do eu, e com a total ausência do eu surge “aquilo”.
Nós tratamos de capturar “aquilo” sem a ausência do eu, e a criação se converte,
então, em um mero assunto de ostentação.
Nova Déli, 29 de dezembro de 1970
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