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quarta-feira, 21 de março de 2018

Sobrevivência biológica e inteligência


SOBREVIVÊNCIA BIOLÓGICA E INTELIGÊNCIA

Pupul Jayakar (PJ): Houve algo que Krishnamurti disse em sua conversa de ontem; não sei se serve para uma discussão. A pergunta que ele levantou foi se as células cerebrais podem despojar-se a si mesmas de tudo, exceto do movimento de sobrevivência ou, para expressá-lo em outras palavras, da pura necessidade biológica que só contribui para que o organismo exista. Foi uma pergunta muito surpreendente. Krishnaji pareceu sugerir que, antes de que qualquer movimento pudesse ter lugar na nova dimensão, era essencial este despojamento total, este desnudar-se até a base de si mesma. Em certo sentido, retrocedeu a uma posição totalmente materialista.

P.Y. Deshpande (PYD): Se você toma a sobrevivência como a dimensão do existir, então não há outra dimensão. Isto permite uma investigação? Um despojamento semelhante de todo elemento da consciência, tal como a temos entendido, é possível? Sempre temos proclamado que o ser humano é mais que o instinto de sobrevivência.

Maurice Friedman (MF): As células cerebrais, não são o depósito da cultura?

PJ: Se você despoja ao homem de todos os elementos psicológicos exceto o instinto de sobrevivência física, no que ele se diferencia do animal?

Jiddu Krishnamurti (K): Nós conhecemos tanto a sobrevivência biológica como a psicológica. Mas os fatores psicológicos como o nacionalismo, tornam quase impossível a sobrevivência biológica. A fragmentação psicológica está destruindo a beleza da sobrevivência. Pode-se despojar ao homem, dos fatores psicológicos?

PJ: Separado do biológico e do psicológico, há alguma outra coisa? Você falou de despojar-se a si mesmo de todos os fatores. Eu lhe pergunto se há algum outro elemento separado do biológico e do psicológico.

K: Até onde sabemos, estes são os únicos dois fatores que operam no homem.

MF: Não há uma coisa como a sobrevivência psicológica, separada do fator fisiológico?

K: O qual implica a sobrevivência da psique. A psique é o resultado do meio ambiente e da herança. Ontem a noite, quando usamos a palavra “consciência”, dissemos que toda a consciência é seu conteúdo. O conteúdo da consciência é conflito, dor; a totalidade disso é a consciência.

PYD: Você disse também que a inteligência é mais que a consciência.

K: Espere. Dissemos que compreender o fato da consciência e ir mais além, é inteligência. Você não pode chegar a essa inteligência se esta consciência se acha em conflito. Tudo o que agora conhecemos é a sobrevivência biológica e a sobrevivência da consciência psicológica. Qual é a pergunta seguinte?

PJ: Você deu a entender ontem que era necessário despojar à consciência de tudo, salvo os fatores que asseguram a sobrevivência biológica.

K: Você pode despojar-se de todo esse conteúdo psicológico da consciência? Neste ato de despojar-se, opera a inteligência. Então, fica só a inteligência e os fatores que asseguram a sobrevivência biológica; não há outra coisa.

PJ: Ontem você faliu da inteligência. Disse: Quando despojamos totalmente à consciência e nada fica, essa operação é o movimento biológico de sobrevivência; é o movimento o que percebe. Há um ver semelhante?

K: Então, a mente não é tão só o elemento de sobrevivência, senão que há outra qualidade nela, e é esta a que percebe.

PJ: Qual é essa qualidade?

K: O que disse K ontem?

PJ: Disse que há um despojar-se da consciência, e que só existe, então, o movimento de sobrevivência no silêncio. E que esse silêncio vê.

K: Perfeitamente certo. Bem, agora, o que é o silêncio? Qual é a natureza do silêncio?

PJ: Não, senhor, ontem se disse algo e, portanto, não podemos evitar a pergunta: Se o homem é despojado de tudo quanto consideramos o componente que o faz humano...

