É possível
viver sem qualquer condenação?
PERGUNTA:
Afirmam alguns filósofos que a vida tem finalidade e significação; outros,
porém, sustentam que a vida é puramente acidental e absurda. Que dizeis vós?
Negais o valor dos alvos, dos ideais e intenções; mas, sem isso, tem a vida
alguma significação?
KRISHNAMURTI: Devemos atribuir tanta importância ao
que dizem os filósofos? Certos intelectuais dizem que a vida tem finalidade,
significação, enquanto outros dizem que ela é acidental e absurda. Ora, cada um
a seu modo, negativa ou positivamente, tanto uns como outros estão conferindo
significação à vida, não achais? Um afirma, outro nega, mas essencialmente os
dois são iguais. Isso é perfeitamente claro.
Pois bem. Quando perseguis um ideal, um objetivo, ou
indagais qual é a finalidade da vida, tal indagação ou busca está baseada no
desejo de dar significação à vida, não está? Não sei se estais seguindo isto.
Minha vida é insignificante — suponhamos — e trato
pois de dar-lhe significação. Pergunto: “Qual é a finalidade da vida?” —
porque, se a vida tem alguma finalidade, poderei então viver em harmonia com
essa finalidade. E, assim, invento ou imagino uma finalidade, ou, pela leitura,
pela investigação, pela busca, encontro uma finalidade; estou, por conseguinte,
dando significação à vida. Como o intelectual, à sua maneira, dá significação à
vida, negando ou afirmando que ela tem finalidade e um significado, nós também
atribuímos significação à vida por meio de nossos ideais, da busca de um alvo,
de Deus, de Amor, da Verdade. E isso, com efeito, significa que, se não damos
significação à vida, nossa existência não terá para nós importância alguma. O
viver não nos parece tão bom como desejaríamos que fosse, e por isso desejamos
dar significação à vida. Não sei se estais percebendo isto.
Qual é a significação de nossa vida, da vossa e da
minha, independentemente dos filósofos? Ela tem alguma significação, ou lhe
estamos dando significação pela crença, tal como faz o intelectual que se torna
católico, isto ou aquilo, encontrando assim um abrigo? Como seu intelecto
reduziu tudo a cacos, ele se vê agora sozinho, desamparado, etc., e não podendo
suportar tal estado, necessita de uma crença, no catolicismo, no comunismo, em
qualquer coisa que lhe dê alento e dê significação à sua vida.
Agora, pergunto a mim, mesmo: Por que razão queremos
uma finalidade? E que significa viver sem finalidade alguma? Compreendeis?
Sendo a nossa vida vazia, atribulada, triste, precisamos dar-lhe uma
significação. E há possibilidade de ficarmos apercebidos de nosso vazio, nossa
solidão, nossos sofrimentos, todas as tribulações e conflito de nossa
existência, sem darmos, artificialmente, um significado à vida? Podemos estar apercebidos
dessa coisa extraordinária que chamamos a vida — que significa ganhar o próprio
sustento, que significa inveja, ambições e desenganos — estar apercebidos,
simplesmente, de tudo isso, sem condenação ou justificação, e passar além? A
mim me parece que, enquanto estivermos procurando ou dando uma significação à
vida, estaremos perdendo algo de extraordinariamente vital. O mesmo acontece
com o homem que quer achar a significação da morte e está constantemente
empenhado em racionalizá-la, explicá-la, e impedido, assim, de “experimentar” o
que é a morte. Apreciaremos este ponto noutra palestra.
Não nos estamos esforçando, todos nós, para acharmos
uma razão para nossa existência? Quando amamos, temos uma razão para isso? Ou é
o amor o único estado em que “não há razão de espécie alguma, nem explicação,
nem esforço, nem luta para ser alguma coisa?” Talvez desconheçamos esse estado.
E, desconhecendo-o, tentamos imaginá-lo, dar uma significação à vida; mas, como
nossa mente está condicionada, e portanto é limitada, superficial, a
significação que damos à vida, os nossos deuses, os nossos ritos, os nossos
esforços, tudo é também medíocre.
Não importa, pois, descubramos por nós mesmos qual a
significação que damos à vida, se o fazemos? Não há dúvida de que os intentos,
os alvos, os Mestres, os deuses, as crenças, os fins em que buscamos posso
preenchimento, são todos inventados pela mente, todos produtos de nosso próprio
condicionamento; e, compreendendo-se isto, não é importante “descondicionar” a
mente? Quando a mente não está mais condicionada e, por conseguinte, não está
dando significação à vida, a vida se torna então uma coisa extraordinária, uma
coisa totalmente diferente da estrutura construída pela mente. Mas, primeiro
que tudo, precisamos conhecer o nosso condicionamento, não é verdade? E podemos conhecer nosso condicionamento,
nossas limitações, nosso fundo, sem procurar forçá-lo ou analisá-lo, sublimá-lo
ou reprimi-lo? Pois tal mecanismo implica a entidade que observa e se
separa da coisa observada, não é exato? Enquanto houver observador e coisa
observada, o condicionamento tem que continuar. Por mais que o observador, o
pensador, o censor lute para livrar-se de seu condicionamento, continuará preso
nesse condicionamento, uma vez que a divisão entre “pensador” e “pensamento”,
“experimentador” e “experiência”, é o próprio fator que perpetua o
condicionamento; e é extremamente difícil fazer desaparecer tal divisão, uma
vez que aí está presente todo o problema da vontade.
Nossa civilização se baseia na vontade, a vontade de
ser, de “vir a ser”, alcançar, realizar; por esta razão, está sempre presente
em nós a entidade que quer modificar, controlar, alterar aquilo que observa.
Mas há diferença entre aquilo que essa entidade observa, e ela própria, ou
ambos são uma só entidade? Aqui está uma coisa que não é para se aceitar
irrefletidamente. Ela tem de ser pensada, examinada com muita paciência,
delicadeza, cautela, de maneira que a mente não fique mais separada da coisa em
que pensa, e o observador e a coisa observada sejam psicologicamente uma só
entidade. Enquanto eu continuar psicologicamente separado daquilo que em mim
percebo como “inveja”, lutarei para dominar essa inveja; mas esse “eu”, essa
entidade que faz esforço para dominar a inveja, é diferente da inveja? Ou são
ambos a mesma coisa, e o “eu” só se separou da inveja para dominá-la, porque a
inveja é um sentimento doloroso, e por várias outras razões? Mas, justamente
esta separação é a causa da inveja.
Talvez não estejais habituados a esse modo de
pensar, e o acheis um pouco abstrato. Mas a mente invejosa nunca pode estar
tranquila, porque está sempre comparando, sempre procurando “vir a ser” algo
que ela não é; e se nos decidimos a penetrar esse problema da inveja,
radicalmente, profundamente, toparemos inevitavelmente com este problema, ou
seja se a entidade que deseja libertar-se da inveja não é a própria inveja. Ao
perceber-se que é a própria inveja que deseja libertar-se da inveja fica então
a mente cônscia desse sentimento chamado inveja, sem nenhuma ideia de
condená-lo ou libertar-se dele. E, daí, surge outro problema: Há sentimento, se
não há verbalização? Pois a própria palavra “inveja” é condenatória, não é
verdade? Estou dizendo algo demasiado muito súbito?
Existe sentimento de inveja, se não dou nome a tal
sentimento? Pelo próprio fato de lhe dar nome, não estou nutrindo o sentimento?
O sentimento e o dar-lhe nome são quase simultâneos, não é verdade? E é
possível separá-los de tal maneira, que só se tenha uma sensação de reação, sem nome
algum? Se investigardes isso, realmente, vereis que, quando não se dá
nome ao sentimento, a inveja se acaba — não simplesmente a inveja que uma
pessoa sente porque outra pessoa é mais bela ou tem um carro melhor, ou por
outra estupidez qualquer, mas a essência profunda da inveja, a raiz da inveja.
Todos somos invejosos, de diferentes maneiras, não há um só que não seja
invejoso. Mas a inveja não é apenas a manifestação superficial; ela é aquele
senso de comparação que penetra tão fundo e ocupa uma tão grande porção da
mente. E para ficarmos radicalmente livres da inveja tem de deixar de existir o
“observador” da inveja, que quer libertar-se da inveja. Apreciaremos isso
noutra ocasião.
PERGUNTA: Não
ter senso de condenação, justificação ou comparação, significa achar-se num
estado de consciência superior. Eu não me acho nesse estado e, assim, como
poderei alcançá-lo?
KRISHNAMURTI: Vede, senhores, a própria pergunta
“como poderei alcançá-lo?” é de natureza invejosa. (Risos) Não riais, senhores, prestai atenção, por favor. Vós
desejais ganhar alguma coisa, e por isso tendes métodos, disciplinas,
religiões, igrejas, toda esta superestrutura edificada sobre a inveja, a
comparação, a justificação, a condenação. Nossa civilização está baseada nesta
divisão hierárquica entre os que têm mais e os que têm menos, os que sabem e os
que não sabem, os que são ignorantes e os que estão cheios de sapiência, e, por
isso, a maneira de encararmos o problema está completamente errada. O
interrogante diz: “Não ter senso de condenação, justificação ou comparação, é
achar-se num estado superior de consciência”. É exato? Ou acontece simplesmente
que não estamos apercebidos de estar condenando, comparando? Porque afirmamos
logo que aquele estado é um estado superior de consciência e, em seguida, em
consequência dessa afirmativa, criamos o problema de “como” alcançar tal estado
e saber “quem” nos ajudará a alcançá-lo? A coisa não é muito mais simples?
Isto é, não estamos apercebidos de nós mesmos, em
absoluto, não percebemos que estamos condenando, comparando. Se pudermos
observar-nos todos os dias, sem condenarmos nem justificarmos coisa alguma, se
pudermos estar simplesmente apercebidos de que nunca pensamos sem julgar,
comparar, avaliar, então, esse próprio percebimento será suficiente. Estamos
sempre a dizer: “Este livro não é tão bom como o outro”, ou “Este homem é
melhor do que aquele”, etc.; está sempre em vigor este constante mecanismo de
comparação, e pensamos que pela comparação compreendemos alguma coisa. Mas,
compreendemos? Ou só vem a compreensão quando não estamos comparando, mas prestando
atenção? Há comparação ao observardes uma coisa com toda a atenção? Quando
estais totalmente atento, não tendes tempo para comparar, tendes? No
momento em que comparais, vossa atenção fugiu para outra coisa. Quando dizeis
“O pôr do sol, hoje, não está tão bonito como esteve ontem” — não estais
realmente olhando o pôr do sol, pois a vossa mente fugiu para a lembrança de
ontem. Mas, se puderdes observar o pôr do sol de maneira completa, total, com toda
a vossa atenção, então, decerto não existirá mais comparação.
O problema, pois, não é de como alcançar alguma
coisa, mas sim: Porque não somos atentos? Não somos atentos porque,
evidentemente, não temos interesse. Não digais “Mas como posso ter interesse?”.
Esta pergunta não cabe aqui, pois não estamos tratando disso agora. Porque
deveis ter interesse? Se não tendes interesse em escutar o que se está dizendo,
porque vos incomodardes? Mas vós estais incomodado, porque vossa vida é cheia
de inveja, de sofrimentos e por isso desejais uma resposta, um significado. Se
desejais um significado, então prestai toda a atenção. A dificuldade está em
que não temos interesse sério em coisa alguma — “sério”, no correto sentido da
palavra. Quando dais atenção completa a uma coisa, não estais procurando obter
nada dessa coisa, estais? Nesse momento de atenção total, não existe inveja,
não existe nenhuma entidade que esteja procurando mudar, modificar-se,
tornar-se algo, não existe “eu”. No momento da atenção, o “eu” está ausente, e
é este momento de atenção que é bom, que é amor.
Krishnamurti,
13 de agosto de 1955,
Realização sem Esforço
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