- ILUSÃO E INTELIGÊNCIA
Rimpoche: Senhor, quando o observador observa, é a matriz do
pensamento e da memória. Na medida em que o observador observa por essa matriz,
não lhe é possível ver sem nomear, já que o nomear surge dessa matriz. Como
poderá o observador se libertar dessa matriz?
Krishnamurti: Gostaria de saber se vamos analisar este ponto como
um problema teórico, como uma abstração ou se, pelo contrário, o vamos encarar
de forma direta, sem teorias.
Jagannath Upadhyaya: Este
problema se encontra diretamente vinculado à nossa vida diária.
K: Senhor, quem é o observador? Damos por certo que o observador
nasce dessa matriz e que ele é a matriz. Ou é o observador o movimento global
do passado? Isto é para nós um fato ou somente uma idéia? Se o observador se dá
conta de que é o movimento total do passado e de que sempre está observando,
aquilo que é observado jamais poderá ser exato? Creio que este é um ponto
importante. Pode o observador, que não é mais que um movimento total do
passado, com todos os seus condicionamentos, velhos e novos, se dar conta de
que está sendo condicionado?
Achyut Patwardhan: O
observador quando olha para um fato, o faz com todos seus velhos
condicionamentos, samskar[1][1].
Por tal motivo, não pode ver o fato tal como é.
JU: Podemos aceitar isto?
K: Nos encontramos todos no mesmo ponto de Rimpocheji quando fez
esta pergunta? O observador está fechado no passado e, na medida em que se
encontra enraizado nesse passado, é capaz de ver a verdade de um fato? Se não
se dá conta de que é um observador condicionado, se produzirá uma contradição
entre ele e o observado, e a contradição significa divisão.
AP: Na medida em que não veja isto claramente, haverá conflito no
ato de ver.
K: Senhor, surge então a pergunta: é possível para o observador
compreender-se a si mesmo, descobrir suas limitações e condicionamentos e,
desta maneira, não interferir na observação?
RMP: Esse é o problema básico. Sempre que tentamos observar, o
observador está interferindo na observação. Gostaria de saber se há um método
para colocar fim a esse “eu” que está interferindo.
K: O observador é a prática, o sistema, o método. Devido a ser o
resultado de todas as práticas passadas, de todos os métodos, experiências,
conhecimentos, rotinas e processos mecânicos de repetição, ele é o passado. Por
conseguinte, se você introduz um novo sistema, método ou prática isso acabará
no mesmo campo.
RMP: Que se pode fazer então?
K: Estamos chegando a esse ponto. Porém, vejamos primeiro, o que
estamos fazendo. Se aceitamos um método, a um sistema, sua pratica tornará o
observador mais mecânico. Qualquer sistema servirá tão somente para reforçar ao
observador.
JU: Então estamos num ponto morto.
K: Não, ao contrário. Por isso pergunto se o observador se dá conta
de que ele é o resultado de toda experiência, do passado e do presente. Nessa
experiência se incluem métodos, sistemas, práticas e as diversas formas de sadhana[2][2].
E você pergunta agora se, todavia existem novos sistemas, métodos e práticas, o
que demonstra que continua na mesma direção.
JU: Creio que não somente é possível recusar por completo o passado,
mas sim também o presente. O passado pode ser anulado mediante a observação,
porém a força do presente não desaparecerá a menos que o passado seja anulado.
Um sempre está relacionado com o momento presente.
AP: Na realidade, presente e passado não são mais que um, não se
acham separados.
JU: Portanto deveríamos anular o presente. Quando isto acontecer
acabarão eliminadas as raízes do passado.
AP: Você entende por presente, este momento presente de observação?
K: Este momento presente em observação é a observação de todo o
movimento do passado. Qual é a ação necessária que põe fim a esse movimento? É
essa a pergunta?
JU: O que eu estou dizendo é que o passado se apóia neste momento,
e também é nele onde construímos o edifício do futuro. Portanto, para se
libertar tanto do passado como do futuro, é necessário romper o momento no
presente, a fim de que o passado não tenha lugar onde se apoiar, nem o futuro
possua um ponto pelo qual se projete. Isto é possível?
K: Pode terminar esse movimento do passado que gera o presente, que
vai se modificando na medida em que se move, e que se converte no futuro?
