O indivíduo é essencialmente o coletivo, e a sociedade foi criada pelo indivíduo. O indivíduo e a sociedade estão inter-relacionados, não é verdade? Eles não existem separadamente. O indivíduo ergue a estrutura social, e a sociedade, ou o ambiente, molda o indivíduo. Embora o ambiente condicione o indivíduo, este sempre pode libertar-se romper as cadeias que o prendem ao seu fundo. O indivíduo é o criador do próprio ambiente de que se tornou escravo; mas ele tem também o poder de libertar-se e criar um ambiente que não lhe embote a mente, o espírito. O indivíduo só é importante neste sentido, isto é, ele tem a capacidade de libertar-se de seu condicionamento e de compreender a realidade. A individualidade, que é cruel em razão de seu condicionamento, funda uma sociedade cujos fundamentos se assentam na violência e no antagonismo. O indivíduo só existe em relação; de outro modo, ele não existe. E é a falta de compreensão dessa relação, que está gerando conflito e confusão. Se o indivíduo não compreende a sua relação com pessoas, com a propriedade e com as ideias ou crenças, a mera imposição de um padrão, coletivo ou de outra ordem, é contraproducente. Para se tornar efetiva a imposição de um novo padrão, requer-se a chamada ação das massas. Mas o novo padrão é invenção de uns poucos indivíduos, sendo a “massa” hipnotizada pelos mais novos chavões, pelas promessas de uma nova Utopia. A “massa” é a mesma de antes, só que agora tem novos dirigentes, novas frases, novos sacerdotes, novas doutrinas. Essa “massa” é formada por vós e por mim, é composta de indivíduos; a massa é fictícia, é um termo conveniente ao jogo do explorador e do político. Os muitos são impelidos à ação, à guerra, etc., pelos poucos; e os poucos representam os desejos e os impulsos dos muitos. É a transformação do indivíduo que tem a máxima importância, mas não de acordo com um padrão qualquer. Os padrões condicionam sempre, e uma entidade condicionada está sempre em conflito, dentro de si mesma e, por conseguinte, com a sociedade. É relativamente fácil adotar um novo padrão de condicionamento, para substituir o velho; mas quanto ao indivíduo libertar-se de todos os condicionamentos, isso é muito diferente.
(...) Nossa moral atual está baseada no passado ou no futuro, no tradicional ou no que deveria ser. O que deveria ser é o ideal, em oposição ao que foi; é o futuro em conflito com o passado. A não-violência é o ideal, o que deveria ser; e o que foi é a violência. O que foi “projeta” o que “deveria ser”; o ideal é de “fabricação doméstica”, sendo “projetado” pelo seu próprio oposto — o real. A antítese é o prolongamento da tese; o oposto contém o elemento do oposto respectivo. Sendo violenta, a mente projeta o seu oposto, o ideal de não-violência. Diz-se que o ideal ajuda a dominar o seu oposto; mas é exato? O ideal não é uma maneira de evitar, fugir ao que foi ou ao que é? O conflito entre o real e o ideal é evidentemente um meio de adiar a compreensão do real, e esse conflito apenas cria um outro problema, que ajuda esconder o problema imediato. O ideal é uma maravilhosa e respeitável fuga ao real. O ideal da não-violência, tal como o da Utopia coletiva, é fictício; o ideal, o que deveria ser, ajuda a esconder e a evitar o que é. A luta pelo ideal é busca de recompensa. Podeis abster-vos de buscar recompensas mundanas, achando tal desejo estúpido e primitivo, como de fato é; mas a vossa luta pelo ideal representa uma busca de recompensa, num plano diferente, o que é igualmente estúpido. O ideal é uma compensação, um estado fictício conjurado pela mente. Sendo violenta, “separativa” e ambiciosa, a mente projeta uma compensação agradável, a ficção a que chama ideal, Utopia, ou futuro, e se esforça para alcança-la. Esse próprio esforço representa conflito, mas é também uma maneira conveniente de adiar a compreendo são do real. O ideal, o que deveria ser, não ajuda a compreender o que é; ao contrário, impede-lhe a compreensão.
(...) A verdade não é opinião; a verdade não está na dependência de nenhum líder ou instrutor. Se ficamos a pesar opiniões, estamos impedindo a percepção da verdade. Ou o ideal é uma ficção, de “fabricação doméstica”, que contém o seu próprio oposto, ou não é. Não há outra alternativa. A percepção da verdade não depende de nenhum instrutor; tende de percebê-la por vós mesmos.
(...) A compreensão de o que é só se torna possível quando o ideal, o que deveria ser, foi apagado da mente; isto é, quando o falso foi percebido como falso. O que deveria ser é também o que não deveria ser. Quando a mente se abeira do real com uma compreensão, positiva ou negativa, não pode haver compreensão do real. Para compreender o real, é preciso estar em comunhão direta com ele; não pode existir relação com ele, através da cortina do ideal ou através da cortina do passado, da tradição, da experiência. Estar livre da maneira errada de começar é o único problema. Isto significa, com efeito, que se precisa compreender o condicionamento, que é a mente. O problema é a própria mente, e não os problemas que ela própria cria; a solução dos problemas criados pela mente não é mais do que uma conciliação dos efeitos, e isso só pode ocasionar mais confusão e ilusão.
(...) O movimento da mente é o movimento da vida — não da vida real, mas da vida real de dores e prazeres, de ilusão e claridade, arrogância e afetação de humildade. Compreender a mente é estar cônscio do desejo e do medo.
(...) Para conhecerdes a mente, não deveis estar cônscio de suas atividades? A mente é só experiência, não apenas a experiência imediata mas também a experiência acumulada. A mente é o passado reagindo ao presente, o que vai constituir o futuro. O processo total da mente precisa ser compreendido.
“Por onde começar?”
Pelo único começo: as relações. Relações é vida; viver é estar em relação. Só no espelho das relações pode a mente ser compreendida, e deveis começar por olhar-vos nesse espelho.
(...) As relações nunca são limitadas, insignificantes. Com um só ou com muitos, as relações são um processo complexo, de que nos podemos abeirar com uma mente estreita ou com uma mente livre e aberta. Aqui, mais uma vez, a maneira de começar depende do estado da mente. Se não começardes por vós mesmo, por onde ireis começar? Ainda que comeceis com uma atividade periférica, estais em relação com o centro dessa atividade, ou seja a mente. Onde quer que comeceis, perto ou longe, vós estais sempre presente. Sem compreensão de vós mesmos, tudo o que fizerdes criará inevitavelmente confusão e conflito. O começo é o fim.
“Peregrinei por terras longínquas, vi e pratiquei muitas coisas, sofri e ri como tantos outros, para afinal retornar a mim mesmo. Sou como aquele sannyasi que se pôs a caminho em busca da Verdade. Durante anos e anos andou de instrutor em instrutor, cada um dos quais lhe indicava um caminho diferente. Por fim, cansado, regressou ao lar e aí, na sua própria casa, achou a joia que procurava! Que insensatos que somos, a esquadrinhar o Universo, em busca daquela felicidade que só pode ser achada em nossos corações, depois de expurgada a mente de todas as atividades. Tendes perfeita razão. Começo no ponto de onde parti. Começo com o que sou.”
Krishnamurti – Reflexões sobre a vidaões sobre a vida