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segunda-feira, 26 de março de 2018

A matriz da tradição


A MATRIZ DA TRADIÇÃO

Interlocutor B: No budismo se mencionam três categorias de pessoas no mundo: o homem vulgar e mundano que tem seus prazeres, penas, etc.; o que está “no bom caminho” pois vislumbra a direção; e logo, o arhat. O homem mundano poderá praticar rituais, mas segue sendo um homem mundano até que tenha uma experiência, um resplendor da direção. O que está no bom caminho se extravia, mas sempre regressa, até um momento em que já não há mais um voltar ao primeiro estado.

KRISHNAMURTI: Um homem mundano tem um vislumbre do caminho — como o teve? E uma vez que está no bom caminho, pode andar à deriva para trás e para frente, extraviar-se e voltar ao caminho, e finalmente estabelecer-se e alcançar o estado de arhat. Sua pergunta é como o homem mundano poderá ter um vislumbre, não é isso?

B: Sadhana é o meio para obter Siddhi. Siddhi significa meta.

KRISHNAMURTI: Isso através do qual você alcança a meta — um sistema, um método, um processo —, implica tempo.

C: Implica tempo? Não necessariamente...

KRISHNAMURTI: SE eu tenho que passar por uma porta para chegar a alguma parte, isso é um processo de tempo. A sadhana implica um processo de tempo.

C: A tradição também diz que as sadhanas são inúteis.

KRISHNAMURTI: A maioria das pessoas insistem na sadhana, ainda que digam eu não é necessário, se tornou uma parte da tradição.

B: Elas dizem que é melhor passar pelo sadhana, mas não garantem que você chegará através dele.

KRISHNAMURTI: A palavra sadhana indica um processo, e o processo significa acumulação de coisas, o que por sua vez significa tempo. Inclusive o conceito mais cientifico de tempo, é o das coisas reunidas em uma posição horizontal ou vertical. Portanto, sadhana quer dizer tempo. Qual é então a pergunta, senhor? O que diz a tradição?

B: A tradição budista diz que um que homem sofre, tem um vislumbre do caminho. Então, ele está “no bom caminho”. E assim, empreende sua salvação e chega a ser um arhat. Que tipo de operação ou movimento está envolvido no segundo estado?

C: Eles dizem que quando se penetra no estado de não-dualidade, já não há um voltar atrás.

KRISHNAMURTI: Como você chega a esse estado?

C: Visto que não é um processo, eles nos dizem como chegar a ele. Dizem que não se pode alcançá-lo mediante o escutar as pessoas ou por meio do estudo, dos rituais e a sadhana. Eles o levantam negativamente.

KRISHNAMURTI: è uma questão de dualidade. Estar no mundo implica dualidade; então, há um vislumbre de um estado não-dual e uma regressão ao estado dual, não é assim?

C: Eles dizem que a dualidade não existe em absoluto, mas que por causa do processo intelectual cria-se a dualidade. Uma vez que se compreende a não-dualidade, já ao há problema de que o mundano se deslize nisso.

KRISHNAMURTI:  Vivendo em um estado de dualidade como o fazem os seres humanos, o fato de negar os rituais, lhe fará alcançar o estado não-dual? Você poderá dizer que não há um molde ou um nível dualístico, que há uma dimensão na qual a dualidade não existe em absoluto. O que diz a tradição? Que a mente presa no estado dualístico chegará “ao outro” negando as crenças, os rituais, etc.? Abordaremos este problema de modo simples. Vive-se em um estado dualístico. Esse é um fato. Nesse estado há pensa, dor, conflito e tudo isso. E o homem diz: “Como ei de sair disso?” O estado não-dualístico é meramente uma teoria. O homem não o conhece. Pode ter lido sobre ele, mas essa é uma informação de segunda mão. Carece de valor. Não faça caso do que os outros tenham dito a respeito.

Eu só conheço um estado dualístico em que há dor, infortúnio. Isso é um fato. É daí de onde começo.

C: Algumas pessoas, através do conflito e a infelicidade, se dão conta de que o estado dualístico é a causa do mal. Então querem se livrar desse estado. Algumas não partem disto, mas se sentem descontentes e leem; uma vez que leram, começam a imaginar o estado não-dual.

KRISHNAMURTI: Essa é uma teoria. O fato é uma coisa e a ideia a respeito do fato é outra. Não nos interessa o homem que sustenta uma conclusão derivada de um especialista. Nós só estamos discutindo a respeito de um homem que se acha em conflito e está descontente com esse conflito. Como se livra dele?

C: O modo tradicional consiste em explorar através dos livros. O homem compreende mediante a negação, e resolve o conflito por meio do conhecimento.

KRISHNAMURTI: Proceda passo a passo. Eu estou em conflito. Bem, agora, como resolvê-lo? Você diz que por meio do conhecimento. O que é o conhecimento?

C: A compreensão do conflito é conhecimento.

KRISHNAMURTI: Eu não tenho que compreendê-lo, estou em conflito. Sei que estou em conflito, que estou agoniado, que sofro. O que você entende por conhecimento e que entende por conflito? É conhecimento saber que estou em conflito? ...você chama conhecimento o saber o que devo fazer com relação a esse conflito? Quando você emprega a palavra “conhecimento”, o que quer dizer com ela? Qual é o equivalente sânscrito dessa palavra?

C: Jnana.

KRISHNAMURTI: O que significa isso? Conhecimento a respeito de que? Conhecimento com relação à causa do conflito?

C: Jnana se aplica também a natureza do conflito e ao modo em que surge.

KRISHNAMURTI: Como nasce o conflito e qual o modo em que opera? Qual é sua natureza e estrutura? Conhecer a causa é conhecer a estrutura e natureza da dor. Você chama isso de conhecimento?

C: Senhor, jnana está dividido naquilo que pertence ao mundo fenomenal, e ao que se refere ao mundo não-fenomenal.

KRISHNAMURTI: O que você entende por conflito?

C: Conflito é dualidade.

KRISHNAMURTI: Sabemos o que é a palavra “conhecimento”. O que você quer dizer com a palavra “conflito”?

C: Dwandva: conflito entre os dois — quente e frio, prazer e dor, felicidade e infelicidade...