K: E que é conflito, dor...

PJ: Não só isso, senão compaixão...

S. Balasundaram (SB): Nós consideramos que o homem, como oposto do animal, é humano. Quais são as coisas que diferem o homem, dos animais? A iteligência, a capacidade de analisar, de falar.

PYD: O homem é um animal que utiliza a linguagem. E este é o sinal que o distingue do resto do mundo animal. A linguagem capacita ao homem para dizer: “Eu sou isto”. E tão logo vai mais além disso, especula, projeta, diz: “Eu sou eu”, e nesse “eu” pode caber a totalidade do cosmos.

SB: Uma coisa mais. Por causa da linguagem, o homem tem sido capaz de desenvolver a cultura, e não pode retroceder à etapa biológica.

PYD: Em vinte e cinco mil anos de evolução, de pensar, de falar, etc., houve mudanças muito pequenas no homem; o meio tem mudado, mas o homem, fundamentalmente, tem mudado muito pouco.

K: Sim.

PJ: Eu aceito o que dizem Balasundaram ou Deshpande, mas sigo consciente de que “eu sou”. Essa afirmação está onde está.

K: Balasundaram disse muito simplesmente: Despojemos ao homem de todos os fatores psicológicos e então, qual é a diferença entre o animal e o homem? Oh! Há uma diferença imensa!

PJ: No momento em que se postula uma diferença, está investigando alguma outra coisa.

SB: O homem é consciente de si mesmo e o animal não o é; essa é a única diferença.

K: Voltemos atrás. Nós queremos sobreviver psicologicamente e também biologicamente.

PYD: Eu digo que há algo mais.

K: Teremos que descobri-lo. Limitar-se a postular que há algo mais, não tem sentido.

PYD: Mas você disse que todos os outros aspectos do ser humano terminaram.

K: Quando o conflito, a infelicidade e a dor chegam a seu fim...

PJ: Como também a fantasia, a maravilha, a imaginação, tudo isso que permitiram ao homem estender-se para o externo e penetrar no interno.

K: K disse tanto o externo como o interno.

PJ: Sim, é o mesmo movimento. Quando você disse que devemos despojar=nos de tudo isto, o que é que ocorre? É legitima essa pergunta? Ao discuti-lo, ao examiná-lo cuidadosamente, poderemos alcançar a sentir esse desnudar-se interno, esse ver?

K: Temos dito que a inteligência está mais além da consciência, e que quando a mente se despoja dos elementos psicológicos, no ato mesmo de despojar-se deles se revela a inteligência; ou seja, que a inteligência nasce no momento mesmo em que nos despojamos de tais elementos. Há sobrevivência biológica e há inteligência. Isso é tudo.

A inteligência não se herda; a consciência se herda. Dentro do campo da consciência, estamos presos no vir a ser, tratando de ser isto ou aquilo. Despojem-se, esvaziem-se de tudo isso. Deixem que a própria mente se esvazie de tudo isso. No ato mesmo de esvaziar-se, advém a inteligência. Portanto, ficam apenas duas coisas: a mais elevada forma de inteligência e a sobrevivência, o qual é muito diferente do viver dos animais. O homem não é tão só o animal, é capaz de pensar, de projetar, construir.

PJ: Você quer dizer que há uma inteligência que se manifesta na ação de desnudar a consciência?

K: Escute cuidadosamente. Minha consciência está a todo tempo tratando de vir a ser, de mudar, de modificar-se, de lutar, etc. Isso e a sobrevivência biológica é tudo o quanto conheço. O mundo opera dentro destes dois campos. E, em meio desta luta, projetamos algo mais além da consciência; mas, devido ao que o projetamos, isso segue estando dentro do campo da consciência.

A mente que de verdade quer libertar-se da constante batalha, do tagarelar de fundo, pergunta: Pode a mente despojar-se de seu próprio conteúdo? Isso é tudo. (Pausa). E nesse perguntar advém a inteligência.