JU: Mediante ao processo de observação negamos o passado. Ao
fazê-lo, também negamos o presente; e deixamos de construir o futuro que se
baseia nos desejos criados pelo passado. Somente permanece a observação.
Inclusive, esse momento de observação é um momento. A menos que o rompemos não
seremos livres da possibilidade do surgimento do passado e da criação de
futuro. Portanto é necessário que o momento presente, o momento da observação
seja rompido.
K: Você está dizendo, Senhor, que no estado de presente atenção, no
agora, termina o passado, porém que essa mesma observação, que dá fim ao
passado, possui suas próprias raízes?
JU: Não digo isso. Eu não aceito o fato de que o passado gere o
presente e este por sua vez o futuro. No processo de observação, tanto a
história do passado como a do futuro ficam soltas. Porém, o problema é que
estas histórias confluem neste momento. A menos que este momento seja negado,
tanto o passado como o futuro atuaram novamente. Para simplificar, gostaria
denominar “existência” ao momento “em que se está”. Tem-se, pois, que romper
este momento e, conseqüentemente, haverá que se romper também todas as demais
tendências que já se refletem do passado ou projetam o futuro. Isso é possível?
K: Esta pergunta possui para você uma importância capital e quero
compreendê-la bem antes de contestá-la. Vou formulá-la sem lhe dar contestação:
O passado é movimento, que acaba detido com a atenção. Ao dar por concluído o
passado, pode desaparecer esse segundo, esse momento, esse mesmo acontecimento?
JU: Eu gostaria de clarificar mais: este momento é um momento
“existente”.
K: Enquanto você utiliza a palavra “existência”, esta possui uma
conotação. Devemos ver isto muito cuidadosamente.
Pupul Jayakar: Não é estável.
JU: Eu gostaria de denominar este momento como kshana bindu[3][3],
o momento do tempo. A “condição” desse momento, sua “essência” há de ser
derrotada. Isso é possível? No movimento da observação não existe o passado nem
a possibilidade do futuro. Eu nem sequer lhe chamaria momento de observação,
porque carece de todo poder de existência. Quando não existe passado ou futuro,
tampouco pode haver presente.
K: Posso fazer a pergunta de outra maneira? Sou o resultado do
passado. O “eu” é a acumulação de recordações, experiência e conhecimento, o
qual é passado. O “eu” é sempre ativo, é um continuo movimento. E esse
movimento é tempo. Por isso, quando este movimento, como um “eu”, se enfrenta
ao presente, sofre uma modificação, porém continua sendo “eu” e se projeta no
futuro. Este é o movimento de nossa existência diária. E o que você pergunta é,
pode esse movimento, que é o “eu”, o centro, cessar e abolir o futuro? É isso,
Senhor?
JU: Sim.
K: E minha pergunta é: Pode o “eu”, que é consciência, se
reconhecer como o movimento do passado; ou é o pensamento que o impõe como uma
idéia, que é o passado?
JU: Pode repetir a pergunta?
K: Eu, meu ego, o centro pelo qual opera, esta entidade autocentrada,
possui milhões e milhões de anos. Constitui a pressão constante do passado, os
resultados acumulados do passado. A cobiça, a inveja, o sofrimento, a
ansiedade, os medos, a agonia, tudo isso é o “eu”. Esse “eu” é uma manifestação
verbal, uma conclusão de palavras, ou pelo contrário, é um fato, como este
microfone?
JU: Sim, é assim; ainda que não de forma absoluta; não é algo
auto-evidente.
AP: Por que? De que depende?
JU: Quando digo que é assim, o afirmo somente em termos de passado
ou de futuro. Sem dúvida, não é nem um nem outro. Portanto não o aceito como
uma verdade transcendental. Somente o posso admitir no plano da realidade
cotidiana.
AP: Porém, você está dizendo que é o criador do contexto.
JU: O “eu” é uma criação do passado. Qual é seu significado? O “eu”
é a história do passado.
K: Que constitui a história do homem que tem se trabalhado, lutado,
sofrido, que possui medo, que vive na dor e tudo o mais.
P. Y. Deshpande: É a história do universo, não a do “eu”.
K: É o “eu”. Não pretendamos criar que é a do universo.
JU: O “eu” é história, que pode ser fechada mediante a observação.
AP: Ele disse que estes fatos não se encontram relacionados com o
centro como observador.
K: A existência carece de auto-existência. É uma declaração
descritiva ao observar, não é um fato.
JU: É história, nada tem que ver com a observação.
PJ: Ele disse: “eu sou isto, eu sou aquilo, sou história”. É uma
declaração descritiva. O observar, não possui existência.
K: Vamos com calma. O “eu” é o movimento do passado, a história da
humanidade, a história do homem. E tal história é o “eu”. Se expressa a si
mesmo sempre em relação com os outros. Portanto, nas relações com minha mulher,
meu marido, meus filhos, meus amigos, está operando o passado com suas imagens;
por isso está fragmentando minhas relações com os demais.
JU: Isso acontece quando não há atenção. Com a atenção o momento
acabará rompido e com ele todas as relações.
PYD: No momento de atenção tudo acaba dissolvido.
K: Você está dizendo que nesse ponto de atenção tudo desaparece.
Porém, desaparece também na relação com minha esposa?
JU: Não. Essa não é minha experiência. Eu não tenho história, não
tenho criado nenhuma história. A história é independente do “eu”.
AP: Ele disse que é produto da história e que tem aceitado essa
identidade.
K: Porém, se você é produto da história, é também o resultado do
passado; e esse passado interfere na sua relação com os demais. E minha relação
com os outros produz conflito. Portanto, minha pergunta é: pode se colocar fim
a esse conflito agora?
JU: Sim. Finalizará porque foi rompido o momento.
PJ: Concluirá no instante de atenção e com ele se dará fim a
totalidade do passado.
Radha Burnier: Isso é absolutamente teórico.
JU: Estou falando de experiência. A atenção é uma experiência, uma
experiência especial que nega o passado.
AP: A atenção não pode ser uma experiência, porque então seria algo
imaginário. É parte do passado porque existe um observador separado do observado
e, desta maneira não há atenção.
K: Esta é a razão pela qual, no principio, fiz a pergunta se
estamos discutindo teorias ou fatos cotidianos. Rimpocheji, creio que sua
pergunta inicial consistia em saber se essa história, esse movimento passado que
está continuamente pressionando nossas mentes, nossos cérebros e relações, pode
concluir de maneira que não impeça a pura observação. O sofrimento, o medo, o
prazer, a dor a ansiedade que constituem a história humana, podem encerrar
neste instante, de maneira que o passado não interfira ou impeça a observação
pura?
RMP: Sim, essa foi a pergunta inicial.
K: Se entendi corretamente, você perguntou se existe uma forma de
meditação, um método ou sistema que faça concluir o passado?
RMP: Sempre que tratamos de observar o passado, este interfere.
Nesse momento, a observação se converte em algo inútil. Isto é o que dita minha
própria experiência.
K: Certamente, obviamente.
RMP: Então, como se pode observar sem que interfira o observador?
K: Qual é a qualidade ou a natureza do observador? Quando você
disse que o observador é todo o passado, ele é consciente de si mesmo como
passado?
RMP: Eu creio que não.
K: Não, não é consciente.
RB: Ou quem sabe o seja parcialmente?
RMP: Não. No momento da observação não é consciente do passado.
K: De momento não estamos observando; nos limitamos a examinar o
observador. Nos perguntamos se o observador pode ser consciente de si mesmo.
RMP: Você quer dizer no momento da observação?
K: Não, não nesse momento; duvidemos da observação. O que estou
perguntando é se o observador pode se conhecer a si mesmo.
RMP: Sim. Ele pode entender o passado e também seu condicionamento.
K: Pode entender seu condicionamento como observaria a um estranho,
ou está alerta de si mesmo como ser condicionado? Você vê a diferença, Senhor?
RMP: Não está claro se a observação feita pela mente humana é dual
ou se é ela mesma. É dual a consciência de si mesmo?
K: Não sei nada a respeito de dualidade. Não quero utilizar
palavras que não compreendemos. Para simplificar a questão: Pode o pensamento
ser consciente de si mesmo?
RMP: Não.
RB: Isso é o mesmo que dizer, se pode ser consciente da inveja, da
ira, etc. como alguém distinto de si mesmo?
K: Me dou conta de que estou furioso? Há consciência da ira no
momento em que surge? Certamente, há. Eu posso ver o despertar da inveja. Vejo
um belo tapete e surge a inveja, surge a cobiça dele. Agora bem, nesse
conhecer, é o pensamento consciente de que há inveja ou a inveja mesma é consciente?
Sou invejoso e conheço o significado da palavra “inveja”. Conheço a reação e o
sentimento. Esse sentimento é a palavra? A palavra é que cria o sentimento? Se
a palavra “inveja” não existisse, haveria inveja? Portanto, há uma observação
da inveja, o sentimento sem a palavra? Não o sabemos exatamente, porém, existe
algo ao que posteriormente colocamos nome?
PJ: O nomear é que cria o sentimento?
K: Isso é o que estou dizendo. A palavra tem se convertido em algo
mais importante. Você pode liberar a palavra do sentimento ou é essa palavra
que cria o sentimento? Vejo o tapete. Há percepção, sensação, contato e
pensamento, como a imagem de possuí-lo; e então surge o desejo. E a imagem
criada pelo pensamento é a palavra. Portanto, é possível observar esse tapete
sem a palavra, o que quer dizer que não há interferência do pensamento?
P: Observar um tapete, um objeto externo... Pode ser visto sem
interferência.
K: Então, é possível observar sem a palavra, sem o passado, sem a
recordação das invejas anteriores?
RMP: É difícil.
K: Senhor, se me permite assinar, não se trata de difícil. Porém,
primeiro esclareçamos o seguinte: a palavra não é a coisa; a descrição não é o
descrito. Sem dúvida, para a maioria de nós a palavra tem se convertido em algo
tremendamente importante. Para nós, a palavra é pensamento. Sem a palavra,
existe “pensamento”, tal e como normalmente o se compreende? A palavra
influencia nosso pensamento, a linguagem o modela, de maneira que nosso
pensamento existe com a palavra, com o símbolo, com a imagem, etc. E agora
perguntamos, você pode observar esse sentimento que temos verbalizado como
inveja, sem a palavra, o que significa sem a recordação de invejas passadas?
RMP: Esse é o ponto em que nos encontramos. Tão pronto como começa
a observação, o passado, como pensamento, interfere sempre. Podemos observar
sem a interferência do pensamento?
K: Eu digo redondamente que sim.
JU: A chave consiste em ver que o caminhante não é diferente do
caminhar. O mesmo caminhar é o caminhante.
K: É uma teoria?
JU: Não, não é. De outra maneira não seria possível manter um
diálogo.
K: Isso é assim na vida cotidiana?
JU: Sim. Quando nos sentamos aqui é somente nesse nível de relação.
Estamos aqui para ver o fato do “que é”. Separamos o ator de sua ação. Então,
se converte em história. Quando compreendermos que, através da observação, o
ator e sua ação são um, então teremos rompido a história, que é passado.
AP: Temos definitivamente claro que não existe distinção entre a
relação e o fato de se relacionar?
JU: O tornarei claro. Há um carro que está carregado, onde se apóia
e descansa toda a carga que possui? Descansa sobre aquele ponto da roda que faz
contato com o solo. É sobre esse ponto preciso sobre o que se apóia toda a
carga. A vida é um ponto e é nele que se apóia a história como passado e
futuro. Quando mantenho esse momento presente existente no campo da observação,
se rompe. Portanto, o carro e sua carga se rompem.
AP: Quando você disse que se rompem, essa atenção é uma experiência
sua? Se o que disse é um fato, a pergunta que fez Rimpoche deveria ser
contestada. Se não for contestada, tudo quanto foi dito é teoria.
RMP: Isso não responde a minha pergunta.
K: Senhor, sua primeira pergunta foi: pode o passado terminar? É
uma pergunta muito sensível porque toda nossa vida é o passado. É a história de
toda a humanidade, a dimensão imensa, a profundidade, o volume do passado. E
estamos nos fazendo uma pergunta muito simples e, por sua vez, muito complexa:
Pode finalizar essa vasta história, cujo corrente lembra a de um imenso e
caudaloso rio? Antes de tudo, reconhecemos seu imenso volume, não as palavras,
mas sim seu volume real? Ou, pelo contrário, é simplesmente a teoria de que
tudo isso constitui o passado? Compreende minha pergunta, Senhor? Reconhece o
grande peso do passado? Surge então a pergunta, qual é o valor desse passado?
Quer dizer, qual é o valor do conhecimento?
RMP: É o ponto de realização.
AP: A realização real é impossível porque nesse ponto interfere o
pensamento.
K: Não há realização pela interferência do pensamento. Porém, por
quê? Por quê deveria interferir o pensamento quando você me pergunta: que lugar
possui o conhecimento em minha vida?
RMP: Pode ter sua própria utilidade.
K: Sim, o conhecimento possui seu lugar limitado, porém,
psicologicamente não o possui. Por quê o conhecimento, o passado, há de se
apoderar de outro campo?
PJ: Senhor, o que você busca, com essa pergunta? Pergunto isto
porque a recepção desta pergunta se encontra também no campo do conhecimento.
K: Não. É a razão pela qual estou perguntando algo muito sensível:
Por quê há de interferir o conhecimento em minha relação com o outro? É a
relação com o outro uma recordação? Recordação significa conhecimento. Minha
relação com ela ou com você se converte em recordação quando, por exemplo,
penso “você me feriu”, “ela me elogiou”; portanto, “ela é minha amiga”, “você
não o é”. Quando a relação se baseia na memória, na recordação, existe divisão
e conflito. Portanto, não há amor. Como pode se colocar fim na relação a essa
memória, a essa recordação que impede o amor?
AP: A pergunta original, com a que iniciamos a conversação,
desembocou numa nova pergunta.
K: Eu a formulo agora: Qual é a função do cérebro?
RMP: Armazenar recordações.
K: E o que significa isso? Registrar como um gravador. Por quê deve
gravar o que não é estritamente necessário? Eu tenho que recordar onde vivo e
como devo conduzir um automóvel. Devo deixar gravado o que possui uma
utilidade; porém, por quê devo registrar também o insulto dela ou o seu agrado?
É esse registro o que constitui a história do passado: o agrado, o insulto.
Pergunto: pode isso ser detido?
RMP: Se estou pensando, é muito difícil...
K: Vou lhe mostrar que não o é.
RMP: Senhor, você pergunta por quê não se registra somente o que é
necessário; porém, o cérebro não sabe o que é necessário. Esse é o motivo pelo
qual registra tudo.
K: Não, não.
RMP: O registrar é involuntário.
K: Certamente.
RMP: Então, como podemos fazê-lo somente com o que é necessário?
K: Por quê se converteu em algo involuntário? Qual é a natureza do
cérebro? Necessita segurança ‑ segurança física - pois de outro modo não pode
funcionar. Há de ter alimento, roupa e abrigo. Existe por acaso outra forma de
segurança? Sem dúvida, o pensamento tem inventado outras: sou hindu e tenho
meus próprios deuses. O pensamento tem criado a ilusão e nela o cérebro busca
refúgio, segurança. Porém, o pensamento se dá conta de que a criação desses
deuses, etc., é uma ilusão e, portanto, os afasta, de forma que não tenha que
ir a uma determinada igreja, nem realizar rituais religiosos, já que todos são
produtos do pensamento, nos quais o cérebro tem encontrado certo tipo de
segurança ilusória?
JU: O momento de autoproteção é também passado. O romper com esse
hábito de autoproteção é também um ponto, e é nesse ponto que descansa toda a
existência. Esse atma[4][4]
que é samskriti[5][5]
tem de ser negado também. É a única saída.
K: Para a sobrevivência, a sobrevivência física, não só a sua e a
minha, mas sim a de toda a humanidade, por quê nos dividimos em hindus e
muçulmanos, em comunistas, socialistas ou católicos?
RMP: Isso é a criação do pensamento, que é ilusória.
K: Sem dúvida nos agarramos a ela. Você se considera hindu, por
quê?
RMP: É por sobrevivência, um reflexo de sobrevivência.
K: É sobrevivência?
AP: Não o é, porque é o inimigo dessa sobrevivência.
PJ: Em certo nível podemos nos entender, porém, isso não coloca fim
ao processo.
K: Porque não usamos nosso cérebro para descobri-lo, para dizer que
isto é assim: tenho que sobreviver.
PJ: Você disse que o cérebro é como um gravador que registra. O
cérebro possui outras funções, outras qualidades?
K: Sim, a inteligência.
PJ: Como conseguir despertá-la?
K: Olhe, eu me dou conta de que não há segurança no nacionalismo e,
portanto, permaneço fora: já não sigo sendo hindu. Vejo que tampouco há
segurança no fato de pertencer a uma determinada religião, e por isso não
pertenço a nenhuma. Que significa isso? Observo como as nações lutam entre si,
as comunidades lutam entre si, as religiões lutam entre si, observo essa
estupidez e a própria observação desperta a inteligência. Ver aquilo que é
falso é o despertar da inteligência.
PJ: O que é esse ver?
K: Ao observar como Inglaterra, França, Alemanha, Rússia ou Estados
Unidos se lançam uns contra os outros, vejo o quanto estúpido que é. Ver a
estupidez é inteligência.
RB: Você quer dizer que na medida em que se vê isto, esse registro
desnecessário chega a seu fim?
K: Sim. Já não sigo sendo um nacionalista. É uma coisa extraordinária.
Sunanda Patwardhan: Você quer dizer que enquanto deixo de ser
nacionalista, se desfaz todo registro
desnecessário?
K: Sim, no que diz respeito ao nacionalismo.
RB: Você quer dizer que quando alguém observa que a segurança ou a
sobrevivência é absolutamente um mínimo e elimina tudo o demais, cessa o
registro?
K: Certamente, naturalmente.
JU: Uma canção foi concluída e outra se inicia; a nova foi
registrada sobre a velha. Essa música velha e destrutiva foi anulada e a nova
melodia, boa e harmoniosa, toma seu lugar. É esse o futuro da humanidade?
K: Não, olhe, isso é teoria. Você deixou de ser budista?
JU: Não sei. O passado, como
história, tem formado a imagem em meu cérebro. Minha condição de ser budista é
o passado, um passado histórico.
K: Pois dizê-lo; é mesmo, ver a ilusão de ser budista.
JU: Isso é correto.
K: Ver a ilusão é o inicio da inteligência.
JU: Porém, quiséramos ver que quando uma coisa se destrói, outra não
a recomeça.
K: Podemos abordá-lo de maneira diferente? Nos achamos rodeados de
coisas ilusórias e falsas. Devemos ir observando-as uma por uma, passo a passo,
ou, pelo contrário, podemos observar essa ilusão em sua totalidade e assim
colocá-la fim? É possível ver o movimento completo da ilusão, o movimento do
pensamento que cria a ilusão, e dessa maneira concluí-lo?
JU: É possível.
K: Isso é uma teoria? Porque a partir do momento em que entrarmos
em teorias, nada terá sentido.
JU: Só é possível se pudermos romper o processo de autoproteção. A
forma deste processo pode sofrer uma transformação, porém, ele em si mesmo não
será concluído. Inclusive é uma ilusão crer que algo possui existência.
Milhares de tais ilusões se destroem e outras tantas novas surgem. Isso não é sadhana[6][6],
acontece continuamente. Até o momento temos estado falando das ilusões mais
grosseiras; certamente essas se rompem. Porém, uma nova imagem está sempre se
formando a si mesma, e criando suas próprias estruturas mentais.
AP: O que ele disse é que esse processo de negação dá lugar a
ilusões novas e mais sutis.
K: Não. Por ser limitado o pensamento, tudo quanto ele cria ‑
deuses, conhecimentos, experiências, etc. - é limitado. Você vê a limitação do
pensamento e de sua atividade? Se for assim, ele termina, não há mais ilusão.
RMP: Este ponto, este pensamento, volta a surgir.
K: Senhor, por isso tenho dito, que o pensamento precisa encontrar
seu próprio lugar, que é somente o do prático, sem ocupar nenhum outro, pois se
ocupa algum outro lugar é uma ilusão. O pensamento não é amor. Existe o amor?
Você está de acordo de que o pensamento é limitado, porém, você ama as pessoas?
Não quero teorias. O que é o fundamental de tudo isto? O que é o fundamental de
todo esse conhecimento, Gita, Upanishades ou o que quer que seja? Estamos nos
entendendo ou seguimos somente no nível do verbal?
RMP: Não, não estamos nesse nível.
K: Quando descobrimos as limitações do pensamento, se produz o
florescimento de algo. Está acontecendo, isso está tendo lugar realmente?
RMP: Agora posso reconhecer de forma mais profunda as limitações do
pensamento.
Benares, 13 de novembro
de 1978.