O OBJETO, O CONHECIMENTO E A PERCEPÇÃO
Interlocutor
A: Penso que deveríamos investigar o
problema da percepção e da beleza. Outro dia você disse que a tradição havia
ignorado o campo da beleza. Nós temos necessidade de explorar isso.
KRISHNAMURTI:
Qual é então o problema? O que é a beleza? Você entende em primeiro lugar a
percepção, e depois a beleza? Certamente, não se trata de percepção e beleza,
senão de percepção. Qual seria o modo tradicional de se abordar isto?
R: Uma fonte tradicional sustenta que a beleza
é o sentimento de felicidade que advém quando se termina o desejo ou a sede de
experiências.
KRISHNAMURTI: Isto é uma teoria ou uma realidade?
R: Quem escreveu isso expressou o que sentia;
depois de tudo, faz muito tempo que o escreveu e só restaram fragmentos de seus
escritos.
A: Kalidasa disse que a experiência da beleza
é nova a cada instante.
R: Tanto na Índia como na Grécia existia este
sentimento de que as percepções essenciais são as percepções da verdade,
bondade e beleza.
KRISHNAMURTI:
Estamos considerando a beleza ou a percepção? Vamos discutir a percepção. Qual
é o enfoque tradicional com relação à percepção?
R: Fala-se disso extensamente, e existem
muitos pontos de vista contraditórios.
A:
A percepção é “pratyaksham”; perceber é
ver a natureza mesma das coisas, sua qualidade essencial.
KRISHNAMURTI:
Ver a natureza das coisas é percepção, não é assim? Não falo do que se vê senão
do ato de ver. Eles falam do ato de ver, e não do que é visto?
R: Eles falam do que é conhecimento válido e
do que não é conhecimento válido.
KRISHNAMURTI:
Uma coisa é ver e outra coisa é ver algo. De qual vocês estão falando? De ver per si, ou de ver algo?
A: Penso que falamos de ver. Eles se ocupam do
perigo constante que implica o ver erroneamente.
KRISHNAMURTI:
Não. Nós não estamos falando de ver corretamente ou incorretamente, senão do
que é a percepção; não do que você vê — a cadeira, a corda, a serpente.
A: Há diferença entre o ver e o conhecer?
KRISHNAMURTI:
A fome é em si mesma, não está relacionada com a comida. Você come porque tem
fome, mas a natureza da fome é a fome. O que é para você o ver, o perceber? Não
ver o objeto, senão a qualidade da mente que percebe. Ver o objeto com os olhos
é uma coisa, ver com o conhecimento é outra. Eu me refiro ao ver em si mesmo.
Existe um ver sem o conhecimento, sem o objeto? Eu vejo esse aparador. O vê-lo
é com a palavra e com o conhecimento, estando a palavra associada com o
aparador. Há um ver sem a imagem, sem o objeto? O ver o objeto através do
conhecimento, da imagem, do símbolo, da palavra; e um ver sim o conhecimento e
a imagem, sem o objeto...
A: O que é ver sem o objeto? Pode-se sem o
conhecimento. Como você disse, há um aparador sem a imagem, mas ainda sabemos
que isso é um aparador, o qual significa que é um objeto.
KRISHNAMURTI:
Há o pequeno arbusto, e veja-o ou não, crescerá e se converterá em uma árvore.
Isso é independente de meu ver. Posso chamá-lo manga e, portanto, relacioná-lo
com a espécie “manga”; e a manga se desenvolverá ainda quando eu não o veja.
R: A existência disso não tem relação alguma
com o ver...
A: O objeto existe sem nosso ver, mas uma
percepção assim, pode existir sem o objeto?
KRISHNAMURTI:
Essa árvore continuará existindo.
A: Na meditação budista, eles têm se referido
ao céu quando falam da percepção sem o objeto. O céu é um objeto sem dúvida,
não é um objeto.
KRISHNAMURTI:
O significado que o dicionário dá para “percepção” é: tornar-se consciente de,
aprender. Ou seja, que quando você vê o aparador, tem um conceito prévio dele;
isso não é percepção. Existe um ver sem o preconceber? Só uma mente que não tem
conclusões prévias pode ver. A outra não. Se eu tenho um conhecimento prévio do
aparador, a mente o identifica como aparador. Olhar esse aparador sem a prévia
acumulação de preconceitos ou cicatrizes psicológicas, é olhar. Se tenho
feridas prévias, recordações de dor, prazer, desgosto, não posso ter olhado.
Existe
um olhar sem o objeto, sem o conhecimento do objeto? Certamente que existe.
Você pode olhar essa árvore sem o conhecimento da árvore, sem a imagem, o
símbolo, etc.? Simplesmente olhar.