PJ: Esse esvaziar da consciência, é um processo que jamais termina?

K: Não é assim. Porque se fosse um processo interminável, estaríamos presos sempre no mesmo fenômeno.

PJ: Detenhamo-nos aqui. Não é um processo interminável?

K: Não, não o é.

PJ: Você quer dizer que, uma vez feito, está feito?

K: Vejamos devagar. Primeiro deve compreender isto verbalmente. Minha consciência está composta de tudo isso de que temos falado.

PJ: O esvaziar da consciência, leva tempo ou está livre do tempo? Tem lugar em fragmentos? Ou é um esvaziar da totalidade?

K: Essa é a pergunta? Se o esvaziar é em fragmentos ou se é total?

SB: O esvaziar tem que ser um processo conjunto que inclua a parte e o todo.

K: Discutamos isso.

PJ: O que é o que se esvazia? O que é o que se percebe? Ou há uma dissolução daquilo que emerge, ou seja, do pensamento?

PYD: Se tudo isto desaparece, o que resta?  

PJ: Quando você diz que tudo desaparece, o que quer dizer?

SB: Resta tão só o estado de percepção alerta. A percepção completa, é a totalidade?

PJ: Sim.

K: Ela disse que sim, mas, qual é a pergunta?

PJ: A percepção de um ponto da consciência, de uma coisa como o ciúme, é a percepção da totalidade da consciência?

K: Quando você usa a palavra “percepção”, a que se refere? Se entende por ela perceber todas as implicações — um estado em que não há opção, nem vontade, nem compulsão, nem resistência —, é assim, obviamente.

PJ: Então, isto é possível em qualquer ponto.

K: É claro.

PJ: Sim, porque essa é a porta, a porta da dissolução.

K: Não. Detenha-se um momento.

PJ: Usei a palavra “porta” deliberadamente.

K: Espere! Comecemos devagar, porque quero avançar passo a passo. Minha consciência está composta de tudo isto. Minha consciência faz parte da totalidade, tanto em nível superficial como no profundo. Você pergunta: Existe alguma percepção tão penetrante que nessa mesma percepção, esteja presente a totalidade? Ou esta totalidade se apresenta pouco a pouco? Há um buscar, um examinar, um analisar?

PYD: Segundo a posição do ioga, a natureza é um rio que flui. Nesse fluir, surge à vida o organismo humano. Tão logo aparece, também possui a capacidade de escolher. No momento em que escolhe, se separa da corrente, do rio. Este é um processo de separação com relação a essa corrente, e o único que dá origem a isto é a escolha. Portanto — dizem eles —, o dissolver-se da escolha pode levá-lo ao vazio total, e nesse vazio se vê.

K: Correto, senhor, esse é um ponto. A pergunta de Pupul era: Esta percepção é um processo gradual, um despojar-se que ocorre pouco a pouco? Esta percepção na qual não há opção alguma, esvazia a totalidade da consciência? Vai mais além da consciência?

MF: Supondo que deixe de escolher, isso é despojar-se?

PJ: Há um findar para o despojar-se?

K: Ou é um processo constante?

PJ: E a segunda pergunta era: Onde há inteligência, há um despojar-se?

K: Comecemos com a primeira pergunta, é suficiente. O que você diz?

PJ: É uma dessas perguntas extraordinárias para as quais não se pode dizer nem sim nem não.

PYD: Está ligada ou não ao tempo. Se ela é convidada, é tempo.

PJ: Se você diz que não é uma questão de tempo, então, não é um processo. Cinco minutos depois emergirá novamente. Assim, pois, esta pergunta não pode ser contestada.

K: Não estou seguro. Comecemos novamente. Minha consciência está composta de tudo isto; minha consciência está habituada ao processo de tempo; minha consciência pensa a partir do ponto de vista do gradual; minha consciência é praticar e, mediante a prática, realizar coisas, o qual é tempo; minha consciência é um processo de tempo.