KRISHNAMURTI: Prossigamos então. Ei estou em conflito. Quero sair dele e quero permanecer aqui; sou infeliz e quero fazer algo que me proporcione felicidade. Adquiro conhecimento a respeito mediante o ver a causa, a natureza, a estrutura desse conflito; a compreensão da causa, a natureza e estrutura deste conflito, é conhecimento. E o saber isso, o ter este conhecimento, libertará a mente do conflito? Você diz, pois, que o conhecimento libertará a mente do conflito, correto senhor?

Bem, agora, eu sei que estou enciumado porque minha mulher olha para outro homem ou porque você tem um emprego melhor que o meu. Sei por que estou enciumado. Conheço a estrutura do ciúmes: eu gostaria de estar em seu lugar, gostaria que minha mulher não olhasse para você; conheço a causa, conheço o efeito; a reação disso é que estou enciumado. Vejo a estrutura completa disso, do mesmo modo em que um engenheiro vê uma estrutura. O conhecer essa estrutura, me liberta dela? Obviamente, não o faz.

C: O conhecimento que dissolverá o conflito é o tipo de conhecimento em que não há dualidade.

KRISHNAMURTI: Como você o sabe? Porque algum outro o tem dito?

C: Averiguado por que surge o ciúmes. Por que se tem que estar enciumado?

KRISHNAMURTI: Isso é análise. A análise liberta a mente do conflito?

C: Só a análise não o fará.

KRISHNAMURTI:O conhecimento é resultado de análise. Eu analiso, vejo que estou enciumado. Fiquei com raiva da minha mulher, etc. Ela me abandonou. O conhecimento me libertará do medo que sinto de viver só, sem ela?

C: O sentimento de ciúmes se encerra.

KRISHNAMURTI: Como você propõe terminar com o ciúmes? Tenho me analisado até a raiva, e o minuto seguinte estou novamente com ciúmes.

C: Isso significa que através da análise você não terminou com o ciúme.

KRISHNAMURTI: A análise faz parte do conhecimento. Eu tenho acumulado conhecimento porque tenho analisado. Estou enciumado dela porque tenho tratado de possuí-la. O dar-me conta disto é conhecimento; e eu trato de possuí-la porque tenho medo de viver só — e isto é parte do conhecimento. Você diz que mediante a análise há acumulação de conhecimento, e que esse conhecimento vai libertar-me do ciúme. O fará?

C: Não senhor. Eu posso analisar todo ciúme quando minha mulher sai com outro homem. Também posso dizer: o que importa se ela se for? Tudo depende do indivíduo.

KRISHNAMURTI: Tudo isso é intelectualismo. O intelectualismo faz parte da análise. Enquanto o intelecto interferir, o conhecimento, você não é livre. Todo conhecimento é intelectual.

C: Jnana não é esse processo intelectual. O processo intelectual termina com manas e buddhi.

KRISHNAMURTI: Então você está dizendo que existe outro fator que está mais além do intelecto, do conhecimento. Disse que a análise, a acumulação de conhecimento através da análise, é um tipo de conhecimento. E que fora disso, existe algum outro fator.

C: ...que permite ao buddhi ver, discernir.

B: Como se adquire conhecimento? Demos o primeiro passo.

KRISHNAMURTI: Tenho estado muitas vezes nessa estrada, e tenho adquirido conhecimento com ela. Tenho visto com frequência essa pessoa e tenho com ela conversado; ela tem sido amistosa ou não amistosa. Tudo isso é conhecimento. Tenho acumulado informação através da experiência, da análise, dos incidentes, e isso se chama conhecimento.

C: O que é que torna possível o conhecimento? O que é que torna possível a experiência?

KRISHNAMURTI: A experiência só é possível quando existe o experimentador. Você disse algo que não me agrada, que me ofende; essa é uma experiência. Essa experiência logo se converte em conhecimento. Esse conhecimento terminar com o conflito?

C: Não.

KRISHNAMURTI: Então, o que colocará fim ao conflito? Dizem eles que é essa entidade que compreende o experimentador, o qual tem reunido este conhecimento que haverá de terminar com o conflito? Se é assim, então existe uma entidade superior.

C: Há um princípio através do qual são possíveis todas estas variadas e diferentes experiências. Como sei que sou o experimentador?

KRISHNAMURTI: Porque o experimentei antes. Sei que sou o experimentador porque você me ofendeu antes. O conhecimento, o conhecimento prévio me converte no experimentador.

B: Eu vejo o amanhecer, sito que essa é minha experiência de haver visto o sol...

KRISHNAMURTI: Tendo visto o amanhecer uma vez e vendo-o dia atrás dia, a acumulação desse conhecimento faz com que eu seja o experimentador.

C: Eles postulam a uma entidade que não experimenta.

KRISHNAMURTI: A entidade postulada é outra opinião que se adquiriu de algum outro.

Isso é bastante simples e claro. Primeiro me dou conta, tomo conhecimento de que estou em conflito. O analiso. Por meio da análise tenho adquirido o conhecimento de que estou enciumado, isso é simples. A análise, a observação, a vigilância do processo, tem me proporcionado a informação a respeito do porque estou enciumado; essa informação é conhecimento. E esse conhecimento aparentemente não pode libertar-me do ciúme. O que então me livrará dele? Não invente outro eu superior. Não conheço nada a respeito disso. Eu só conheço o conflito, a análise, o conhecimento, e vejo que o conhecimento não libera do conflito.

B: Qual é o substrato de toda experiência? O que é aquilo a partir do qual surgem todas as experiências? Qual é a matriz?

KRISHNAMURTI: É uma acumulação de experiências? A matriz consiste em coisas acumuladas. A matriz di carpete é sua trama e urdidura. A matriz da experiência é experiência. Senhor, você pergunta qual é a vertente que produz a experiência? Ou pergunta qual é a matéria sobre a qual a experiência deixa um molde formado?

C: Os tradicionalistas consideram que o conhecimento como depósito de experiência, recordações, pertence ao reino de manas e buddhi, e que isto é possível graças ao atman que projeta luz; que sem o atman, o manas não pode funcionar.

KRISHNAMURTI: Qual é o material sobre o que a experiência deixou sua pegada? Existe tal material?