Uma
pessoa veio me ver. Era um diretor de cinema. Contou que havia tomado LSD e que
suas reações haviam sido gravadas em cinta magnética. Uma vez ingerida a droga,
sentou-se em uma cadeira a aguardar o efeito. Nada ocorreu. Esperou e se moveu
um pouco de sua direção. Imediatamente o espaço entre ele e o objeto
desapareceu. Antes, o observador tinha espaço entre ele e a coisa que observava
— que era uma flor. No momento em que desapareceu o espaço, aquilo não era a
flor, era algo extraordinário. Esse foi o efeito da droga. Mas aqui se trata de
algo diferente; o observador é possuidor do conhecimento, e é o conhecimento o
que reconhece o aparador. O que vê o objeto é o observador.
Vejam
em primeiro lugar o que ocorre. O observador com seu conhecimento, reconhece o
aparador. O reconhecimento implica um conhecimento prévio; portanto, o
observador é o conhecimento como passado. Agora perguntamos: existe a percepção
sem o observador, que é conhecimento, o que, por sua vez é passado? A percepção
por si mesma, não por algo ou com relação a algo.
R: Se não há conhecimento do passado, não há
observador. Se não há observador, não há conhecimento do passado.
KRISHNAMURTI:
Portanto, é possível ver sem o observador. Estou dizendo “possível”. A
possibilidade se torna uma teoria, de modo que não podemos tratar com teorias,
senão ver que o observador é o resíduo do passado e que por isso não pode ver.
Só pode fazê-lo através do filtro do passado, por conseguinte, seu ver é
parcial. Se há de haver percepção, o observador deve estar ausente. Isso
é possível?
R: O que ocorre com um artista? É óbvio que
ele percebe com uma percepção que não é a percepção comum que nós temos.
KRISHNAMURTI:
Espere um momento. A percepção é intelectual?
R: Não, o intelecto é o passado.
KRISHNAMURTI:
Portanto, não se trata do ver de um artista ou de quem não é um artista, senão
de ver sem o passado. Esse realmente é o problema. O artista pode ver por um
momento sem o passado, mas ele traduz isso, o interpreta.
R: É uma percepção momentânea.
KRISHNAMURTI:
Existe um ato de percepção sem o observador? Ato significa ação instantânea,
não uma ação contínua. A mesma palavra “ato” quer dizer “fazendo”; não, “tenho
feito” ou “farei”.
Por
conseguinte, a percepção é uma ação, não em termos de conhecimento; não a ação
do ator com seu conhecimento. De modo que os profissionais não estão
interessados na ação, não é verdade? Eles se preocupam com o conhecimento e a
ação, correto?
R: Não o sei. Há alguns textos nos quais se
têm dito que a percepção da beleza tem lugar no momento em que não existe
tempo, o nome, a forma e o espaço.
KRISHNAMURTI:
Não estamos falando da beleza. A percepção implica ação. Eu conheço a ação que
existe quando atua o observador. O observador, havendo aprendido uma linguagem
ou uma técnica particular, havendo adquirido conhecimentos, atua.
A: Percepção, significa contato direto entre o
órgão dos sentidos e o objeto?
R: Os tradicionalistas falam da percepção imediata
e não imediata. A percepção imediata tem lugar através do instrumento, de um
intermediário, enquanto que a percepção não imediata não requer do órgão
sensorial para ver. Talvez a percepção não imediata esteja mais próxima daquilo
ao qual você se refere.
KRISHNAMURTI:
Você vê que a percepção que resulta do conhecimento e a ação, é uma ação do
passado. Isso é uma coisa. E a ação da percepção é outra coisa diferente.
A: A percepção é ação em si mesma; portanto,
aí não há a intervenção do tempo.
KRISHNAMURTI:
Chega a seu fim o intervalo de tempo entre a ação e o conhecimento — o
conhecimento como observador. Isso que é conhecimento-ação está preso ao tempo,
enquanto que o outro não o está. De modo que isto é claro. Que é então, a
beleza na relação com a percepção?
R: É o fim do desejo de experiência. Isso é o
que dizem os tradicionalistas.
KRISHNAMURTI:
A visão da bondade, da beleza, do amor, da verdade... Descarte tudo isso. O que
é então a beleza? O que é necessário para a percepção da beleza?
R: Não se trata de mera percepção, porque a
percepção pode ser com respeito a tudo, inclusive ao que não é belo.
KRISHNAMURTI:
Não introduza o feio. Percepção é ação, perceber é atuar, atenha-se a isso.
Estamos falando da beleza; você levantou o que dizem os profissionais. Bem,
agora, o que é a beleza? Esqueçamos o que os outros têm dito. Eu quero
averiguar o que é a beleza. Dissemos que esse edifício é belo, que esse poema é
belo, que essa mulher é bela. A beleza é assim o sentimento de certa qualidade —
tornando-se a expressão o meio para reconhecer a beleza. Vejo um edifício e
digo: “que maravilhoso!” De modo que reconhecemos a beleza através do objeto.
