SOBREVIVÊNCIA BIOLÓGICA E INTELIGÊNCIA
Pupul Jayakar (PJ): Houve algo que Krishnamurti disse em sua conversa de
ontem; não sei se serve para uma discussão. A pergunta que ele levantou foi se
as células cerebrais podem despojar-se a si mesmas de tudo, exceto do movimento
de sobrevivência ou, para expressá-lo em outras palavras, da pura necessidade
biológica que só contribui para que o organismo exista. Foi uma pergunta muito
surpreendente. Krishnaji pareceu sugerir que, antes de que qualquer movimento
pudesse ter lugar na nova dimensão, era essencial este despojamento total, este
desnudar-se até a base de si mesma. Em certo sentido, retrocedeu a uma posição
totalmente materialista.
P.Y. Deshpande (PYD): Se você toma a sobrevivência como a dimensão do
existir, então não há outra dimensão. Isto permite uma investigação? Um
despojamento semelhante de todo elemento da consciência, tal como a temos
entendido, é possível? Sempre temos proclamado que o ser humano é mais que o
instinto de sobrevivência.
Maurice Friedman (MF): As células cerebrais, não são o depósito da cultura?
PJ: Se você despoja ao homem de todos os elementos psicológicos exceto o
instinto de sobrevivência física, no que ele se diferencia do animal?
Jiddu Krishnamurti (K): Nós conhecemos tanto a sobrevivência biológica como a
psicológica. Mas os fatores psicológicos como o nacionalismo, tornam quase
impossível a sobrevivência biológica. A fragmentação psicológica está
destruindo a beleza da sobrevivência. Pode-se despojar ao homem, dos fatores
psicológicos?
PJ: Separado do biológico e do psicológico, há alguma outra coisa? Você
falou de despojar-se a si mesmo de todos os fatores. Eu lhe pergunto se há
algum outro elemento separado do biológico e do psicológico.
K: Até onde sabemos, estes são os únicos dois fatores que operam no
homem.
MF: Não há uma coisa como a sobrevivência psicológica, separada do fator
fisiológico?
K: O qual implica a sobrevivência da psique. A psique é o resultado do
meio ambiente e da herança. Ontem a noite, quando usamos a palavra
“consciência”, dissemos que toda a consciência é seu conteúdo. O conteúdo da
consciência é conflito, dor; a totalidade disso é a consciência.
PYD: Você disse também que a inteligência é mais que a consciência.
K: Espere. Dissemos que compreender o fato da consciência e ir mais além,
é inteligência. Você não pode chegar a essa inteligência se esta consciência se
acha em conflito. Tudo o que agora conhecemos é a sobrevivência biológica e a
sobrevivência da consciência psicológica. Qual é a pergunta seguinte?
PJ: Você deu a entender ontem que era necessário despojar à consciência de
tudo, salvo os fatores que asseguram a sobrevivência biológica.
K: Você pode despojar-se de todo esse conteúdo psicológico da
consciência? Neste ato de despojar-se, opera a inteligência. Então, fica só a
inteligência e os fatores que asseguram a sobrevivência biológica; não há outra
coisa.
PJ: Ontem você faliu da inteligência. Disse: Quando despojamos totalmente
à consciência e nada fica, essa operação é o movimento biológico de
sobrevivência; é o movimento o que percebe. Há um ver semelhante?
K: Então, a mente não é tão só o elemento de sobrevivência, senão que há
outra qualidade nela, e é esta a que percebe.
PJ: Qual é essa qualidade?
K: O que disse K ontem?
PJ: Disse que há um despojar-se da consciência, e que só existe, então, o
movimento de sobrevivência no silêncio. E que esse silêncio vê.
K: Perfeitamente certo. Bem, agora, o que é o silêncio? Qual é a natureza
do silêncio?
PJ: Não, senhor, ontem se disse algo e, portanto, não podemos evitar a
pergunta: Se o homem é despojado de tudo quanto consideramos o componente que o
faz humano...
K: E que é conflito, dor...
