Que entendemos por pensamento? O pensador é diferente do pensamento? O que medita é diferente da sua meditação? O observador está separado d coisa observada? A qualidade é diferente da pessoa? Assim, antes que possa ser controlado o pensamento, qualquer que ele seja, devemos compreender o processo de pensar e aquele que pensa, e verificar se constituem dois processos separados, ou se são um processo unitário.
O pensador existe quando deixa de pensar? Quando não há pensamentos existe pensador? Evidentemente, se não temos pensamentos, não há pensador. Por que então a separação entre pensador e pensamento? Na maioria de nós existe esta separação. Por quê? É uma coisa real, verdadeira, ou se trata de coisa meramente fictícia, criada pela mente?
(...) Não estão crentes de que os seus pensamentos são separados de vocês? Esta pergunta implica — não é verdade? — que há o que controla e há a coisa controlada, o observador e a coisa observada. Pois bem, sabemos se esse processo é um fato real, isto é, se há observador e coisa observada, controlador e coisa controlada? É real esta separação? Só é real no sentido de que nós a aceitamos. Mas não é uma armadilha da mente?(...) Quase todos vocês acreditam que o pensador é separado, o “eu” superior, “Atman”, o observador, que domina o “eu” inferior, etc. Por que existe esta separação? Esta separação não está também dentro dos domínios da mente? Quando dizem que o pensador é o “Atman”, o observador, e que os pensamentos estão separados dele, isto de certo também está no campo mental. Ora, o fato não é que a mente, o pensador, se separou dos seus pensamentos para dar permanência a si mesma? Porque assim o pensador pode sempre modificar os seus pensamentos, dar-lhes nova uma moldura, enquanto ele se conserva separado, dando assim permanência a si mesmo. Mas, sem o pensamento, não existe o pensador. Pode separar-se dos seus pensamentos, mas se deixa de pensar, deixa também de existir, não é verdade? Assim, esta separação do pensador dos seus pensamentos é uma armadilha do pensador para dar segurança e permanência a si próprio. Isto é, a mente percebe que os pensamentos são transitórios e adota, por esse motivo, a astuciosa armadilha de dizer que ela é o pensador, independente dos seus pensamentos, que ela é o “Atman”, o observador, separado da ação, do pensamento. No entanto, se observarem o processo com muita atenção, pondo de lado todo conhecimento de vocês adquirido de outros, por maiores que sejam esses outros, verão que o observador é a coisa observada, que o pensador é o pensamento. Não há pensador separado do pensamento; por mais ampla, por mais profunda e extensa que seja a separação, a muralha por ele edificada entre si e os seus pensamentos, o pensador fica sempre dentro do campo do seu pensar. Por conseguinte, o pensador é o pensamento; e assim, quando perguntam, “como se pode controlar o pensamento?” vocês fazem a pergunta errada. Quando o pensador começa a controlar os seus pensamentos, ele o faz apenas para dar continuidade a si próprio, ou porque acha que os seus pensamentos lhe são dolorosos demais. Deseja, por isso, modificar os seus pensamentos, ficando ele permanente, atrás da cortina de palavras e pensamentos. Uma vez que admitam isso, que é um fato verdadeiro, as suas disciplinas, suas buscas do superior, as suas meditações, os seus controles, tudo se desfaz em nada. Isto é, se quiserem olhar para o fato evidente de que o pensador é o pensamento e se ficarem perfeitamente cônscios desse fato, então não mais pensarão em termos de dominar, modificar, controlar ou canalizar os seus pensamentos. Então o pensamento se torna importante e não o pensador. O que tem peso então não é o controlador, nem a maneira de controlar, mas o pensamento, que é a coisa controlada, se torna importante por si mesmo. A compreensão do processo do pensamento é o começo da meditação, que é autoconhecimento. Sem autoconhecimento não há meditação; e a meditação do coração é compreensão. Se querem compreender, não devem estar ligados a crença alguma. (...) só podem estar livres quando percebem a verdade sobre a falsidade da crença de que o pensador é separado dos seus pensamentos. Isto é, quando se percebe a verdade acerca do falso, ficamos livres do falso. Por muito tempo temos admitido a ideia de que o o pensador é separado dos pensamentos; e vemos agora que a separação é falsa. Percebendo a verdade acerca do falso, vocês ficam livres do falso, com tudo o que ele implica — disciplinar, controlar, dirigir, canalizar o pensamento, o colocar o pensamento num determinado molde de ação. Quando estamos fazendo essas coisas estamos ainda dando importância ao pensador; e por isso o pensador e o pensamento continuam separados, o que é falso. Mas se percebem essa falsidade desfaz-se a separação e resta apenas o pensamento. Podem então investigar o pensamento, a mente então é apenas a máquina do processo do pensamento, e o pensante não está separado do pensamento.
Ora bem, a mente é o aparelho que registra, que experimenta, e, portanto, a mente é memória, memória sensorial; porque a mente é resultado dos sentidos. Logo, o pensamento, que é produto da mente, é sensorial; sem dúvida o pensamento é resultado da sensação. A mente é o aparelho que registra, que acumula, a consciência que experimenta, que dá nome, que registra. Isto é, a mente experimenta, depois dá nome à experiência, como agradável ou desagradável, e depois a registra, guarda-a no arquivo que é a memória. Essa memória atende a um novo estímulo. Cada estímulo é sempre novo, e a memória, que é um mero registro do passado, atende ao novo. Esse encontro do novo com o velho é chamado experiência. Ora, a memória não têm vida, por si. Ela só tem vida, só é vitalizada quando vai ao encontro do novo. Por conseguinte, o novo está sempre dando vida ao velho. Isto é, quando a memória atende ao estímulo, que é sempre novo, ela se verifica, se fortalece com essa experiência. Examinem a própria memória de vocês, e verão que ela não tem vida, por si; mas quando a memória se encontra com o novo e traduz o novo de acordo com o seu condicionamento, ela é então revitalizada. Assim, a memória só tem vida quando se encontra com o novo, revitalizando-se e fortalecendo-se continuamente. Essa revivificação da memória se chamar pensar.
(...)Vemos, pois, que o pensar é sempre reação condicionada, que o pensar é processo de reação a estímulo. O desafio é sempre novo; mas o pensar, que é uma reação derivada da memória, é sempre velho, revitalizado.(...) Por isso, o pensar nunca pode ser criador, porque é sempre reação da memória. (...) Só quando atendemos o novo como novo, temos o viver criador. A mente é a máquina que registra, que acumula lembranças; e enquanto a memória continuar a ser revitalizada pelo desafio, subsistirá o processo de pensamento. Mas se cada pensamento for observado, sentido, examinado integralmente, e perfeitamente compreendido, verão então como a memória começa a extinguir-se. Estamos falando da memória psicológica, não da memória fatual.(...) Acompanhar até o fim um pensamento ou sentimento, é dificílimo; porque quando queremos acompanhar um pensamento até o fim, outros pensamentos se insinuam. E ficamos a dar voltas, correndo atrás de pensamentos sucessivos, inutilmente, por causa da rapidez do pensamento.(...) Quando se acompanha cada pensamento até o fim, e a mente fica despida da memória, ela se torna tranquila, sem problema nenhum. Por quê? Porque o criador de problemas, que é a memória, desapareceu; e nessa tranquilidade, que é absoluta, desponta a realidade. (...) Quando o pensador se separa dos seus pensamentos e procura controla-los, está caminhando para a ilusão; ao passo que perceber a verdade no falso nos liberta do falso. Resta então apenas o pensamento e quando há compreensão perfeita do pensamento, vem a tranquilidade. Nessa tranquilidade há criação; isto é, quando a mente deixa de criar, há a criação que está fora do tempo, que é imensurável, que é o real.
Jiddu Krishnamurti — 7 de março de 1948 — Da insatisfação à felicidade