Existem
diversas expressões da beleza. Por meio do objeto reconhecemos o que é a
beleza. Agora descarte isso. A beleza
não é expressão. A beleza não é o
objeto belo. Então, o que é beleza? Ela se encontra no espectador? O
espectador é o observador. O observador com seu conhecimento passado, reconhece
algo como belo porque sua cultura lhe tem dito que isso é belo, sua cultura o
condicionou.
A: A mulher que dá prazer é bela, e quando não
dá prazer deixa de ser bela.
KRISHNAMURTI:
Eu descarto a expressão, descarto o objeto criado e descarto o percebedor que
vê a beleza no objeto. Descarto todas essas coisas. Qual é então a qualidade da
mente que as descartou? Tenho descartado tudo o que o homem tem dito a respeito
da beleza, porque vejo que ela não está em nada do que se tem dito. O que
ocorreu coma mente que tenha descartado
ao pensamento, ao pensamento que já tenha criado o objeto? Qual é a condição da
mente que tenha descartado todas as estruturas erguidas pelo homem que tem dito
que isto é belo, que isto não é belo?
É
óbvio que a mente se tornou muito sensível, porque antes levava uma carga e
agora está mais esclarecida. Portanto, é sensível, está alerta, desperta.
R: Você disse que descartou o objeto e o
pensamento que tem criado o objeto.
A: O pensamento é conhecimento.
KRISHNAMURTI:
O pensamento é conhecimento, o qual tem se acumulado através da cultura que diz
que isto é a beleza. O pensamento é a resposta da memória que tem criado o
objeto. Tenho descartado tudo isso, a ideia da beleza como verdade, bondade,
amor. A percepção disso é ação e a ação mesma é o descartar; não o “eu descarto”,
senão o descartar. Portanto, agora a mente é livre. A liberdade não implica a
liberdade de algo, senão liberdade. O
que ocorre então? A mente é livre, altamente sensível; já não está mais
carregada com o passado, o que significa que nessa mente não há, absolutamente,
observador, não há um “eu” que observa, porque o “eu” que observa é um assunto
muito mas muito limitado. O “eu” é o observador, o “eu” é o passado. Veja o que
temos feito. Há o objeto, o conhecimento e a percepção; mediante o conhecimento
reconhecemos o objeto. E os fazemos a seguinte pergunta: existe a percepção sem
o conhecimento, sem o observador? É assim que descartamos a ambos: o objeto e o
conhecimento; no perceber está a ação do
descartar.
E
de novo perguntamos: o que é a beleza? Geralmente a beleza está associada com o
objeto, o objeto criado pelo pensamento, pelo sentir, o pensar; e descartamos
isso. Então, pergunto-me qual é a condição da mente que o tenha descartado. Ela
é realmente livre. A liberdade implica uma mente sensível em alto grau. Na ação
de descartar, a mente produziu sua própria sensibilidade, e isso significa que
nessa atividade não existe um centro. Portanto, é uma sensibilidade sem tempo,
sem um centro como observador; isto implica um estado em que a mente é intensamente
apaixonada.
R: Quando desaparece o objeto e o conhecimento
do objeto, não existe um foco.
KRISHNAMURTI:
Não use a palavra “foco”. A mente, ao descartar o que “não é”, é uma mente
livre. O ato de perceber o que “não é” liberou a mente, que agora é livre. Não
livre de, não está livre do objeto, senão que ela é livre.
A: O ato de perceber esse conhecimento e o ato
de descartá-lo, são instantâneos e simultâneos.
KRISHNAMURTI:
Isso é liberdade. O ato de perceber tem produzido liberdade, não
liberdade de algo. Quando a
mente é sensível não há um centro, nela não há um “eu”; o que há é o total
abandono de si mesmo como observador. Então a mente está cheia de energia
porque já não está presa na divisão da dor e o prazer, origem do sofrimento. É
intensamente apaixonada, e é uma mente assim que pode ver o belo.
Eu
vejo algo: vejo que o sofrimento é uma atividade parcial da energia. Vejo que é
uma energia fragmentária. A energia é prazer, a energia é dor; ir ao
escritório, aprender, implica energia. Os seres humanos têm dividido esta
energia em fragmentos. Para eles, tudo é uma parte, um fragmento dos vários outros
fragmentos da energia. Quando não há atividade do fragmento, existe uma concentração
completa de toda a energia.
Odeio
a alguém e amo a alguém. Ambas as coisas são energia, energia fragmentaria atirando
em direções opostas, o qual engendra conflito. O sofrimento é uma forma de energia,
um fragmento ao qual damos esse nome. É assim que todos nossos modos de viver estão
fragmentados. Cada um está em guerra com o outro. Se existe um todo harmônico, essa
energia é a paixão. A mente que é livre, sensível, a mente na qual o “eu” como passado,
dissolveu-se completamente, é uma mente cheia de energia e paixão. Portanto, isso
é beleza.
Mádras, 11 de janeiro de 1971
Tradição e Revolução
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