Agora pergunto a essa consciência se pode ir mais além disto. Podemos nós, presos no movimento do tempo, ir mais além do tempo? A consciência não pode responder a essa pergunta. A consciência não sabe o que significa ir mais além do tempo, porque pensa tão só em termos de tempo. Portanto, quando lhe é perguntado se o processo pode chegar a seu fim e conduzir a um estado sem tempo, ela não pode responder, não é verdade?

Bem, agora, visto que a consciência não pode responder à pergunta, dissemos: Vejamos o que é a percepção alerta e investiguemos se essa percepção pode dar origem a um estado atemporal. Mas isso introduz novos elementos. O que é a percepção alerta? Está dentro do campo do tempo, ou está fora do campo do tempo? Na percepção alerta, há escolha, explicação, justificação ou alguma condenação? Existe nela um observador, aquele que escolhe? E se existe um observador, isso é percepção alerta? Há, pois, uma percepção na qual o observador está completamente ausente? Obviamente, sim. Percebo essa lâmpada; não tenho que escolher quando a percebo. Esse estado não é um estado contínuo de percepção no qual está ausente o observador, o qual seria outra vez um pensamento errôneo.

Achyut Patwrdhan (AP): O termo para isto é svarûpa s’ûnyata: o observador se esvazia; está despojado de tudo.

K: Bem, agora, pode cultivar-se essa percepção alerta? O cultivo implica tempo. Como advém esta percepção alerta na qual não existe o observador? Se pode ser cultivada, é o resultado do tempo, e também faz parte dessa consciência na qual existe a escolha.

E você disse que a percepção alerta não é escolha; disse que é observação na qual não há um observador. Surge a partir da consciência, floresce dela? Ou está livre da consciência?

PYD: Está livre da consciência.

PJ: Tem lugar quando faço a pergunta a respeito de quem sou eu?

K: Todos os tradicionalistas tem se feito essa pergunta.

PJ: Mas é uma pergunta essencial. A percepção ocorre, quando trato de investigar a origem do ego? Ou tem que lugar quando se trata de descobrir o observador?

K: Não. Tão logo “trata” está no tempo.

PJ: É uma questão de semântica. Você pode desnudar a consciência em qualquer ponto; onde está o observador? Damos por fato que o observador existe.

K: Comecemos devagar. Vê-se o que é a consciência. Qualquer movimento dentro desse campo segue sendo um processo de tempo; pode tratar de ser ou de não ser; pode tratar de ir mais além, pode tratar de inventar algo mais além da consciência, mas isso segue fazendo parte do tempo. Portanto, estou preso.

PJ: Eu quero usar palavras que não sejam as suas. De modo que tenho descartado todas as suas palavras. Tenho que usar meus próprios instrumentos. Qual é o elemento que em mim parece ser mais potente e poderoso? É o sentimento de “eu”?

K: Que é o passado?

PJ: Não usarei sua linguagem. É muito interessante não usar sua linguagem. Eu digo que a coisa mais potente é o sentimento de “eu”. Bem, agora, pode haver percepção do “eu”?

MF: Essa é uma pergunta equivocada. Lhe direi por que. Você pergunta: Posso perceber o “eu”? O “eu” não é senão uma fome insaciável de experiência.

K: Pupul começou perguntando: Quem sou eu? É o “eu” um ato da consciência?

PJ: Examinemos isso, investiguemos.

K: Quando me pergunto quem sou eu, é o “eu” um fator central na consciência?

PJ: Assim parece. E então digo: Quero ver esse “eu”, descobri-lo, percebê-lo, estar em contato com ele.

K: Você está perguntando, então: Este fator central é perceptível aos sentidos? É palpável? Pode sentir-se, provar-se? Ou esse fator central, o “eu”, é algo que os sentidos inventaram?

PJ: Isso vem depois. Em primeiro lugar, vejo se isso é palpável.

