A mente repleta de conhecimentos, crenças, teorias, não está, por certo, livre para investigar o verdadeiro. Mas, se pudermos compreender e dissolver o condicionamento, os preconceitos e dogmas que nos estão enevoando a mente, talvez então esta se torne livre para descobrir, pois, assim, a própria verdade atuará sobre o problema, em vez de ficar a mente lutando por uma solução por meio de seu próprio condicionamento — que não pode leva-la a parte alguma.
Eis porque acho muito importante saber escutar. Pouquíssimos de nós somos capazes de escutar verdadeiramente; pouquíssimos dentre nós ouvimos ou vemos as coisas com verdadeira clareza, porque tudo o que observamos ou ouvimos é imediatamente interpretado, traduzido pela mente, de acordo com nossas próprias ideias e peculiar temperamento. Pensamos estar compreendendo, mas não estamos, por certo. De tal maneira estamos sendo distraídos por nossas opiniões e conhecimentos, pelo aprovar ou reprovar, que nunca vemos o problema como ele de fato é. Mas, se pudermos desembaraçar-nos de nossos peculiares pontos-de-vista e, escutando, seguindo o funcionamento da mente, perceber o fato tal qual é, acho que veremos então manifestar-se um processo completamente diferente, o qual nos habilitará a considerar os nossos problemas com plena liberdade e clareza.
(...) Por certo, só a mente que está livre, por inteiro, de toda e qualquer autoridade, consciente ou inconsciente, é capaz de descobrir se existe uma realidade que transcende as meras concepções mentais. A mente livre é aquela que se libertou de toda crença, de todos os padrões de pensamento, conscientes ou inconscientes. Na atualidade, todo o nosso pensar resulta de nosso especial condicionamento, nossas experiências, lembranças, temores, esperanças, acumulados através do tempo. Em tais condições, é bem óbvio que a mente não está livre. Só existe liberdade quando o processo do pensamento, no seu todo, foi compreendido e transcendido; e só então se torna possível o surgir de uma mente nova, regenerada.
Assim sendo, pode a mente libertar-se de seu próprio condicionamento, para considerar de maneira nova os seus problemas? Pode ser livre a mente? — não como cristã, hinduísta, sueca, comunista ou seja o que for, nem puramente no sentido de abandonar um dado ideal, crença ou hábito, porém livre para descobrir o que significa transcender todas as influências e contradições, mentais e sociais.
Como está reagindo agora a mente? Reagir, concordando ou discordando, é de todo vão, uma vez que tal reação é produzida por nosso próprio fundo, nosso acervo de saber e crença. Mas, “experimentar” o que está se passando em nós mesmos, isso parece-me verdadeiramente proveitoso. Ora, pode-se investigar inteligentemente, pacientemente, para descobrir se há alguma possibilidade, de libertarmos a nossa mente de todo parcialismo, toda influência, habilitando-a, assim, a transcender suas próprias atividades? Do contrário, nossa vida será sempre muito superficial, vazia — e talvez quase todos estejamos nesse caso. Temos um enorme acervo de informações, conhecimentos, inumeráveis crenças, credos, dogmas, mas na realidade somos muito superficiais e infelizes.
(...) A mente agora é estéril, não criadora, no lídimo sentido da palavra, não é exato? Ela é uma coisa artificial, constituída das acumulações da memória. Enquanto existir inveja, ambição, busca interesseira, não pode haver o estado criador. Parece-me, por conseguinte, que o mais que podemos fazer é compreendermos a nós mesmos, as operações de nossa mente; e esse processo de compreensão representa uma volumosa tarefa. Não é coisa que se faz esporadicamente, que se deixa para mais tarde, para amanhã, mas deve ser feita todos os dias, a cada momento, continuamente. Compreender a si mesmo é estar cônscio, espontaneamente, naturalmente, dos movimentos do pensar. Começa-se, assim, a perceber todos os ocultos motivos e intenções que nutrem os nossos pensamentos, e resulta, daí, a libertação da mente dos processos que a tolhem e limitam. Ela está então tranquila; nessa tranquilidade pode manifestar-se, de modo espontâneo, algo que não é produto da mente.
(...)Pergunta: Dizeis que, para se operar a transformação, precisamos compreender todo o nosso fundo. Isso quer dizer que precisamos compreender a reencarnação e Karma?
Krishnamurti: Karma é uma palavra sânscrita, que significa ação. E, quanto à reencarnação, sabeis o que significa!
Acho bem óbvio que a mente que crê em alguma coisa, que se mantém apegada a algum desejo psicológico ou esperança resultante do medo, vive sempre presa nesse padrão da crença; e a luta que se trava dentro do padrão de qualquer crença não significa de modo nenhum transformação. O homem que simplesmente crê na reencarnação não compreendeu o problema da morte e do sofrimento e, porque crê em tal teoria, está tentando fugir ao fato da morte.
A palavra karma implica numerosos problemas. Precisamos compreender os motivos de nossas ações — as influências, as compulsões, as causas produtoras da ação. Tudo isso, por certo, faz parte do fundo que precisamos compreender; e a crença na reencarnação faz também parte desse fundo. A mente que crê é incapaz de compreensão, porquanto a crença, evidentemente, é uma fuga à realidade.
(...)Pergunta: Li um livro americano que parece provar convincentemente, por meio da hipnose, que a reencarnação é um fato. Que comentais sobre isso?
