Editorial K-infonet
“Eu disse-lhes hoje de manhã que, durante setenta anos, esta superenergia - não esta imensa energia - imensa inteligência, usou este corpo. Acho que as pessoas não conseguem compreender que energia e inteligência fantástica passaram por este corpo - há o motor de doze cilindros. E, durante setenta anos - foi muito tempo - e, agora, o corpo não aguenta mais. Ninguém, a não ser que o corpo tenha sido preparado, muito bem protegido etc., ninguém pode compreender o que passou por este corpo. Ninguém. Não sabem o que aconteceu. Eu sei que não sabem. E, agora, passados setenta anos, chegou ao fim. Não que essa inteligência e energia estão aqui de qualquer forma, todos os dias e especialmente à noite. E, passados setenta anos, o corpo não aguenta. Já não aguenta. Não pode. Os índios têm umas superstições danadas sobre isto, que vamos e o corpo vai, e uma série de coisas do estilo. Não é possível encontrar outro corpo como este, ou essa inteligência suprema operando num corpo durante muitas centenas de anos. Não veremos nunca mais. Quando ele partir, desaparece. Não vai ficar nenhuma consciência dessa consciência, desse estado. Irão fingir ou tentar imaginar que podem entrar em contato com ela. Talvez consigam um pouco, se viverem os ensinamentos. Mas ninguém o fez. Ninguém. E é tudo”. (Lutyens, Mary. A Vida e Morte de Krishnamurti. Londres. Rider, 1990, pág. 206)
Esta confidência ocorreu entre um grupo de pessoas e Krishnamurti, pouco antes da sua morte. Foi registrada literalmente e mais tarde incluída na biografia feita por Mary Lutyens. Embora as declarações não sejam completamente coerentes, ficamos com a impressão de que Krishnamurti sugere aqui que, ao fim e ao cabo, o homem não pode ser livre.
Uma frequente reação a esta passagem é medo: significa isto que não há esperança de transformação? Significa isto que tenho que fatalmente viver com dor e sofrimento? Significa isto que não compreendi nada? É a mensagem de Krishnamurti uma mensagem gorada ou a sua comunicação tem graves falhas?
Contudo, talvez uma questão mais importante tenha a ver com autoridade e a solidez da nossa própria compreensão dos ensinamentos. Vejo algo claramente ou apenas concordo com Krishnamurti que os ensinamentos são válidos? Se realmente vejo algo claramente, esta passagem não faz diferença. A minha compreensão de divisão, relação, a natureza do tempo e do eu altera-se porque Krishnamurti proferiu aquelas palavras?
Se, por exposição aos ensinamentos, advém daí uma real e funda consciência da desordem da mente humana, então a pergunta teórica se a transformação é possível perde o sentido. Não há outra escolha a não ser responder a este descontentamento fundamental continuando a investigação - a urgência da situação exige-o.
Então, se o meu interesse em 'viver os ensinamentos' não for invalidada, porque Krishnamurti disse aquelas palavras, como é que eu posso considerar a realidade de que aparentemente 'ninguém mudou' do ponto de vista dos próprios ensinamentos? Mentes com variadas capacidades e disposições, desde o extremamente inteligente até o altamente sensível, investiram muito tempo e esforço nos ensinamentos sem atingirem uma transformação radical.
Parece que é necessária alguma coisa extraordinária, embora não em sentido linear. Não é uma questão de tentar mais ou melhor, mas de fazer algo de forma completamente diferente, não relacionada com alguma coisa tentada anteriormente.
De fato, Krishnamurti corrobora isto ele próprio quando fala da necessidade da 'mudança total, completamente radical e revolucionária.' Algumas vezes, Krishnamurti usa a metáfora de começar 'no outro lado do rio', para sugerir que nós nos voltamos para o que não conhecemos em vez de fazer mais esforço para modificar a nossa compreensão. Ele também se refere a isto como 'o fim do tempo' ou 'a libertação do conhecido' - afirmações enigmáticas quando consideradas isoladamente.
O que quer dizer Krishnamurti com 'o conhecido'? Mais do que apenas um reservatório inanimado de conhecimentos, ele usa o termo 'conhecido' para significar a percepção humana, a nossa própria experiência de viver, a totalidade da nossa consciência.
Para Krishnamurti, a consciência, da forma como funciona na maior parte de nós, é inerentemente corrupta. Esta corrupção básica manifesta-se como conflito humano, quer individualmente, quer coletivamente.
Os ensinamentos perspectivam o conflito como um fator permanentemente presente na mente, e não como algo que intermitentemente sombreia a nossa vida quotidiana. Como Krishnamurti considera, 'não há intervalo' na dor e confusão e 'a nossa vida está sempre na fronteira do sofrimento'. Ao contrário de Krishnamurti, a maior parte de nós toma por garantida a possibilidade da felicidade humana e, como tal, tem uma visão de conflito mais diferenciada. Temos a sensação de que o conflito pode ser negociado, mitigado e, em certas circunstâncias, vencido.
Para Krishnamurti, a base da compreensão errada reside nesta presunção de que o conflito é algo separado de nós, algo que pode ser trabalhado. Onde há divisão, há conflito. Isto é uma lei. Ele defende que, enquanto existir divisão entre nós e a nossa experiência, tem que continuar o conflito. O conflito pode gerar muitas coisas; mas não a sua própria resolução.
Externamente, podemos ver que o conflito, da forma que ele se manifesta como guerra, por exemplo, provém de divisões como a nacionalidade, identificação religiosa etc. Neste domínio, conflito e divisão estão perceptivelmente ligados. À medida que se torna cada vez mais pessoal, esta clara ligação torna-se menos nítida e eventualmente desaparece de vez. A divisão básica entre 'eu' e a minha experiência não é considerada um fator que provoque conflito. Pelo contrário, sentimos que é esta mesma separação que permite a possibilidade de corrigir. Contudo, o triste fato é que, apesar dos nossos melhores esforços, o conflito persiste dentro e fora.
Krishnamurti nota que lidar com o conflito desta forma pessoal e parcelar, ainda que traga alívio momentâneo, não trata da causa funda do conflito. Perante o limitado sucesso deste ataque direto ao particular, ele sugere que a única coisa a fazer é retroceder e obter uma melhor compreensão sobre como funciona a mente. Com este objetivo, será útil considerar o que acontece quando enfrentamos determinado problema.
Em primeiro lugar, identificamos o problema, por exemplo, o medo, o ciúme, a dor, confusão etc. A isto seguem-se as várias respostas interiores - resistência, justificação, resolução etc. A todo o tempo, o próprio problema parece flutuar num compartimento impermeável, isolando-se das ideias que tenhamos sobre a melhor forma de lidar com ele. Inconscientemente, relegamos o problema para um lugar fora de nós mesmos que nos permita então abordá-lo. Assim, o que falha mesmo é que o problema faz, ele próprio, parte da mente. Como Krishnamurti diz, 'está tudo no mesmo âmbito e ao mesmo nível' - o problema, a compreensão do problema e as reações a essa compreensão.
O significado desta compreensão é extraordinário. Põe em causa crítica o meu próprio sentido de realidade, nomeadamente que o 'eu' esteja no centro do meu ser, que as ideias estão na minha cabeça e que os fatos estão algures fora.
Vista segundo este prisma, a consciência humana pode ser descrita como um país das maravilhas animado, uma interação dinâmica de alianças e oposições entre grupos de imagens que mudam constantemente de filiação, sofrendo os resultados do assalto contínuo na articulação central de imagens a que damos o nome de 'eu'.
Krishnamurti usa o termo transformação para significar o fim do conflito e, não, passar de um estado para outro para ganhar uma experiência mais ampla. Isto pode explicar por que nenhuma quantidade de esforço para executar o que Krishnamurti diz parece 'dar resultado'. Para existir transformação tem que terminar a experiência. É por não termos posto fim à experiência que continuamos a movermo-nos, a analisar, a falar, lutando para levar a cabo uma mudança experiencial.
Do ponto de vista dos ensinamentos, o que não se vê é que os fatores que motivam o desejo e o medo estão sempre presentes, acompanhando as expectativas sutis sobre o que irá acontecer quando 'a coisa funciona'.
Krishnamurti sustenta que a mudança radical não pode ser o resultado de compreender primeiro e agir depois a partir dessa compreensão. No campo da experiência, até a compreensão mais lúcida cria forçosamente mais divisão, separando-se daquilo que compreende. Acontece então que o fim da experiência não pode surgir por meio da reação, através da pressão, através de permutas mais inovadoras do pensamento. Por outras palavras, a transformação não pode ter causa. A questão da transformação torna-se então impossível, não tem resposta.
Os ensinamentos defendem que, se nos mantivermos completamente com a impossibilidade de transformação através do conhecido e não nos afastarmos desta crise, haverá o surgimento de uma consciência unificada - uma qualidade humana inata destituída de projetos pessoais - que pode 'ver' as divisões infundadas da mente.
Qualquer questão com o sentido de descobrir um caminho ou um método para terminar com a experiência é uma fuga que ainda fortalece mais a experiência. Não quer isto certamente dizer que tomemos como diretiva simplesmente esperar que a transformação aconteça espontaneamente. Esperar, um estado de atitude expectante, continua a linha de tempo e causalidade que é a própria matéria da experiência. 'Quando eu digo: o que é que hei de fazer entretanto, até que a explosão aconteça, o intervalo entre esse momento e agora, à espera dessa explosão, é uma deterioração'. Não fazer nada não é a mesma coisa que esperar.
De fato, para Krishnamurti, a principal e talvez a única questão é ver a necessidade de não fazer nada, de realmente nos preservarmos daquilo que conhecemos, de termos tempo livre. A beleza do tempo livre deriva da impossibilidade de cultivá-lo. Ele acontece inobstaculizado quando põe fim a qualquer busca.
Pergunta: 'Parece um paradoxo. A não ser que vejamos, não somos capazes de percepcionar totalmente; vemos verbalmente'.
Krishnamurti: 'Ver verbalmente, ver emocionalmente, ver parcialmente, não vemos. Então? Segue sem descanso, vai até o fim'.
Pergunta: 'Chego ao fim e não existe nada. Não sei o que fazer'.
Krishnamurti: 'Então, não faças nada. Ris-te! Estou falando muito a sério: não faças nada, à exceção das coisas mecânicas. Mas nós estamos sempre fazendo alguma coisa a toda a hora. Não faças nada psicologicamente, interiormente; não faças nada, exceto o que tens de fazer regularmente na vida quotidiana. Já alguma vez o fizeste sem teres saído dos carris e ires para o manicômio? Não é a isso que me refiro; mas, autenticamente, não faças nada, interiormente'.
Varanasi, India, 1962. 3ª Palestra Pública
Krishamurti Foundation of America