K: Quando faço a pergunta: Quem sou eu?, também devo perguntar-me quem é o que investiga, quem faz a pergunta.

PJ: Agora não faço essa pergunta. Já a fiz uma e outra vez; a tenho discutido interminavelmente. A descarto porque você tem dito: Não aceitem nenhuma palavra que não seja própria de você. Começo por observar. Este “eu” que constitui o núcleo central de mim mesmo, é palpável? O observo nas capas superficiais, nas capas mais profundas de minha consciência, na recôndita escuridão e, à medida que o exponho, se produz dentro de mim uma luz, uma explosão, uma expansão. 

Outro fator que opera é que, aquilo que era exclusivo se torna inclusivo. Até agora tem sido exclusivo; agora o mundo flui para o interior.

K: Vejo isso.

PJ: E descubro que isto não é algo que possa tocar-se ou perceber-se. O que pode perceber-se é aquilo é aquilo que tem sido; é uma manifestação deste “eu”. Vejo que tinha um pensamento a respeito deste “eu” em ação, mas já passou. Então exploro: A partir de onde emerge o pensamento? Posso perseguir um pensamento? Até onde posso chegar com um pensamento? Até onde posso manter um pensamento? Pode o pensamento conservar-se na consciência? Essas são coisas palpáveis que o indivíduo deve sentir completamente por si mesmo.

K: Sejamos simples. Quando pergunto quem sou eu, quem faz a pergunta? Descobre-se, na investigação, que o “eu” não é observável. Está, pois, o “eu” dentro do campo dos sentidos? Ou são os sentidos os que têm criado o “eu”?

PJ: O fato mesmo de que não está dentro do campo dos sentidos...

K: Não se afaste daí. Não está o “eu” também dentro do campo dos sentidos? Saltamos demasiado rapidamente para conclusões.

PJ: Eu quero deixar de lado tudo quanto Krishnamurti tem dito, e encontro que o indagar mesmo, a investigação mesma na natureza do “eu” gera luz, inteligência.

K: Você disse que a investigação mesma dá origem à percepção alerta. É óbvio, não disse que não o fizesse.

PJ: E na investigação pode-se usar somente certos instrumentos, que são os sentidos. Seja esta externa ou interna, os únicos instrumentos que podemos usar são os sentidos, porque é tudo quanto conhecemos: o ver, o escutar, o sentir... e o campo se ilumina. Se ilumina tanto o campo do externo como o campo do interno. Bem, agora, neste estado de iluminação descobre-se subitamente que tem havido um pensamento, mas que já é passado. Se agora perguntassem a você: O despojar-se da consciência, é parcial ou total?, a pergunta é irrelevante, não tem sentido.

K: Espere um momento. Não estou seguro. A percepção é parcial? A tenho investigado por meio dos sentidos — os sentidos que criaram o “eu”, que investigam o “eu”. A atividade gera um grau de iluminação, de clareza. Não clareza completa, senão certa clareza.

PJ: Eu não usaria as palavras “certa clareza”, senão “clareza”.

K: Gera clareza. Nós atenderemos a isso. Pode expandir-se essa clareza?

PJ: A natureza do ver é tal, que eu posso ver aqui e posso ver ali, dependendo isso do poder da vista.

K: Dissemos que a percepção é não só visual senão também não visual. Dissemos que é a percepção o que ilumina.

PJ: Gostaria de lhe perguntar algo. Você tem dito que o ver é não só visual senão também não visual. Qual é a natureza deste ver não visual?

K: O não visual é o não pensável. O não visual não pertence a palavra, não pertence ao pensamento. Isso é tudo. É percepção sem o significado, sem a expressão, sem o pensamento. Há uma percepção sem o pensamento? Agora, prossiga.

PJ: Há uma percepção que pode ver próximo, que pode ver longe.

K: Espere. Estamos falando somente de percepção; não da duração, longitude, tamanho ou largura da percepção, senão da percepção não visual, que não é nem superficial nem profunda. A percepção superficial ou a percepção profunda surge só quando o pensamento interfere.