Obviamente se trata do cérebro. De fato, o cérebro é o material; as células são o material sobre o que cada incidente, cada experiência — consciente ou inconsciente —, deixa sua pegada. O cérebro está recebendo constantemente. Eu vejo essa flor, e já se registrou; vejo a você e isso já se registrou. Há em marcha um constante processo de registrar. Aí está a herança racial, a herança pessoal, tudo isto vai deixando sua pegada sobre o cérebro.

B: A função da mente é a energia.

KRISHNAMURTI: O registro do cérebro é parte da energia. Tudo é energia. De modo que o cérebro é o depósito de todos os registros — sensoriais e não sensoriais —. Este é a “fita” que tem se acumulado por séculos. Esse é o conhecimento. Se você não soubesse onde mora, não poderia chegar até lá. Devido a ter estado aqui antes, você o sabe.

O conhecimento não necessariamente liberta a mente do conflito, concorda? Isso o vemos. O que é então que há de libertá-la sem introduzir o atman, que faz parte da tradição, do conhecimento que se tem adquirido? Ainda que eu possa chamá-lo atman, isso é o mesmo campo do conhecimento.

C: Como ele penetra no campo do conhecimento?

KRISHNAMURTI: A menos que eu pense no atman, não há atman.

C: Pensar nele não é realizá-lo. O atman não está dentro do alcance do pensamento.

KRISHNAMURTI: O conceber algo está ainda dentro do campo do pensamento. Um homem que pensa no atman segue estando dentro do campo do pensamento.

C: O homem que falou do atman não pensava a respeito disso, o realizava. A única analogia que eles citam, é a de quem tem um sono profundo e se desperta. Como você sabe que tenha tido um sonho profundo, se nele a mente não trabalha?

KRISHNAMURTI: Como você sabe quando ela não trabalha? As células cerebrais trabalham dia e noite. Só quando você se levanta na manhã seguinte, sabe se está cansado ou se dormiu bem, etc. Todas essas são funções do cérebro. É assim que o atman está dentro do campo do pensamento. Tem que estar. De outro modo você não usaria essa palavra. Nós dizemos que o atman faz parte do cérebro. O pensamento disse que não pode resolver o problema por meio do pensamento, e que, portanto, deve existir um atman.

C: Mas eles têm dito que o atman está fora da experiência.

B: Explique-nos, por favor, em que consiste o material da experiência.

KRISHNAMURTI: Eu vejo a flor, a nomeio. Há o nomeá-la, a forma, a verbalização; a verbalização é a memória, porque o cérebro a viu e disse que isso é uma flor.

B: O cérebro opera se fecho os olhos?

KRISHNAMURTI: Certamente. Feche os olhos, tape os ouvidos e, todavia, poderá pensar. No momento em que digo que há Deus, o concebido está dentro do pensamento. Se um homem não tem absolutamente pensamentos, para ele, Deus não existe. Os antigos, pensando em algo superior, desejando algo maior, disseram que havia um Deus. Isso foi o produto do pensamento. Portanto, estava dentro do campo do conhecimento.

C: Nos Upanishads, a Deu não é concedido muita importância. De acordo com a concepção deles, Deus e brahmán são a mesma coisa.

KRISHNAMURTI: Veja, vem alguém que não é Hindu e diz: Deus, Jesus. Qual é a diferença? Ele tem sido educado em sua cultura particular, e você nesta cultura que diz atman.

C: Nós dizemos ambas as coisas. Deus é pessoal, o atman não é pessoal.

KRISHNAMURTI: Tudo isso é um produto do pensamento. Observe os enganos em que a mente tem se voltado, presa em palavras. Eu tenho acumulado conhecimentos a respeito da dor, e a dor não cessa; e ao não saber como colocá-la fim, o pensamento diz que deve haver algum outro fator. É assim que inventa o atman. Pensa a respeito disso. Do contrário, o atman não haveria surgido à existência. Portanto, o atman tampouco termina com a dor porque faz parte do conhecimento. O conhecimento a respeito da dor não tem colocado fim na dor. Tampouco o atman termina com a dor.

C: Mas eles mesmos têm dito que o pensamento resolverá o problema.

KRISHNAMURTI: Mas o atman é um produto do pensamento.

C: Sem dúvida, o atman é experimentado por eles. É uma experiência pessoal que lhes pertence.

KRISHNAMURTI: Quando eles dizem que experimentam o atman, o que isso significa?

C: Dizem que isso não pode ser descrito.

KRISHNAMURTI: Certamente que não pode, mas faz parte do pensamento.

C: Para eles não era parte do pensamento. Eles o fizeram real.

KRISHNAMURTI: Como eu noto qualquer coisa? Como me dou conta dela devo reconhecê-la, não é assim? O que é que reconheço?

C: Reconhecer significa ver uma coisa sem o processo do pensamento.

KRISHNAMURTI: Eu reconheço você porque ontem nos encontramos. Se não fosse assim, eu não o reconheceria.

C: Esse não é o processo pelo qual você reconhece o Brahman.

KRISHNAMURTI: Sejamos simples. Falemos logicamente. Eu devo reconhecer uma nova experiência. Qual é o processo de reconhecimento? Tenho que ter conhecido isso antes de agora — como a flor, a flor amarela —; não poderia reconhecê-la sem que a tivesse visto antes. De modo que o reconhecer uma experiência implica que isso foi experimentado anteriormente. Em consequência, o atman já foi experimentado para que possa reconhecê-lo. Portanto, está dentro do campo da experiência. O que é então que eles querem dizer quando afirmam que não se pode experimentá-lo? O fato é que eu sofro. Digo: “quero terminar com o sofrimento”. Por que, pois, introduzo o atman? Isso carece em absoluto de valor. É como um homem que está faminto e você lhe descreve a comida.

C: Estou de acordo em que tudo quanto eles têm dito não ajuda.

KRISHNAMURTI: Ao contrário, eles têm destruído a mente ao introduzir um fator que não ajuda.

C: Sim.

KRISHNAMURTI: Ao contrário, eles têm destruído a mente ao introduzir um fator que não ajuda.

C: Sim.

KRISHNAMURTI: Veja-o. Diga: nunca falarei a respeito do atman, ele não significa absolutamente nada. Como encaro isto então? Como resolverá a mente o fato da dor? Não pode meio do atman. Isso é por demais infantil. Ela não pode resolvê-lo mediante o conhecimento; somente pode fazê-lo olhando a dor, sem o conhecimento.