Krishnamurti: Aí está uma questão um tanto complexa, e acho necessária examiná-la convenientemente. Todos sabemos que existe a morte. O organismo físico tem de acabar-se, uma vez que se consome pelo uso; e desejamos saber se há continuidade após a morte. Todas as coisas que conhecemos e experimentamos tem fim e, por essa razão, indagamos o que será de nós depois. Este problema surge em todo mundo. No Oriente, a reencarnação é aceita como crença, e o autor desta pergunta diz que se escreveu um livro que prova, por meio da hipnose, que uma pessoa teve vidas anteriores; e queremos, portanto, saber se a reencarnação é um fato. Não sei se credes que o pensamento é independente do corpo, independente do organismo físico. Temos um organismo, reações nervosas e pensamentos; e, assim, perguntamos se o pensamento continua após a morte.
Ora, que acontece quando fazemos tal pergunta? O fato verdadeiro é que desejamos continuar a existir, não é exato? — ou, também, achamos preferível o aniquilamento. Tanto num como noutro caso, a mente selecionou a teoria que melhor lhe convém. Se credes, ou não, na reencarnação, isso pouco importa; mas pode-se descobrir a verdade a esse respeito, a verdade a respeito da morte? A todos nos agrada pensar que existe uma alma eterna, e aceitamos várias crenças que nos ensinam que a alma é uma entidade espiritual que transcende o organismo físico. Mas a crença numa ideia, por mais confortante e animadora que seja, não nos dá perfeita compreensão da morte. Sem dúvida, a morte é algo totalmente desconhecido, algo completamente novo, e, por mais ansiosamente que investiguemos esta questão, não encontraremos resposta satisfatória. Tudo o que conhecemos está encerrado nos limites do tempo, e o que somos é apenas uma acumulação de memórias e experiências do passado. Determinamos nossa própria entidade por meio da memória — memória de "minha casa", "meu nome", "minha família", "meu saber", "minha pátria" — e queremos que esse "eu" tenha continuidade no futuro. Ou, ainda, dizemos: "A morte é o fim de tudo" — o que também não representa solução alguma.
Pois bem. Pode-se descobrir a verdade acerca da morte? Sabe-se que buscamos a continuidade do "eu". O pensamento vive numa perpétua busca de permanência e, por essa razão, dizemos que deve haver alguma forma de continuidade. O pensamento é contínuo, não? E enquanto existir o desejo de continuidade, fortaleceremos cada vez mais a ideia do "eu" e de "minha própria importância". Pode ser que o pensamento continue, assuma outra forma, e a isso se chama reencarnação. Mas, aquilo que tem continuidade poderá conhecer o imensurável, o atemporal? Poderá ser criador? Ora, por certo Deus, a Verdade, ou como o chamardes, não pode ser encontrado nos limites do tempo. Deve ser algo inteiramente novo, e não coisa criada pelas nossas próprias esperanças e temores. E, todavia, a mente deseja a permanência, não é verdade? Por conseguinte, diz: "Deus é permanente" e "eu terei continuidade depois desta vida".
Como vedes, o problema não é a reencarnação, mas, sim, o fato de buscarmos a permanência, nesta vida e depois dela. Enquanto a mente buscar a segurança, em qualquer sentido que seja, através do nome, da família, da posição, da virtude, etc., continuará a existir o sofrimento. Só a mente que morre dia a dia, de momento a momento, para tudo o que acumulou — só essa mente pode conhecer a verdade. E, então, talvez descubramos que não existe divisão entre a vida e a morte, porém, unicamente, um estado todo diferente, em que o tempo, tal como o conhecemos, não existe.
(...)Pergunta: Se alguém deseja encontrar a liberdade, na direção por vós indicada, não é também necessário que tal pessoa renuncie à igreja, ou a quaisquer organizações religiosas em que se interessa?
Krishnamurti: Se uma pessoa deseja libertar-se, deve abandonar, renunciar, ou colocar de lado organizações que exigem crença? É claro que deve. Se uma pessoa pertence a uma organização que exige crença, que se baseia no medo, no dogma, nesse caso sua mente é escrava de tal organização e não pode ser livre. Só a mente que é livre — e este é um problema verdadeiramente complexo e difícil — pode descobrir se existe uma realidade, se há Deus, e não a mente que crê em Deus.
Ora, porque nos apegamos aos dogmas, às crenças, aos rituais impostos pelas religiões? Se compreendermos isso, então todas essas coisas cairão por si, como as folhas no outono, sem esforço algum.
Porque pertenceis a uma dada organização religiosa? Necessitamos, é óbvio, de organizações — para entrega de correspondência, fornecimento de leite etc.; mas por que razão a mente se apega a dogmas? Não é porque, no dogma, na crença, ela encontra segurança, apoio? Porque vive incerta, temerosa, insegura, a mente projeta uma crença ou se apega a um dogma oferecido por tal igreja ou tal organização. A mente se apega ao dogma, à crença, como meio de fuga à sua própria incerteza, sua insuficiência interior. Procura encher o seu vazio com dogmas, com crenças, superstições, rituais. Podeis renunciar a uma crença ou abandonar um dogma; mas, enquanto não compreenderdes vossa pobreza, vossa insuficiência interior, enquanto a mente não tiver compreendido o seu próprio vazio, o mero renunciar à religião organizada é sem significação. Só terá significação quando compreenderdes o elemento interior que vos força a apegar-vos à conclusão, à crença. Eis porque é tão importante conhecermos a nós mesmos, sabermos porque cremos, porque rejeitamos, porque renunciamos. Só no autoconhecimento existe a sabedoria — não nas crenças, não nos livros, porém na integral compreensão da estrutura de nossa mente. Só a mente livre pode compreender o que se encontra além do tempo.
Krishnamurti — Verdade Libertadora — ICK