PJ: Então, nessa percepção, há um despojar-se parcial ou total? Começamos com essa pergunta.

MF: Ela pergunta o seguinte: Em toda percepção existe o elemento não verbal da mera sensação; depois, está a superposição psicológica. Há um estado da mente no qual não ocorra a superposição e não haja um despojar-se?

PJ: Isso é certo. A percepção é percepção. O que perguntamos é: Existe uma percepção na qual o despojar-se não seja necessário?

K: Não há tal coisa como uma percepção externa.

PJ: Ela é idêntica ao que você chama de inteligência?

K: Não o sei. Por que pergunta isso?

PJ: Porque a percepção é atemporal.

K: Atemporal significa isso: atemporal. Por que faz está pergunta? A percepção, sendo não verbal, não é também não pensamento, não tempo? Se você tem contestado esta pergunta, também tem contestado aquela. Uma mente que está percebendo não faz a pergunta; está percebendo. E cada percepção é uma percepção; não consiste em ir carregando com a percepção. De onde surge a pergunta a respeito do despojar-se ou não despojar-se?

PJ: A percepção não é transferida jamais a outro pensamento. Vejo essa lâmpada. O ver não tem sido transferido. Só o pensamento se transfere.

K: Isso é óbvio. Minha consciência é minha mente, é o resultado da percepção sensorial. Também é o resultado da evolução e o tempo. Se expande e se contrai. E o pensamento forma parte da consciência. Então vem alguém e pergunta: “Quem observa o eu?” É o “eu” uma entidade permanente nesta consciência?

PYD: Não é permanente.

K: Este “eu”, é a consciência?

PYD: Não pode sê-lo.

K: A consciência se herda. É claro que o é.

MF: Estamos mesclando o conceito de consciência, com a experiência consciente.

K: Isto é muito claro: o “eu” é essa consciência.

PJ: O “eu” não tem uma grande realidade para mim até que começo a investigá-lo.

K: É claro. O fato é que depois de observar, depois de olhar, vejo que sou a totalidade desta consciência. Não se trata de uma afirmação verbal. Sou a herança, sou tudo isso. Este “eu” é observável? Pode ser tocado, deformado? É o resultado da percepção e da herança?

MF: Não é o resultado da herança. É o herdado.

K: E então Pupul pergunta: “Quem é esse ‘eu’? Faz parte da consciência, do pensamento?” Digo que sim. O pensamento faz parte do “eu”, exceto onde o pensamento funciona tecnologicamente, onde não há “eu”.  Tão logo você se afasta do campo científico, chega o “eu”, que faz parte da herança biológica.

MF: O “eu” é o centro da percepção; é um centro operativo de percepção, um centro ad hoc, e o “outro” é um centro efetivo.

K: Seja simples. Vemos que a consciência é o “eu”; a totalidade desse campo é o “eu”. E o “eu” é o centro do campo.

PJ: Eu quero descartar tudo isto e abordar o problema de um novo modo. Vejo que o elemento mais importante em mim é o “eu”. Bem, agora, que é o “eu”? Qual é sua natureza? Investiga-se isso, e no processo mesmo da observação há clareza.

K: Ponto final.

PJ: A clareza, ao não ser eterna...

K: Mas pode realizar-se novamente.

PJ: Eu digo que talvez.

K: Porque temos uma ideia de que a percepção é total.

PJ: Neste estado, pode surgir legitimamente a pergunta a respeito de se a clareza é eterna?

K: Não surge no estado de percepção. Surge ou existe unicamente quando pergunto: É eterno este processo?

PJ: O que você diria?

K: Pergunta-se a você. Conteste. Tem que responder a esta pergunta. No instante de percepção, a pergunta não surge. No instante seguinte, não percebo com tanta clareza.

PJ: Se estou alerta como para ver que não percebo com tanta clareza, investigarei isso.