C: Isto é possível?

KRISHNAMURTI: Não introduza o atman. Prove, examine-o. O outro você não pode examiná-lo. Esqueça-o completamente. O que acontece então? Como olho a dor? Com o conhecimento ou sem ele?

Olho a dor com olhos que estão cheios do passado, e, por conseguinte, traduzo tudo em termos do passado?

B: Não podemos utilizar o passado como um meio para libertar-nos do sofrimento.

KRISHNAMURTI: Quando você disse que vê o que é o sofrimento, está em relação direta com ele, não como observador que observa o sofrimento. Eu olho o sofrimento sem a imagem, a imagem é o passado. A imagem do passado pode ser o atman; desde já, assim é. Examine-o. Examine a imagem como se a examinasse no laboratório. Do mesmo modo você pode examinar isto. O outro não pode examinar. O atman que eu vejo é parte do pensamento. Aí não há exame, absolutamente, aqui sim o há. Quando olho esta dor com a experiência passada, há dualidade. O presente é dor, e olho o presente através do passado; assim, o traduzo em termos do passado. Se a mente parece olhar a dor sem o passado, tem que haver um significado completamente diferente. Portanto, tenho de examiná-lo. Pode a mente olhar sem a recordação do passado? Posso mirar essa flor sem o conhecimento de ontem? Examine-o, verá se pode fazê-lo ou não.

Rishi Vale, 21 de janeiro de 1971
Tradição e Revolução

sábado, 24 de março de 2018

O objeto, o conhecimento e a percepção


O OBJETO, O CONHECIMENTO E A PERCEPÇÃO

Interlocutor A: Penso que deveríamos investigar o problema da percepção e da beleza. Outro dia você disse que a tradição havia ignorado o campo da beleza. Nós temos necessidade de explorar isso.

KRISHNAMURTI: Qual é então o problema? O que é a beleza? Você entende em primeiro lugar a percepção, e depois a beleza? Certamente, não se trata de percepção e beleza, senão de percepção. Qual seria o modo tradicional de se abordar isto?

R: Uma fonte tradicional sustenta que a beleza é o sentimento de felicidade que advém quando se termina o desejo ou a sede de experiências.

KRISHNAMURTI:  Isto é uma teoria ou uma realidade?

R: Quem escreveu isso expressou o que sentia; depois de tudo, faz muito tempo que o escreveu e só restaram fragmentos de seus escritos.

A: Kalidasa disse que a experiência da beleza é nova a cada instante.

R: Tanto na Índia como na Grécia existia este sentimento de que as percepções essenciais são as percepções da verdade, bondade e beleza.

KRISHNAMURTI: Estamos considerando a beleza ou a percepção? Vamos discutir a percepção. Qual é o enfoque tradicional com relação à percepção?

R: Fala-se disso extensamente, e existem muitos pontos de vista contraditórios.

A: A percepção é “pratyaksham”; perceber é ver a natureza mesma das coisas, sua qualidade essencial.

KRISHNAMURTI: Ver a natureza das coisas é percepção, não é assim? Não falo do que se vê senão do ato de ver. Eles falam do ato de ver, e não do que é visto?

R: Eles falam do que é conhecimento válido e do que não é conhecimento válido.

KRISHNAMURTI: Uma coisa é ver e outra coisa é ver algo. De qual vocês estão falando? De ver per si, ou de ver algo?

A: Penso que falamos de ver. Eles se ocupam do perigo constante que implica o ver erroneamente.

KRISHNAMURTI: Não. Nós não estamos falando de ver corretamente ou incorretamente, senão do que é a percepção; não do que você vê — a cadeira, a corda, a serpente.

A: Há diferença entre o ver e o conhecer?

KRISHNAMURTI: A fome é em si mesma, não está relacionada com a comida. Você come porque tem fome, mas a natureza da fome é a fome. O que é para você o ver, o perceber? Não ver o objeto, senão a qualidade da mente que percebe. Ver o objeto com os olhos é uma coisa, ver com o conhecimento é outra. Eu me refiro ao ver em si mesmo. Existe um ver sem o conhecimento, sem o objeto? Eu vejo esse aparador. O vê-lo é com a palavra e com o conhecimento, estando a palavra associada com o aparador. Há um ver sem a imagem, sem o objeto? O ver o objeto através do conhecimento, da imagem, do símbolo, da palavra; e um ver sim o conhecimento e a imagem, sem o objeto...

A: O que é ver sem o objeto? Pode-se sem o conhecimento. Como você disse, há um aparador sem a imagem, mas ainda sabemos que isso é um aparador, o qual significa que é um objeto.

KRISHNAMURTI: Há o pequeno arbusto, e veja-o ou não, crescerá e se converterá em uma árvore. Isso é independente de meu ver. Posso chamá-lo manga e, portanto, relacioná-lo com a espécie “manga”; e a manga se desenvolverá ainda quando eu não o veja.

R: A existência disso não tem relação alguma com o ver...

A: O objeto existe sem nosso ver, mas uma percepção assim, pode existir sem o objeto?

KRISHNAMURTI: Essa árvore continuará existindo.

A: Na meditação budista, eles têm se referido ao céu quando falam da percepção sem o objeto. O céu é um objeto sem dúvida, não é um objeto.

KRISHNAMURTI: O significado que o dicionário dá para “percepção” é: tornar-se consciente de, aprender. Ou seja, que quando você vê o aparador, tem um conceito prévio dele; isso não é percepção. Existe um ver sem o preconceber? Só uma mente que não tem conclusões prévias pode ver. A outra não. Se eu tenho um conhecimento prévio do aparador, a mente o identifica como aparador. Olhar esse aparador sem a prévia acumulação de preconceitos ou cicatrizes psicológicas, é olhar. Se tenho feridas prévias, recordações de dor, prazer, desgosto, não posso ter olhado.

Existe um olhar sem o objeto, sem o conhecimento do objeto? Certamente que existe. Você pode olhar essa árvore sem o conhecimento da árvore, sem a imagem, o símbolo, etc.? Simplesmente olhar.

Uma pessoa veio me ver. Era um diretor de cinema. Contou que havia tomado LSD e que suas reações haviam sido gravadas em cinta magnética. Uma vez ingerida a droga, sentou-se em uma cadeira a aguardar o efeito. Nada ocorreu. Esperou e se moveu um pouco de sua direção. Imediatamente o espaço entre ele e o objeto desapareceu. Antes, o observador tinha espaço entre ele e a coisa que observava — que era uma flor. No momento em que desapareceu o espaço, aquilo não era a flor, era algo extraordinário. Esse foi o efeito da droga. Mas aqui se trata de algo diferente; o observador é possuidor do conhecimento, e é o conhecimento o que reconhece o aparador. O que vê o objeto é o observador.

Vejam em primeiro lugar o que ocorre. O observador com seu conhecimento, reconhece o aparador. O reconhecimento implica um conhecimento prévio; portanto, o observador é o conhecimento como passado. Agora perguntamos: existe a percepção sem o observador, que é conhecimento, o que, por sua vez é passado? A percepção por si mesma, não por algo ou com relação a algo.

R: Se não há conhecimento do passado, não há observador. Se não há observador, não há conhecimento do passado.

KRISHNAMURTI: Portanto, é possível ver sem o observador. Estou dizendo “possível”. A possibilidade se torna uma teoria, de modo que não podemos tratar com teorias, senão ver que o observador é o resíduo do passado e que por isso não pode ver. Só pode fazê-lo através do filtro do passado, por conseguinte, seu ver é parcial. Se há de haver percepção, o observador deve estar ausente. Isso é possível?

R: O que ocorre com um artista? É óbvio que ele percebe com uma percepção que não é a percepção comum que nós temos.

KRISHNAMURTI: Espere um momento. A percepção é intelectual?

R: Não, o intelecto é o passado.

KRISHNAMURTI: Portanto, não se trata do ver de um artista ou de quem não é um artista, senão de ver sem o passado. Esse realmente é o problema. O artista pode ver por um momento sem o passado, mas ele traduz isso, o interpreta.

R: É uma percepção momentânea.

KRISHNAMURTI: Existe um ato de percepção sem o observador? Ato significa ação instantânea, não uma ação contínua. A mesma palavra “ato” quer dizer “fazendo”; não, “tenho feito” ou “farei”.

Por conseguinte, a percepção é uma ação, não em termos de conhecimento; não a ação do ator com seu conhecimento. De modo que os profissionais não estão interessados na ação, não é verdade? Eles se preocupam com o conhecimento e a ação, correto?

R: Não o sei. Há alguns textos nos quais se têm dito que a percepção da beleza tem lugar no momento em que não existe tempo, o nome, a forma e o espaço.

KRISHNAMURTI: Não estamos falando da beleza. A percepção implica ação. Eu conheço a ação que existe quando atua o observador. O observador, havendo aprendido uma linguagem ou uma técnica particular, havendo adquirido conhecimentos, atua.

A: Percepção, significa contato direto entre o órgão dos sentidos e o objeto?

R: Os tradicionalistas falam da percepção imediata e não imediata. A percepção imediata tem lugar através do instrumento, de um intermediário, enquanto que a percepção não imediata não requer do órgão sensorial para ver. Talvez a percepção não imediata esteja mais próxima daquilo ao qual você se refere.

KRISHNAMURTI: Você vê que a percepção que resulta do conhecimento e a ação, é uma ação do passado. Isso é uma coisa. E a ação da percepção é outra coisa diferente.

A: A percepção é ação em si mesma; portanto, aí não há a intervenção do tempo.

KRISHNAMURTI: Chega a seu fim o intervalo de tempo entre a ação e o conhecimento — o conhecimento como observador. Isso que é conhecimento-ação está preso ao tempo, enquanto que o outro não o está. De modo que isto é claro. Que é então, a beleza na relação com a percepção?

R: É o fim do desejo de experiência. Isso é o que dizem os tradicionalistas.

KRISHNAMURTI: A visão da bondade, da beleza, do amor, da verdade... Descarte tudo isso. O que é então a beleza? O que é necessário para a percepção da beleza?

R: Não se trata de mera percepção, porque a percepção pode ser com respeito a tudo, inclusive ao que não é belo.

KRISHNAMURTI: Não introduza o feio. Percepção é ação, perceber é atuar, atenha-se a isso. Estamos falando da beleza; você levantou o que dizem os profissionais. Bem, agora, o que é a beleza? Esqueçamos o que os outros têm dito. Eu quero averiguar o que é a beleza. Dissemos que esse edifício é belo, que esse poema é belo, que essa mulher é bela. A beleza é assim o sentimento de certa qualidade — tornando-se a expressão o meio para reconhecer a beleza. Vejo um edifício e digo: “que maravilhoso!” De modo que reconhecemos a beleza através do objeto.

Existem diversas expressões da beleza. Por meio do objeto reconhecemos o que é a beleza. Agora descarte isso. A beleza não é expressão. A beleza não é o objeto belo. Então, o que é beleza? Ela se encontra no espectador? O espectador é o observador. O observador com seu conhecimento passado, reconhece algo como belo porque sua cultura lhe tem dito que isso é belo, sua cultura o condicionou.

A: A mulher que dá prazer é bela, e quando não dá prazer deixa de ser bela.

KRISHNAMURTI: Eu descarto a expressão, descarto o objeto criado e descarto o percebedor que vê a beleza no objeto. Descarto todas essas coisas. Qual é então a qualidade da mente que as descartou? Tenho descartado tudo o que o homem tem dito a respeito da beleza, porque vejo que ela não está em nada do que se tem dito. O que ocorreu coma  mente que tenha descartado ao pensamento, ao pensamento que já tenha criado o objeto? Qual é a condição da mente que tenha descartado todas as estruturas erguidas pelo homem que tem dito que isto é belo, que isto não é belo?

É óbvio que a mente se tornou muito sensível, porque antes levava uma carga e agora está mais esclarecida. Portanto, é sensível, está alerta, desperta.

R: Você disse que descartou o objeto e o pensamento que tem criado o objeto.

A: O pensamento é conhecimento.

KRISHNAMURTI: O pensamento é conhecimento, o qual tem se acumulado através da cultura que diz que isto é a beleza. O pensamento é a resposta da memória que tem criado o objeto. Tenho descartado tudo isso, a ideia da beleza como verdade, bondade, amor. A percepção disso é ação e a ação mesma é o descartar; não o “eu descarto”, senão o descartar. Portanto, agora a mente é livre. A liberdade não implica a liberdade de algo, senão liberdade. O que ocorre então? A mente é livre, altamente sensível; já não está mais carregada com o passado, o que significa que nessa mente não há, absolutamente, observador, não há um “eu” que observa, porque o “eu” que observa é um assunto muito mas muito limitado. O “eu” é o observador, o “eu” é o passado. Veja o que temos feito. Há o objeto, o conhecimento e a percepção; mediante o conhecimento reconhecemos o objeto. E os fazemos a seguinte pergunta: existe a percepção sem o conhecimento, sem o observador? É assim que descartamos a ambos: o objeto e o conhecimento; no perceber está a ação do descartar. 

E de novo perguntamos: o que é a beleza? Geralmente a beleza está associada com o objeto, o objeto criado pelo pensamento, pelo sentir, o pensar; e descartamos isso. Então, pergunto-me qual é a condição da mente que o tenha descartado. Ela é realmente livre. A liberdade implica uma mente sensível em alto grau. Na ação de descartar, a mente produziu sua própria sensibilidade, e isso significa que nessa atividade não existe um centro. Portanto, é uma sensibilidade sem tempo, sem um centro como observador; isto implica um estado em que a mente é intensamente apaixonada.

R: Quando desaparece o objeto e o conhecimento do objeto, não existe um foco.

KRISHNAMURTI: Não use a palavra “foco”. A mente, ao descartar o que “não é”, é uma mente livre. O ato de perceber o que “não é” liberou a mente, que agora é livre. Não livre de, não está livre do objeto, senão que ela é livre.

A: O ato de perceber esse conhecimento e o ato de descartá-lo, são instantâneos e simultâneos.

KRISHNAMURTI: Isso é liberdade. O ato de perceber tem produzido liberdade, não liberdade de algo.   Quando a mente é sensível não há um centro, nela não há um “eu”; o que há é o total abandono de si mesmo como observador. Então a mente está cheia de energia porque já não está presa na divisão da dor e o prazer, origem do sofrimento. É intensamente apaixonada, e é uma mente assim que pode ver o belo.

Eu vejo algo: vejo que o sofrimento é uma atividade parcial da energia. Vejo que é uma energia fragmentária. A energia é prazer, a energia é dor; ir ao escritório, aprender, implica energia. Os seres humanos têm dividido esta energia em fragmentos. Para eles, tudo é uma parte, um fragmento dos vários outros fragmentos da energia. Quando não há atividade do fragmento, existe uma concentração completa de toda a energia.

Odeio a alguém e amo a alguém. Ambas as coisas são energia, energia fragmentaria atirando em direções opostas, o qual engendra conflito. O sofrimento é uma forma de energia, um fragmento ao qual damos esse nome. É assim que todos nossos modos de viver estão fragmentados. Cada um está em guerra com o outro. Se existe um todo harmônico, essa energia é a paixão. A mente que é livre, sensível, a mente na qual o “eu” como passado, dissolveu-se completamente, é uma mente cheia de energia e paixão. Portanto, isso é beleza.

Mádras, 11 de janeiro de 1971
Tradição e Revolução
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A natureza da exploração



A NATUREZA DA EXPLORAÇÃO

Interlocutor A: Toda a vida temos estado pensando em termos de causa, e temos operado sobre ela. Nossa vida inteira consiste em viver com a causa, encontrar a causa e tratar de controlar a causa. Ainda quando conhecemos a causa, não podemos operar sobre ela. Isto também é parte de nossa experiência. O Buda descobriu a causa do sofrimento e se libertou do sofrimento. Você disse que a causa é o efeito e o efeito é a causa, e também assinala que nesta causa e seu efeito, o tempo é inevitável. Ainda depois de escutar a você, o impacto da causa e a atividade da causa seguem sendo uma parte integrante de nosso pensar. Podemos investigar isto?

KRISHNAMURTI: O que significa “explorar”? Muito mais que o fato da exploração, qual é o estado da mente que explora? Você diz que toda ação tem uma causa e que a causa afeta a ação, e que sem compreender a causa, faça você o que fizer com a ação, isso será sempre limitado. Portanto, há que explorar a causa, compreender a causa e, como consequência, produzir uma mutação na ação. Eu não conheço a causa de minha ação. Podem haver causas óbvias e outras causas que a mente consciente é incapaz de descobrir. Eu posso ver as causas superficiais da ação, mas estas causas superficiais têm raízes muito profundas nos lugares recônditos do próprio ser.

Bem, agora, pode a mente consciente examinar não só o superficial, senão revelar o mais profundo? Pode a mente consciente examinar alguma vez as capas mais ocultas? E qual é o estado da mente que explora? Estas três perguntas são importantes. De outro modo, descobrir a causa não tem sentido algum.

R: Explora-se quando não conhece.

KRISHNAMURTI: Primeiro perguntamos qual é a qualidade da mente que está explorando. O que ela explora, o superficial ou as causas que se acham profundamente ocultas? Portanto, antes de iniciar a exploração, devo descobrir qual é o estado da mente que explora. Você diz que o Buda disse isto, que alguém disse aquilo, etc. Mas, qual é a condição da mente que tem a capacidade de explorar? Como é o “eu” que explora — é vesgo, míope, presbíope? Devo ver a qualidade da mente que olha o carpete antes que eu possa ver algo. É óbvio que essa mente deve ser livre. Você tem uma mente livre de toda conclusão? De outra maneira, não pode explorar.

A: Temos inconfessos postulados, e quando os vemos, nos desprendemos deles.

KRISHNAMURTI: O que você faz é análises. Você analisa passo a passo. Quando analisa, o que ocorre? Há o analisador e a coisa analisada. O analisador deve ter uma visão extremamente clara para analisar, e se esta análise é alguma maneira distorcida, não serve para nada. O processo analítico, intelectual, implica tempo. Enquanto você está indagando através da análise, através do tempo, se introduzem outros fatores que distorcem a causa. De modo que o método de análise é totalmente errôneo. Há que desistir pois da análise.

J: Estou confuso.

KRISHNAMURTI: Sim, que estamos confusos, é um fato. Não sabemos o que fazer, e então começamos a analisar.

A: O processo de análise é para nós algo concreto. Você disse que enquanto se opera sobre a causa, se introduz outros fatores. Significa isso que a análise do problema se torna inconsequente?

KRISHNAMURTI: Penso que todo o processo de análise é errôneo. Você se interessa nesta ação que vai se acumulando através de uma série de exames analíticos, de inferências analíticas nas quais está envolvido o tempo. Para quando encontro o que buscava, estou exausto, morto. É difícil analisar, examinar com a mente consciente, as capas ocultas. Por isso sinto que tudo este processo intelectual é incorreto. Isto que digo não implica de modo algum em falta de respeito.

A: Nós só dispomos de uma ferramenta — o intelecto —, como meio para examinar. O intelecto está capacitado para realiza um exame? O intelecto pode acumular, recordar, prever, analisar. Isso é só um fragmento. Portanto, o exame feito mediante um fragmento só pode produzir uma compreensão fragmentária. Que devemos fazer?

R: Eu não posso fazer nada.

KRISHNAMURTI: A análise não é o caminho.

A: Com qual instrumento exploramos? Nossa razão deve corroborar o que você disse.

J: Você chega até aqui por um caminho que não é o analítico. Vemos a lógica disso.

KRISHNAMURTI: Eu lhes digo que a análise não é o caminho para a compreensão. Dou-lhes as consequências lógicas utilizando a razão. Essas são somente explicações. Por que vocês não veem a verdade de que a análise não é o caminho?

A: Quando você disse: “eu examino e isto é assim”, isso é lógica pura.

KRISHNAMURTI: O que você tem feito é levantar uma conclusão por meio da lógica, mas não estamos falando de lógica. A lógica é que tem nos conduzido à análise. Há alguém que diz que sua lógica é falsa porque está baseada sobre o feito do intelecto, que é parcial. Portanto, o exame parcial, absolutamente, não é exame.

A: É uma análise parcial.

KRISHNAMURTI: É como dizer que se ama a sua esposa parcialmente.

A: O homem, em seu esforço por compreender o meio que o rodeia, a natureza, os fenômenos externos, desenvolveu certos instrumentos, e aqui nós também usamos os mesmos instrumentos. Mas eles não são adequados.

KRISHNAMURTI: Não são adequados. O processo de análise implica tempo e, portanto, tem que ser parcial. O parcial é um produto do intelecto, porque o intelecto é só uma parte da estrutura total.

A: Qual é o instrumento que explora quando se levanta o problema? No momento de levantar problema, temos voltado ao intelecto.

KRISHNAMURTI: Você começou dizendo que o intelecto é o único instrumento apto para o exame. Eu digo que o intelecto é parcial e que, portanto, seu exame será desproporcionado. Em consequência, carece de validade.

A: Está muito claro que o intelecto é parcial e não pode ver, mas por hábito é ele quem começa o trabalho.

KRISHNAMURTI: “A” começou falando de causa-efeito e efeito-causa, que são processos de análise. A análise implica tempo, e em uma análise assim está o analisado e o analisador, que deve estar livre de acumulações passadas, de outro modo, não pode analisar. Como não pode livrar-se do passado, a análise carece de validade. Eu digo que ao ver isso, o assunto está terminado. Portanto, olho para ver se há outro modo.

A: É a forma mais curta de resumi-lo; com lógica, se elimina a lógica.

KRISHNAMURTI: Vejo que a análise não é o caminho. Isso libera a mente de um processo totalmente falso. Desse modo a mente é muito mais vital. Como um homem que caminha levando uma pesada carga, e dela se desembaraça.

A: Mas conosco a carga regressa.

KRISHNAMURTI: No momento em que você percebe que algo é verdadeiro, como isso pode regressar? Quando você vê que uma serpente é perigosa, você não volta à serpente.

A: Nagarjuna disse: “Se você vê que o que estou dizendo é um conceito, você está acabado”.

J: Há algum outro modo?

A: Você disse algo. No momento em que você disse algo, o instrumento deixa de operar porque esse instrumento não vai dizer mais nada.

KRISHNAMURTI: Mas esse instrumento é muito agudo, muito claro; ele se abstém de qualquer ação parcial.

A: Está constantemente atento, pode operar.

KRISHNAMURTI: Não senhor, todo o processo analítico se encerrou.

A: Quando exploramos isto...

KRISHNAMURTI: Não, não estamos explorando. Estou lhe mostrando como explorar. O que você tem feito é utilizar o intelecto, o instrumento parcial, e pensa que essa é a resposta completa. Veja como a mente tem enganado a si mesma, como disse: “tenho analisado tudo isto”. Mas a mente não tem visto que isso é parcial e que, portanto, carece de validade. O intelecto mesmo tem se tornado ineficaz como instrumento apto para analisar. Então, o que ocorre?

A: Quando se chega a este ponto, começa a sentir a necessidade de sustentação, de ajuda, de algo em que possa se apoiar.

KRISHNAMURTI: O fato é que o intelecto é um instrumento incompleto, e não pode compreender um fator total, um movimento total, Em que consiste então o exame? Se o intelecto não pode explorar, qual é o instrumento que pode fazê-lo? O que dizem a respeito disto Sankara, Nagarjuna, Buda? Algum deles nega o intelecto?

A: Eles falam de explorar com ajuda da terra firme.

KRISHNAMURTI: Ou seja, que com vitalidade parcial, com energia parcial, há que explorar a energia total. Como pode ser? Por que eles têm dito isto?

R: O conceito do vedanta é que com o intelecto, não se pode ver. Mas se pode fazê-lo com o Eu ou Atman, que é da mesma natureza da percepção.

A: Como nossas mentes tem sido muito condicionadas, quando encontramos uma sustentação nos aferramos à ela.

KRISHNAMURTI: Tudo quanto temos descoberto é que a análise e o método intelectual são em absoluto a exploração. É como dizer: “penetrarei dentro do túnel, mas só com uma parte de mim”. Qual é a condição da mente se o intelecto não é o instrumento?

A: Quando se descarta por completo o intelecto, então a mente não contém nada que seja do passado.

KRISHNAMURTI: Quem é o que tem descartado o intelecto? Nesse caso, você está outra vez no princípio dualístico.

A: Vemos que o intelecto é parcial.