PJ: Não só isso, senão compaixão...
S. Balasundaram (SB): Nós consideramos que o homem, como oposto do animal, é
humano. Quais são as coisas que diferem o homem, dos animais? A iteligência, a
capacidade de analisar, de falar.
PYD: O homem é um animal que utiliza a linguagem. E este é o sinal que o
distingue do resto do mundo animal. A linguagem capacita ao homem para dizer:
“Eu sou isto”. E tão logo vai mais além disso, especula, projeta, diz: “Eu sou
eu”, e nesse “eu” pode caber a totalidade do cosmos.
SB: Uma coisa mais. Por causa da linguagem, o homem tem sido capaz de
desenvolver a cultura, e não pode retroceder à etapa biológica.
PYD: Em vinte e cinco mil anos de evolução, de pensar, de falar, etc., houve
mudanças muito pequenas no homem; o meio tem mudado, mas o homem,
fundamentalmente, tem mudado muito pouco.
K: Sim.
PJ: Eu aceito o que dizem Balasundaram ou Deshpande, mas sigo consciente
de que “eu sou”. Essa afirmação está onde está.
K: Balasundaram disse muito simplesmente: Despojemos ao homem de todos os
fatores psicológicos e então, qual é a diferença entre o animal e o homem? Oh!
Há uma diferença imensa!
PJ: No momento em que se postula uma diferença, está investigando alguma
outra coisa.
SB: O homem é consciente de si mesmo e o animal não o é; essa é a única
diferença.
K: Voltemos atrás. Nós queremos sobreviver psicologicamente e também
biologicamente.
PYD: Eu digo que há algo mais.
K: Teremos que descobri-lo. Limitar-se a postular que há algo mais, não
tem sentido.
PYD: Mas você disse que todos os outros aspectos do ser humano terminaram.
K: Quando o conflito, a infelicidade e a dor chegam a seu fim...
PJ: Como também a fantasia, a maravilha, a imaginação, tudo isso que
permitiram ao homem estender-se para o externo e penetrar no interno.
K: K disse tanto o externo como o interno.
PJ: Sim, é o mesmo movimento. Quando você disse que devemos despojar=nos
de tudo isto, o que é que ocorre? É legitima essa pergunta? Ao discuti-lo, ao
examiná-lo cuidadosamente, poderemos alcançar a sentir esse desnudar-se
interno, esse ver?
K: Temos dito que a inteligência está mais além da consciência, e que
quando a mente se despoja dos elementos psicológicos, no ato mesmo de
despojar-se deles se revela a inteligência; ou seja, que a inteligência nasce
no momento mesmo em que nos despojamos de tais elementos. Há sobrevivência
biológica e há inteligência. Isso é tudo.
A inteligência não se herda; a
consciência se herda. Dentro do campo
da consciência, estamos presos no vir a ser, tratando de ser isto ou aquilo.
Despojem-se, esvaziem-se de tudo isso. Deixem que a própria mente se esvazie de
tudo isso. No ato mesmo de esvaziar-se, advém a inteligência. Portanto, ficam
apenas duas coisas: a mais elevada forma de inteligência e a sobrevivência, o
qual é muito diferente do viver dos animais. O homem não é tão só o animal, é
capaz de pensar, de projetar, construir.
PJ: Você quer dizer que há uma inteligência que se manifesta na ação de
desnudar a consciência?
K: Escute cuidadosamente. Minha consciência está a todo tempo tratando de
vir a ser, de mudar, de modificar-se, de lutar, etc. Isso e a sobrevivência
biológica é tudo o quanto conheço. O mundo opera dentro destes dois campos. E,
em meio desta luta, projetamos algo mais além da consciência; mas, devido ao
que o projetamos, isso segue estando dentro do campo da consciência.
A
mente que de verdade quer libertar-se da constante batalha, do tagarelar de
fundo, pergunta: Pode a mente despojar-se de seu próprio conteúdo? Isso é tudo.
(Pausa). E nesse perguntar advém a
inteligência.
PJ: Esse esvaziar da consciência, é um processo que jamais termina?
K: Não é assim. Porque se fosse um processo interminável, estaríamos
presos sempre no mesmo fenômeno.
PJ: Detenhamo-nos aqui. Não é um processo interminável?
K: Não, não o é.
PJ: Você quer dizer que, uma vez feito, está feito?
K: Vejamos devagar. Primeiro deve compreender isto verbalmente. Minha
consciência está composta de tudo isso de que temos falado.
PJ: O esvaziar da consciência, leva tempo ou está livre do tempo? Tem
lugar em fragmentos? Ou é um esvaziar da totalidade?
K: Essa é a pergunta? Se o esvaziar é em fragmentos ou se é total?
SB: O esvaziar tem que ser um processo conjunto que inclua a parte e o
todo.
K: Discutamos isso.
PJ: O que é o que se esvazia? O que é o que se percebe? Ou há uma
dissolução daquilo que emerge, ou seja, do pensamento?
PYD: Se tudo isto desaparece, o que resta?
PJ: Quando você diz que tudo desaparece, o que quer dizer?
SB: Resta tão só o estado de percepção
alerta. A percepção completa, é a
totalidade?
PJ: Sim.
K: Ela disse que sim, mas, qual é a pergunta?
PJ: A percepção de um ponto da consciência, de uma coisa como o ciúme, é a
percepção da totalidade da consciência?
K: Quando você usa a palavra “percepção”, a que se refere? Se entende por
ela perceber todas as implicações — um estado em que não há opção, nem vontade,
nem compulsão, nem resistência —, é assim, obviamente.
PJ: Então, isto é possível em qualquer ponto.
K: É claro.
PJ: Sim, porque essa é a porta, a porta da dissolução.
K: Não. Detenha-se um momento.
PJ: Usei a palavra “porta” deliberadamente.
K: Espere! Comecemos devagar, porque quero avançar passo a passo. Minha
consciência está composta de tudo isto. Minha consciência faz parte da
totalidade, tanto em nível superficial como no profundo. Você pergunta: Existe
alguma percepção tão penetrante que nessa mesma percepção, esteja presente a
totalidade? Ou esta totalidade se apresenta pouco a pouco? Há um buscar, um
examinar, um analisar?
PYD: Segundo a posição do ioga, a natureza é um rio que flui. Nesse fluir,
surge à vida o organismo humano. Tão logo aparece, também possui a capacidade
de escolher. No momento em que escolhe, se separa da corrente, do rio. Este é
um processo de separação com relação a essa corrente, e o único que dá origem a
isto é a escolha. Portanto — dizem eles —, o dissolver-se da escolha pode
levá-lo ao vazio total, e nesse vazio se vê.
K: Correto, senhor, esse é um ponto. A pergunta de Pupul era: Esta
percepção é um processo gradual, um despojar-se que ocorre pouco a pouco? Esta
percepção na qual não há opção alguma, esvazia a totalidade da consciência? Vai
mais além da consciência?
MF: Supondo que deixe de escolher, isso é despojar-se?
PJ: Há um findar para o despojar-se?
K: Ou é um processo constante?
PJ: E a segunda pergunta era: Onde há inteligência, há um despojar-se?
K: Comecemos com a primeira pergunta, é suficiente. O que você diz?
PJ: É uma dessas perguntas extraordinárias para as quais não se pode dizer
nem sim nem não.
PYD: Está ligada ou não ao tempo. Se ela é convidada, é tempo.
PJ: Se você diz que não é uma questão de tempo, então, não é um processo.
Cinco minutos depois emergirá novamente. Assim, pois, esta pergunta não pode
ser contestada.
K: Não estou seguro. Comecemos novamente. Minha consciência está composta
de tudo isto; minha consciência está habituada ao processo de tempo; minha
consciência pensa a partir do ponto de vista do gradual; minha consciência é
praticar e, mediante a prática, realizar coisas, o qual é tempo; minha
consciência é um processo de tempo.
Agora
pergunto a essa consciência se pode ir mais além disto. Podemos nós, presos no
movimento do tempo, ir mais além do tempo? A consciência não pode responder a
essa pergunta. A consciência não sabe o que significa ir mais além do tempo,
porque pensa tão só em termos de tempo. Portanto, quando lhe é perguntado se o
processo pode chegar a seu fim e conduzir a um estado sem tempo, ela não pode
responder, não é verdade?
Bem,
agora, visto que a consciência não pode responder à pergunta, dissemos: Vejamos
o que é a percepção alerta e investiguemos se essa percepção pode dar origem a
um estado atemporal. Mas isso introduz novos elementos. O que é a percepção alerta? Está dentro do campo do tempo, ou está
fora do campo do tempo? Na percepção alerta, há escolha, explicação,
justificação ou alguma condenação? Existe nela um observador, aquele que
escolhe? E se existe um observador, isso é percepção alerta? Há, pois, uma
percepção na qual o observador está completamente ausente? Obviamente, sim.
Percebo essa lâmpada; não tenho que escolher quando a percebo. Esse estado não
é um estado contínuo de percepção no qual está ausente o observador, o qual
seria outra vez um pensamento errôneo.
Achyut Patwrdhan (AP): O termo para isto é svarûpa s’ûnyata: o observador se esvazia; está despojado de tudo.
K: Bem, agora, pode cultivar-se essa percepção alerta? O cultivo implica
tempo. Como advém esta percepção alerta na qual não existe o observador? Se
pode ser cultivada, é o resultado do tempo, e também faz parte dessa
consciência na qual existe a escolha.
E
você disse que a percepção alerta não é escolha; disse que é observação na qual
não há um observador. Surge a partir da consciência, floresce dela? Ou está
livre da consciência?
PYD: Está livre da consciência.
PJ: Tem lugar quando faço a pergunta a respeito de quem sou eu?
K: Todos os tradicionalistas tem se feito essa pergunta.
PJ: Mas é uma pergunta essencial. A percepção ocorre, quando trato de
investigar a origem do ego? Ou tem que lugar quando se trata de descobrir o
observador?
K: Não. Tão logo “trata” está no tempo.
PJ: É uma questão de semântica. Você pode desnudar a consciência em
qualquer ponto; onde está o observador? Damos por fato que o observador existe.
K: Comecemos devagar. Vê-se o que é a consciência. Qualquer movimento
dentro desse campo segue sendo um processo de tempo; pode tratar de ser ou de
não ser; pode tratar de ir mais além, pode tratar de inventar algo mais além da
consciência, mas isso segue fazendo parte do tempo. Portanto, estou preso.
PJ: Eu quero usar palavras que não sejam as suas. De modo que tenho
descartado todas as suas palavras. Tenho que usar meus próprios instrumentos.
Qual é o elemento que em mim parece ser mais potente e poderoso? É o sentimento
de “eu”?
K: Que é o passado?
PJ: Não usarei sua linguagem. É muito interessante não usar sua linguagem.
Eu digo que a coisa mais potente é o sentimento de “eu”. Bem, agora, pode haver
percepção do “eu”?
MF: Essa é uma pergunta equivocada. Lhe direi por que. Você pergunta:
Posso perceber o “eu”? O “eu” não é senão uma fome insaciável de experiência.
K: Pupul começou perguntando: Quem sou eu? É o “eu” um ato da
consciência?
PJ: Examinemos isso, investiguemos.
K: Quando me pergunto quem sou eu, é o “eu” um fator central na
consciência?
PJ: Assim parece. E então digo: Quero ver esse “eu”, descobri-lo,
percebê-lo, estar em contato com ele.
K: Você está perguntando, então: Este fator central é perceptível aos
sentidos? É palpável? Pode sentir-se, provar-se? Ou esse fator central, o “eu”,
é algo que os sentidos inventaram?
PJ: Isso vem depois. Em primeiro lugar, vejo se isso é palpável.
K: Quando faço a pergunta: Quem sou eu?, também devo perguntar-me quem é o que investiga, quem faz a pergunta.
PJ: Agora não faço essa pergunta. Já a fiz uma e outra vez; a tenho
discutido interminavelmente. A descarto porque você tem dito: Não aceitem
nenhuma palavra que não seja própria de você. Começo por observar. Este “eu”
que constitui o núcleo central de mim mesmo, é palpável? O observo nas capas
superficiais, nas capas mais profundas de minha consciência, na recôndita
escuridão e, à medida que o exponho, se produz dentro de mim uma luz, uma
explosão, uma expansão.
Outro
fator que opera é que, aquilo que era exclusivo se torna inclusivo. Até agora
tem sido exclusivo; agora o mundo flui para o interior.
K: Vejo isso.
PJ: E descubro que isto não é algo que possa tocar-se ou perceber-se. O
que pode perceber-se é aquilo é aquilo que tem sido; é uma manifestação deste
“eu”. Vejo que tinha um pensamento a respeito deste “eu” em ação, mas já
passou. Então exploro: A partir de onde emerge o pensamento? Posso perseguir um
pensamento? Até onde posso chegar com um pensamento? Até onde posso manter um
pensamento? Pode o pensamento conservar-se na consciência? Essas são coisas
palpáveis que o indivíduo deve sentir completamente por si mesmo.
K: Sejamos simples. Quando pergunto quem sou eu, quem faz a pergunta? Descobre-se, na investigação, que o “eu” não é
observável. Está, pois, o “eu” dentro do campo dos sentidos? Ou são os sentidos
os que têm criado o “eu”?
PJ: O fato mesmo de que não está dentro do campo dos sentidos...
K: Não se afaste daí. Não está o “eu” também dentro do campo dos
sentidos? Saltamos demasiado rapidamente para conclusões.
PJ: Eu quero deixar de lado tudo quanto Krishnamurti tem dito, e encontro
que o indagar mesmo, a investigação mesma na natureza do “eu” gera luz,
inteligência.
K: Você disse que a investigação mesma dá origem à percepção alerta. É óbvio, não disse que não o fizesse.
PJ: E na investigação pode-se usar somente certos instrumentos, que são os
sentidos. Seja esta externa ou interna, os únicos instrumentos que podemos usar
são os sentidos, porque é tudo quanto conhecemos: o ver, o escutar, o sentir...
e o campo se ilumina. Se ilumina tanto o campo do externo como o campo do
interno. Bem, agora, neste estado de iluminação descobre-se subitamente que tem
havido um pensamento, mas que já é passado. Se agora perguntassem a você: O
despojar-se da consciência, é parcial ou total?, a pergunta é irrelevante, não
tem sentido.
K: Espere um momento. Não estou seguro. A percepção é parcial? A tenho
investigado por meio dos sentidos — os sentidos que criaram o “eu”, que
investigam o “eu”. A atividade gera um grau de iluminação, de clareza. Não
clareza completa, senão certa clareza.
PJ: Eu não usaria as palavras “certa clareza”, senão “clareza”.
K: Gera clareza. Nós atenderemos a isso. Pode expandir-se essa clareza?
PJ: A natureza do ver é tal, que eu posso ver aqui e posso ver ali,
dependendo isso do poder da vista.
K: Dissemos que a percepção é não só visual senão também não visual.
Dissemos que é a percepção o que ilumina.
PJ: Gostaria de lhe perguntar algo. Você tem dito que o ver é não só
visual senão também não visual. Qual é a natureza deste ver não visual?
K: O não visual é o não pensável. O não visual não pertence a palavra,
não pertence ao pensamento. Isso é tudo. É
percepção sem o significado, sem a expressão, sem o pensamento. Há uma
percepção sem o pensamento? Agora, prossiga.
PJ: Há uma percepção que pode ver próximo, que pode ver longe.
K: Espere. Estamos falando somente de percepção; não da duração,
longitude, tamanho ou largura da percepção, senão da percepção não visual, que
não é nem superficial nem profunda. A percepção superficial ou a percepção
profunda surge só quando o pensamento interfere.
PJ: Então, nessa percepção, há um despojar-se parcial ou total? Começamos
com essa pergunta.
MF: Ela pergunta o seguinte: Em toda percepção existe o elemento não verbal
da mera sensação; depois, está a superposição psicológica. Há um estado da
mente no qual não ocorra a superposição e não haja um despojar-se?
PJ: Isso é certo. A percepção é percepção. O que perguntamos é: Existe uma
percepção na qual o despojar-se não seja necessário?
K: Não há tal coisa como uma percepção externa.
PJ: Ela é idêntica ao que você chama de inteligência?
K: Não o sei. Por que pergunta isso?
PJ: Porque a percepção é atemporal.
K: Atemporal significa isso: atemporal. Por que faz está pergunta? A
percepção, sendo não verbal, não é também não pensamento, não tempo? Se você
tem contestado esta pergunta, também tem contestado aquela. Uma mente que está percebendo
não faz a pergunta; está percebendo. E cada percepção é uma percepção; não
consiste em ir carregando com a percepção. De onde surge a pergunta a respeito
do despojar-se ou não despojar-se?
PJ: A percepção não é transferida jamais a outro pensamento. Vejo essa
lâmpada. O ver não tem sido transferido. Só o pensamento se transfere.
K: Isso é óbvio. Minha consciência é minha mente, é o resultado da
percepção sensorial. Também é o resultado da evolução e o tempo. Se expande e
se contrai. E o pensamento forma parte da consciência. Então vem alguém e
pergunta: “Quem observa o eu?” É o “eu” uma entidade permanente nesta
consciência?
PYD: Não é permanente.
K: Este “eu”, é a consciência?
PYD: Não pode sê-lo.
K: A consciência se herda. É claro que o é.
MF: Estamos mesclando o conceito de consciência, com a experiência
consciente.
K: Isto é muito claro: o “eu” é essa consciência.
PJ: O “eu” não tem uma grande realidade para mim até que começo a
investigá-lo.
K: É claro. O fato é que depois de observar, depois de olhar, vejo que sou
a totalidade desta consciência. Não se trata de uma afirmação verbal. Sou a
herança, sou tudo isso. Este “eu” é observável? Pode ser tocado, deformado? É o
resultado da percepção e da herança?
MF: Não é o resultado da herança. É o herdado.
K: E então Pupul pergunta: “Quem é esse ‘eu’? Faz parte da consciência,
do pensamento?” Digo que sim. O pensamento faz parte do “eu”, exceto onde o
pensamento funciona tecnologicamente, onde não há “eu”. Tão logo você se afasta do campo científico,
chega o “eu”, que faz parte da herança biológica.
MF: O “eu” é o centro da percepção; é um centro operativo de percepção, um
centro ad hoc, e o “outro” é um
centro efetivo.
K: Seja simples. Vemos que a consciência é o “eu”; a totalidade desse
campo é o “eu”. E o “eu” é o centro do campo.
PJ: Eu quero descartar tudo isto e abordar o problema de um novo modo.
Vejo que o elemento mais importante em mim é o “eu”. Bem, agora, que é o “eu”?
Qual é sua natureza? Investiga-se isso, e no processo mesmo da observação há
clareza.
K: Ponto final.
PJ: A clareza, ao não ser eterna...
K: Mas pode realizar-se novamente.
PJ: Eu digo que talvez.
K: Porque temos uma ideia de que a percepção é total.
PJ: Neste estado, pode surgir legitimamente a pergunta a respeito de se a
clareza é eterna?
K: Não surge no estado de percepção. Surge ou existe unicamente quando
pergunto: É eterno este processo?
PJ: O que você diria?
K: Pergunta-se a você. Conteste. Tem que responder a esta pergunta. No
instante de percepção, a pergunta não surge. No instante seguinte, não percebo
com tanta clareza.
PJ: Se estou alerta como para ver que não percebo com tanta clareza,
investigarei isso.
K: Que faço, pois? Está a percepção. Isso é tudo.
PJ: A chave que abre a porta está nessa pergunta.
K: Sejamos simples com respeito a isto. Há percepção. Nessa percepção não
há problema de duração. Só existe a percepção. No momento seguinte não vejo com
clareza, não há uma percepção clara, embotou-se. Então investigo a
contaminação, e assim há clareza. Embotamento e outra percepção, cobrimento e
descobrimento... Isto é o que ocorre. Correto?
MF: É um movimento de tempo?
PJ: Tem lugar algo muito interessante. A natureza mesma desta percepção
alerta é operar sobre o outro.
K: O que você entende por “o outro”?
PJ: A desatenção.
K: Espere. Há atenção seguida por desatenção. Então dá-se conta da
desatenção, a qual assim se transforma em atenção. Este balanço continua todo o
tempo.
PJ: Se eu afirmo que a percepção diminui a desatenção, essa seria para mim
uma afirmação incorreta. O único que posso observar é que atenção atua sobre a desatenção.
K: Essa ação sobre a desatenção, elimina a desatenção de modo tal que
esta não surge outra vez?
PYD: Ela está atenta ao desatento.
PJ: Eu vou mais longe que estar atenta ao desatento. Digo que a natureza
desta atenção é tal, que opera sobre as células cerebrais. Vacilo muito ao
dizer isto. Está na natureza da atenção operar sobre as células cerebrais. O
que se acha inativo nestas, resurge quando é exposto à atenção, e a natureza
mesma da inatividade experimenta uma mudança. Gostaria que investigássemos esta
área.
K: Comecemos de novo. Se há escolhas nessa percepção, estamos de volta na
consciência. A percepção alerta é não verbal; não se relaciona com o
pensamento. A essa percepção alerta chamamos de atenção. Quando há desatenção,
isso é o que há: desatenção. Por que você mistura ambas as coisas? Estou
desatento; não há atenção. Isso é tudo.
Nessa
desatenção se desenvolvem certas atividades. E essas atividades geram mais
infelicidade, confusão e infortúnio. Digo-me, pois: Devo estar atento todo o
tempo a fim de impedir que tenha lugar esta perturbação. E acrescento: Tenho
que cultivar a atenção. Esse mesmo cultivar se converte em desatenção. O ato de
ver a desatenção, gera atenção.
A
atenção afeta as células cerebrais. Considere o que tem ocorrido. Há atenção, e
depois desatenção. Na desatenção há confusão, infelicidade e demais. O que
ocorre, então?
PYD: O ato de dissipar a desatenção tem descido penetrando no inconsciente.
PJ: Não é, na realidade, que nada se pode fazer a respeito?
K: Estou de acordo, Pupul, mas aguarde um instante. Não diga que não há
nada que fazer. O descobriremos. Estamos investigando. Há atenção e há
desatenção. Nesta última, tudo é confusão. Por que queremos reunir ambas?
Quando existe o impulso de reuni-las, há uma ação da vontade da qual é escolha:
prefere-se a atenção à desatenção. E assim está outra vez de volta no campo da
consciência. Qual é, então, a ação de onde ambas, a atenção e a desatenção, não
se juntam mais? Quero explorar um pouco isto.
Onde
há atenção, o pensamento não opera como memória; no processo de atenção não há
pensar, só há atenção. Eu dou-me conta de que tenho estado desatento, só quando
a ação produz incomodo, infelicidade ou perigo. Então digo-me: tenho estado
desatento. E, como a desatenção tem deixado uma pegada no cérebro, interesso-me
na infelicidade que a desatenção tem gerado. Então, ao investigar essa infelicidade,
a atenção volta sem deixar nenhuma pegada. O que ocorre, então? Cada vez que há
desatenção, esta é percebida rápida e instantaneamente. A percepção é imediata;
não pertence à duração, ao tempo. A percepção e a atenção não deixam pegada
alguma. O que sempre existe é a instantaneidade da percepção.
Bombay
18 de fevereiro de 1971
Fogo na mente
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