K: Que faço, pois? Está a percepção. Isso é tudo.

PJ: A chave que abre a porta está nessa pergunta.

K: Sejamos simples com respeito a isto. Há percepção. Nessa percepção não há problema de duração. Só existe a percepção. No momento seguinte não vejo com clareza, não há uma percepção clara, embotou-se. Então investigo a contaminação, e assim há clareza. Embotamento e outra percepção, cobrimento e descobrimento... Isto é o que ocorre. Correto?

MF: É um movimento de tempo?

PJ: Tem lugar algo muito interessante. A natureza mesma desta percepção alerta é operar sobre o outro.

K: O que você entende por “o outro”?

PJ: A desatenção.

K: Espere. Há atenção seguida por desatenção. Então dá-se conta da desatenção, a qual assim se transforma em atenção. Este balanço continua todo o tempo.

PJ: Se eu afirmo que a percepção diminui a desatenção, essa seria para mim uma afirmação incorreta. O único que posso observar é que  atenção atua sobre a desatenção.

K: Essa ação sobre a desatenção, elimina a desatenção de modo tal que esta não surge outra vez?

PYD: Ela está atenta ao desatento.

PJ: Eu vou mais longe que estar atenta ao desatento. Digo que a natureza desta atenção é tal, que opera sobre as células cerebrais. Vacilo muito ao dizer isto. Está na natureza da atenção operar sobre as células cerebrais. O que se acha inativo nestas, resurge quando é exposto à atenção, e a natureza mesma da inatividade experimenta uma mudança. Gostaria que investigássemos esta área.

K: Comecemos de novo. Se há escolhas nessa percepção, estamos de volta na consciência. A percepção alerta é não verbal; não se relaciona com o pensamento. A essa percepção alerta chamamos de atenção. Quando há desatenção, isso é o que há: desatenção. Por que você mistura ambas as coisas? Estou desatento; não há atenção. Isso é tudo.

Nessa desatenção se desenvolvem certas atividades. E essas atividades geram mais infelicidade, confusão e infortúnio. Digo-me, pois: Devo estar atento todo o tempo a fim de impedir que tenha lugar esta perturbação. E acrescento: Tenho que cultivar a atenção. Esse mesmo cultivar se converte em desatenção. O ato de ver a desatenção, gera atenção.

A atenção afeta as células cerebrais. Considere o que tem ocorrido. Há atenção, e depois desatenção. Na desatenção há confusão, infelicidade e demais. O que ocorre, então?

PYD: O ato de dissipar a desatenção tem descido penetrando no inconsciente.

PJ: Não é, na realidade, que nada se pode fazer a respeito?

K: Estou de acordo, Pupul, mas aguarde um instante. Não diga que não há nada que fazer. O descobriremos. Estamos investigando. Há atenção e há desatenção. Nesta última, tudo é confusão. Por que queremos reunir ambas? Quando existe o impulso de reuni-las, há uma ação da vontade da qual é escolha: prefere-se a atenção à desatenção. E assim está outra vez de volta no campo da consciência. Qual é, então, a ação de onde ambas, a atenção e a desatenção, não se juntam mais? Quero explorar um pouco isto.

Onde há atenção, o pensamento não opera como memória; no processo de atenção não há pensar, só há atenção. Eu dou-me conta de que tenho estado desatento, só quando a ação produz incomodo, infelicidade ou perigo. Então digo-me: tenho estado desatento. E, como a desatenção tem deixado uma pegada no cérebro, interesso-me na infelicidade que a desatenção tem gerado. Então, ao investigar essa infelicidade, a atenção volta sem deixar nenhuma pegada. O que ocorre, então? Cada vez que há desatenção, esta é percebida rápida e instantaneamente. A percepção é imediata; não pertence à duração, ao tempo. A percepção e a atenção não deixam pegada alguma. O que sempre existe é a instantaneidade da percepção.

Bombay
18 de fevereiro de 1971
Fogo na mente
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill