A totalidade
da nossa consciência está condicionada
PERGUNTA: Que
é o inconsciente, e está ele condicionado? Se está, de que maneira devemos
começar, para ficarmos livres desse condicionamento?
KRISHNAMURTI: Em primeiro lugar, a nossa
consciência, a consciência que está desperta, não é condicionada? Compreendeis
o que significa esta palavra “condicionado”? Sois educados de uma certa
maneira. Aqui, neste país, sois condicionados para serdes americanos — o que
quer que isso signifique — sois criados na “maneira de vida” americana, e na
Rússia é-se educado na “maneira de vida” russa. Na Itália, os católicos educam
as crianças para pensarem de certa maneira, o que é outra forma de
condicionamento, enquanto na índia, na Ásia, nos países budistas, elas são
condicionadas de outras maneiras ainda.
Por todo o mundo se vê esse mecanismo deliberado de
condicionar a mente pela educação, pelo ambiente social, pelo medo, pela
ocupação, pela família — enfim por todas as maneiras de influenciar a mente
superficial, a consciência desperta.
Depois, temos o inconsciente, isto é, aquela camada
da mente que está abaixo da superficial, e o interrogante deseja saber se ela
também está condicionada. Não está condicionada, condicionada por todos os
pensamentos raciais, por “motivos” e desejos ocultos, reações instintivas de
uma dada civilização? Suponha-se que eu sou um hindu, nascido na Índia e
educado no estrangeiro, etc. Enquanto eu não penetrar e compreender o meu
inconsciente, continuarei a ser hindu, com todas as reações simbólicas,
culturais, religiosas, supersticiosas, próprias do Bramanismo — todas lá estão,
adormecidas, podendo ser despertadas a qualquer momento, e dando avisos e
sugestões por meio de sonhos ou nos momentos em que a mente consciente não se
acha completamente ocupada. O inconsciente, pois, é também condicionado.
É perfeitamente evidente, portanto, se examinardes
bem isso, que a totalidade da nossa
consciência está condicionada. Não há nenhuma parte de vós, nenhum “eu
superior”, em estado não condicionado. O vosso próprio pensar é produto da
memória, consciente ou inconsciente, e, portanto, resultado de condicionamento.
Vós pensais como comunista, socialista, capitalista, americano, hinduísta,
católico, protestante ou seja o que for, porque estais assim condicionado.
Estais condicionado para crerdes em Deus, se acreditais, e o comunista não está
e se ri de vós, dizendo: “Estais condicionado!” — mas ele também está
condicionado, porque foi educado pela sua sociedade, pelo partido a que
pertence, pela sua literatura, para não crer. Assim, todos nós estamos
condicionados, e nunca perguntamos: “É possível ficarmos totalmente livres de
condicionamento?”. O que conhecemos é só um processo de aperfeiçoamento no
condicionamento, que é “aperfeiçoamento no sofrer”.
Pois bem. Se percebo isso, não apenas verbalmente,
mas com toda atenção, então não há mais conflito. Compreendeis o que quero
dizer? Quando vos entregais a alguma coisa com todo o vosso ser, isto é, quando
entregais completamente vossa mente à compreensão de alguma coisa, não existe
conflito. Só aparece conflito quando estais em parte interessado e em parte com
a atenção noutra coisa; e quando desejais dominar esse conflito, começais a
concentrar-vos, o que não é atenção. Na atenção não há divisão, não há
distração e, por conseguinte, não há esforço nem conflito; e é só com esta
atenção que pode vir o autoconhecimento, que não se faz por acumulações. Tende
a bondade de prestar atenção. Autoconhecimento não é uma coisa que se acumula;
tem de ser descoberto momento por momento, e no descobrir não pode haver
acumulação, nem ponto de referência. Se acumulais autoconhecimento, então toda
a compreensão futura será ditada por essa acumulação; por conseguinte, não
haverá compreensão.
Assim, a mente só pode transcender todo
condicionamento na vigilância, com atenção total. Nesta atenção total não há
“modificador”, censor, nenhuma entidade que diz: “Devo transformar-me”, o que
significa que deixa de existir, de todo, o “experimentador”. Não há mais
“experimentador”, “acumulador”. Vede, por favor, que é importante compreender
isto. Porque, afinal de contas, quando experimentamos qualquer coisa bela — um
pôr de sol, uma simples folha dançando ao vento, o luar espelhado nas águas, um
sorriso, uma visão, ou o que quiserdes — a mente logo quer apoderar-se dessa
experiência, guardá-la, adorá-la, e isso significa que deseja a repetição da
experiência, e quando há desejo de repetição, tem de haver sofrimento.
É possível, pois, estar-se num “estado de
experimentar” sem haver “experimentador”? Compreendeis? Pode a mente
“experimentar” o feio, o belo, ou o que quer que seja, sem haver aquela
entidade que diz: “experimentei”? Porque, aquilo que é a Verdade, Deus, o
Imensurável, nunca poderá ser “experimentado” enquanto existir um
“experimentador”. O “experimentador” é a entidade que reconhece; e se sou capaz
de reconhecer a Verdade, então já a experimentei antes, já a conheci antes, e
nesse caso não é a Verdade. Esta é a beleza da Verdade. Ela permanece
eternamente “desconhecida”, e a mente, resultado do conhecido, nunca poderá
apossar-se dela.
PERGUNTA:
Dizeis que todos os impulsos são essencialmente idênticos. Quereis dizer que o
impulso do homem que busca a Deus não difere do impulso do homem que anda atrás
de mulheres ou se entrega ao vício de beber?
KRISHNAMURTI: Nem todos os impulsos são semelhantes
entre si, mas todos são impulsos. Podeis ter um impulso para Deus, e eu posso
ter um impulso para me embebedar; somos, todos dois, compelidos, vós numa
direção e eu noutra direção. Vossa direção é respeitável, a minha não é; pelo
contrário, sou um elemento anti-social. Mas o eremita, o monge, o chamado
religioso, cuja mente está ocupada com a virtude, com Deus, é essencialmente
idêntico ao homem cuja mente está ocupada com os negócios, as mulheres, ou a
bebida, porque todos dois estão ocupados. Compreendeis? Um tem valor social,
enquanto o outro, o homem cuja mente está ocupada com o beber, é, socialmente,
um inadaptado. Portanto, estais julgando do ponto de vista social, não é
verdade? O homem que se retira para um mosteiro e reza da manha à noite,
fazendo um pouquinho de jardinagem a uma certa hora do dia, cuja mente está
toda ocupada com Deus, com automortificações, autodisciplinas, autocontrole, esse
homem vós considerais como uma pessoa santa, um homem extraordinário. Ao passo
que o homem que se ocupa com negócios, que especula na bolsa, e está a todas as
horas ocupado em ganhar dinheiro, desse homem dizeis: “É um homem comum, como
nós outros”. Mas, todos dois estão ocupados. Para mim, não importa o com que a
mente está ocupada. O homem ocupado com Deus nunca achará Deus, porque Deus não
é uma coisa com que possamos ocupar-nos. Ele é o desconhecido, o imensurável.
Ninguém pode ocupar-se com Deus. É uma maneira muito vulgar de pensar em Deus.
O que deve ter importância para nós não é o com que
a mente está ocupada, mas, sim, o fato de existir essa ocupação, seja com a
cozinha, com os filhos, com divertimentos, com a qualidade de comida que ides
comer, seja com a virtude, com Deus. E deve a mente estar ocupada?
Compreendeis? Pode a mente que está ocupada perceber, em algum tempo, “o novo”,
perceber qualquer coisa que não seja sua própria ocupação? E que acontece à
mente, se não está ocupada? Compreendeis? Existe alguma mente se não há
ocupação? O cientista está ocupado com seus problemas técnicos, sua mecânica,
suas matemáticas, assim como a dona de casa está ocupada com a cozinha ou o seu
bebê. Temos um medo enorme de não estarmos ocupados, um medo enorme das consequências
sociais. Se não estou ocupado, posso descobrir a mim mesmo, como sou, e minha
ocupação, pois, é uma fuga àquilo que sou.
Mas, deve a mente estar sempre ocupada? E é possível
manter a mente sem ocupação? Notai que estou fazendo uma pergunta que não é
para ser respondida, porque vós tendes de descobrir; e quando descobrirdes,
vereis que coisa extraordinária acontece.
É muito interessante quando uma pessoa descobre por
si mesma como sua mente está ocupada. O artista está ocupado a respeito de sua
arte, seu nome, seu progresso, a combinação das cores, a fama, a notoriedade; o
homem, de ciência ocupa-se de sua ciência; e aquele que quer alcançar o
autoconhecimento está ocupado com o conhecimento de si mesmo, esforçando-se,
como uma formiguinha, para estar cônscio de cada pensamento, cada movimento.
Todos eles são idênticos. É só a mente desocupada, completamente vazia, é só
essa mente que pode receber algo novo, o que não é ocupação alguma. Mas essa
coisa nova não poderá vir à existência, enquanto a mente se achar ocupada.
PERGUNTA:
Dizeis que uma mente ocupada não pode receber aquilo que é a Verdade ou Deus.
Mas, de que jeito posso ganhar a vida, a menos que esteja ocupado com meu
trabalho? E vós, não estais ocupado com estas palestras, que são o vosso
particular meio de ganhar a vida?
KRISHNAMURTI: Deus me livre de estar ocupado com
minhas palestras! Não estou. E elas não constituem meu meio de vida. Se eu
estivesse ocupado, não existiria nenhum intervalo entre pensamentos, aquele
silêncio que é essencial para se ver qualquer coisa nova. Em tal caso, o falar
me seria a coisa mais aborrecida do mundo. Não quero aborrecer com minhas
palestras, e por esta razão não falo de memória. O que faço é uma coisa
completamente diferente. Mas, isso não tem importância, e podemos conversar a
seu respeito, noutra ocasião.
O interrogante pergunta como poderá ganhar o seu
sustento, se não se ocupar com seu trabalho. Vós vos ocupais com vosso
trabalho? Escutai bem isto: Se vos ocupais com vosso trabalho, então não amais
o vosso trabalho. Compreendeis a diferença? Se amo o que estou fazendo, não
estou ocupado com isso, meu trabalho não está separado de mim. Porém, neste
país, somos exercitados — e infelizmente este mesmo hábito se está generalizando
no mundo inteiro — para adquirirmos eficiência num trabalho que não amamos.
Pode haver uns poucos cientistas, uns poucos técnicos especialistas, uns poucos
engenheiros que realmente amam o que fazem, no sentido total da palavra, o que
explicarei mais adiante. Mas, em geral, não gostamos do que estamos fazendo, e
por esta razão é que andamos ocupados com nosso meio de vida. Acho que se pode
perceber uma diferença entre as duas coisas, se se examinar bem isso. Como
posso amar o que estou fazendo, se estou sendo impelido, a todas as horas, pela
ambição, se quero, com meu trabalho, alcançar um fim, tornar-me pessoa
importante, ter êxitos felizes? O artista que está interessado no seu nome, sua
grandeza, na comparação, na realização de suas ambições, deixou de ser artista,
sendo meramente um técnico como outro qualquer. E isso significa, realmente,
que para se amar uma coisa, faz-se necessária a cessação completa de toda
ambição, todo desejo de reconhecimento por parte da sociedade, que afinal está
podre (risos). Senhores, por favor, não façais isso! Mas, nós não somos
preparados para isso, não somos educados para isso; temos de adaptar-nos a uma
certa rotina que a sociedade ou a família nos deu. Porque os meus antepassados
foram médicos, advogados, ou engenheiros, tenho de ser médico, advogado ou
engenheiro. E atualmente há necessidade de mais e mais engenheiros, porque a
sociedade o está exigindo. E, assim, perdemos o amor à coisa em si — se alguma
vez o tivemos, do que duvido muito. E, quando amais uma coisa, não há nenhuma
ocupação com ela. O espírito não está pretendendo alcançar alguma coisa ou
procurando ser melhor do que outro; toda comparação, toda competição, todo
desejo de sucesso, de preenchimento, desapareceu totalmente. É só a mente
ambiciosa que anda ocupada.
De modo idêntico, a mente que está ocupada a
respeito de Deus, da verdade, nunca o descobrirá, porque se a mente está
ocupada com uma coisa, já a conhece. Se já conheceis o imensurável, o que
conheceis é produto do passado, e, por conseguinte, não é o imensurável. A
Realidade não pode ser medida, e por conseguinte não pode haver ocupação com
ela; o que deve haver é só uma serenidade da mente, um vazio, em que nenhum
movimento existe, e é só então que pode despontar na existência o Desconhecido.
Krishnamurti, 14 de agosto
de 1955
Realização sem esforço
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