KRISHNAMURTI: Portanto, nos perguntamos: Qual é a condição da mente que pode explorar? — sendo a mente não só o intelecto, senão as células cerebrais, o biológico, o físico, os nervos, a coisa inteira, o total, o completo. Qual é a qualidade da mente  que pode explorar? Eu vejo que qualquer movimento parcial não é absolutamente ver, e em consequência tenho terminado com isso. Isso se acabou completamente. A mente se pergunta então qual é a natureza da percepção total.E é só uma percepção assim, total, a que pode examinar. E pode ser que ela não tenha necessidade de examinar, absolutamente, porque aquilo que há de ser examinado pertence ao campo parcial — divisão, análise, exploração. Então, pergunto: o que é a percepção total, qual é a qualidade da percepção total?

A: Um movimento, de qualquer tipo que for, não pode ser a percepção total.

KRISHNAMURTI: O que é a percepção total?

R: Parece como se não houvesse instrumento, porque o instrumento pertence sempre a alguma coisa.

KRISHNAMURTI: Qual é a dificuldade? Quando você olha para fora por uma janela e vê esses arbustos, como os olha? Geralmente pensa em algo e o mesmo tempo olha. Eu digo que tem que olhar, isso é tudo. Qual é a dificuldade? Nós nunca olhamos. Se eu olho uma pintura, olho. Não digo que este pintor é fulano de tal, que é melhor que algum outro; não uso a medida, não verbalizo. Acabamos de dizer que o olhar parcial não é, absolutamente, olhar; portanto, a mente terminou com o parcial, e desse modo, quando eu olho, olho realmente.

R: O elemento do hábito é muito forte.

KRISHNAMURTI: Em consequência, a mente que está presa no hábito não pode explorar. Temos que examinar, pois, a mente que está presa no hábito, e não a exploração. Temos que compreender o hábito. Esqueça a exploração, a causalidade, a análise. Esqueça tudo isso. Pode a mente compreender o hábito? Ataquemos esse problema.

A: Qualquer coisa que se vê com o intelecto é parcial.

KRISHNAMURTI: Veja a verdade disso, não a lógica disso. Você pode introduzir a lógica mais tarde. O que você pensa que é a porta, não é a porta. Você não se dirigirá para ela enquanto não a veja e esteja convencido. Mas você não a vê.

R: Que diferença há entre a percepção e o reconhecimento? Para nós a percepção existe só na forma de reconhecimento.

KRISHNAMURTI: Você reconhece a associação. O reconhecimento é parte do hábito de associar. Digo pois, que você pode examinar ou explorar com uma mente acostumada a funcionar no hábito. Portanto, investigue o mecanismo do hábito. Não averigue como examinar, senão investigue o que é esse hábito.

A: Os hábitos são sulcos.

KRISHNAMURTI: Como são formados os hábitos? Essa é a porta, vou passar por ela; por que então há de cair a mente no hábito? O que é o hábito? Como é que a mente cai dentro do hábito? Vou examiná-lo. Nós empregamos a análise, que é parcial, que não é a compreensão total. Apesar de sabermos que carece de validade, continuamos com ela. Por que a mente cai dentro do hábito? Será porque é o modo mais cômodo e fácil de funcionar? Levantar-se às seis, encostar-se às nuvens. Não há fricção, não tenho que pensar a respeito disso.

A: Eu olho uma árvore. Não tenho que pensar sobre ela. Não obstante, a mente diz que é uma árvore.

KRISHNAMURTI: Isso é um hábito. A mente cai em hábito porque é o modo mais fácil de viver, é fácil viver mecanicamente. No sexual e em outro aspecto a vida é fácil de viver dessa maneira. Assim posso viver uma vida sem empenhar-me em nada, sem mudar, porque nisso encontro completa segurança. No hábito não há nenhuma exame, não há busca, não há interrogações.

R: Eu vivo dentro do campo do hábito.

KRISHNAMURTI: Assim é que o hábito só pode funcionar dentro de um campo muito pequeno. Como um professor que é todo um experto em sua especialidade, mas que funciona em um campo muito pequeno: como um monge que opera dentro de uma cela muito pequena. A mente que deseja estar a salvo, em segurança, sem mudanças, uma mente assim vive dentro de padrões. Esse é um exame parcial que não liberta a mente dos padrões. O que deve então fazer?

A: Havendo visto isto, sabendo que a compreensão parcial não é compreensão, como há de libertar-se a mente de todos os seus hábitos?

KRISHNAMURTI: Vou mostrá-lo.

A: Nós temos examinado o hábito, mas a mente não tem se libertado dele.

KRISHNAMURTI: Você jamais voltará para a análise do hábito. Já não voltará a examinar as causas do hábito. Portanto, a mente está livre da carga da análise, que faz parte do hábito. Assim que você se livra disso.

R: Sim, sim...

KRISHNAMURTI: Não. Não só verbalmente. Isso deve morrer. O hábito não é somente sintomático, senão que é algo psicossomático. Quando temos examinado o hábito tal como o temos feito, isso está acabado.

A: Não estamos livres do hábito.

KRISHNAMURTI: Porque você segue insistindo em que a porta está aí. Quando começamos a dizer “eu sei”, há nisso certo sentimento de arrogância. Você não diz: “quero investigar”. O que é então a percepção total quando a mente está livre do hábito? O hábito implica conclusões, fórmulas, ideias, princípios... São todos hábitos. E o hábito é a essência do observador.

R: É tudo quanto nós conhecemos do “eu”.

KRISHNAMURTI: Para investigar isto, recorremos a um livro. É assim onde tem lugar o dano, o danos que as outras pessoas tem sancionado, os Sankaras, Budas, e todos os demais. “Eu prefiro a este”, “eu prefiro a este outro”, e assim sucessivamente. Não me desprenderei disso porque essa é minha vaidade. Você conhece a caricatura intitulada: “meu guru está mais iluminado do que o seu”. Isso é tudo o que há a respeito. Portanto, senhor, o que se necessita é de humildade. Eu não sei absolutamente nada e não vou repetir uma só palavra a respeito de qualquer coisa que não tenha descoberto por mim mesmo. Sei que esse não é o caminho. Não quero saber nada mais. Isso é tudo. A porta que eu pensava que era real, não é a porta. O que ocorre depois disso? Já não me movo nessa direção, senão que vou investigar.

Madrás, 7 de janeiro de 1971
Tradição e Revolução

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill