Vemos a sociedade mergulhada numa
terrível desordem, baseada que está na avidez, na inveja, no poder, na posição,
etc. E nós, entes humanos, componentes da sociedade vemo-nos também em
desordem. Porque a vida do ente humano em geral — a rotina diária, o diário
tormento de ganhar o sustento — terrível solidão e tédio, interminável
repetição — pouco significa. Para dar significado e sentido à vida, inventaram
os intelectuais, em todo o mundo, no Ocidente e no Oriente, filosofias e
religiões; disseram: “Existe Deus; há um certo estado mental que devemos
esforçar-nos para alcançar”. Também um grande número de filósofos têm dito
coisas sem nenhuma relação com a vida. Tem-se tentado dar-lhe significado,
porém, na realidade — não intelectual ou idealmente considerada — a vida, tal
como é, tal como a conhecemos diariamente, é na verdade absolutamente sem
significação. Sem significação, não só porque nós, entes humanos, nos achamos
num estado de desordem, mas porque nossa vida é toda de repetição. Passamos
anos inteiros num escritório — quarenta ou cinquenta — a executar
incessantemente coisas desinteressantes e, é bem de ver, interiormente a
desordem é cada vez maior. Exteriormente, tem-se tentado estabelecer a ordem
mediante a legislação, mediante a ditadura sob várias formas, mediante o
controle da mente e do comportamento humano — criando-se, no exterior,
politicamente, economicamente, um simulacro de ordem, enquanto interiormente,
nenhuma ordem existe. A ordem implica — não é verdade? — um estado inteiramente
livre de conflito; um estado mental lúcido, livre de toda rotina; um estado
mental não condicionado por inclinações ou tendências pessoais ou compelido por
influências externas, ambientes. E essa ordem — assim me parece — deve nascer
sem esforço algum de nossa parte; ela não pode ser produzida pela vontade, pelo
empenho, no terreno dos conceitos e das ideias. Em nossa mente confusa, em
nossa aflição, em nossa infinita solidão e conflito, tal esforço não pode, de
modo nenhum, criar a ordem, porém, tão-só, aumentar a confusão.
Que fazer? Que deve fazer um ente
humano, ao compreender que está confuso, incerto, vivendo uma vida de rotina,
de imitação, de ajustamento a um padrão estabelecido pela sociedade de que faz
parte, e percebendo a um só tempo a necessidade de ordem dentro de si mesmo? Se
não há ordem interior, por maior que seja a ordem exterior, a desordem interior
superará o simulacro de ordem externa. Isso me parece bastante claro. Assim,
como estabelecer ordem nós mesmos?
Ordem significa um estado mental
em que não há contradição e, portanto, nenhum conflito. Isso não implica
estagnação ou declínio. A ordem que obedece a uma fórmula, a um ideal ou
conceito é, simplesmente, desordem. Se um ente humano se ajusta a um padrão de
pensamento — uma certa coisa ideal que ele deveria ser — nesse caso está
meramente a imitar, a ajustar-se, a disciplinar-se, a forçar-se, a fim de
adaptar-se a um molde. Assim fazendo (como na vida em sociedade vem sendo
forçado a fazer há séculos e séculos, porquanto a sociedade trata sempre de
controla-lo mediante diferentes sansões religiosas, leis, etc.), nesse caso,
naturalmente, está sempre a produzir-se uma grande desordem. Essa me parece ser
a razão básica da revolta que atualmente se observa em todo o mundo. As gerações
mais novas estão tratando de lançar fora as ideias, os deuses, as normas de
conduta da geração mais velha; tudo isso está sendo posto de lado; estão em
revolta contra a sociedade, contra a ordem estabelecida. E, todavia, a ordem
que estão buscando irá estabilizar-se, pouco a pouco, num padrão e, por
conseguinte, criará a desordem neles próprios.
O problema, portanto, é este:
Como promover a mudança radical? Essa é uma necessidade essencial e óbvia. Se
existe um motivo para a mudança, nesse caso a pessoa está agrilhoada ou
escravizada ao passado, uma vez que todos os motivos procedem do fundo de
condicionamento de cada um.
Espero que, juntos, possamos
examinar a fundo esta matéria. Se estais apenas a ouvir intelectual, emocional
ou verbalmente, nesse caso não estamos trabalhando juntos; estais apenas a
ouvir algumas séries de ideias e a concordar ou discordar — e isso tem muito
pouco valor. Mas se, realmente, pudermos, todos juntos, penetrar este problema,
destrinchá-lo de fato, vive-lo, nesse próprio ato de
escutar poderá operar-se a revolução radical, psicológica.
Todos estamos de acordo (pelo
menos intelectualmente) quanto a necessidade de uma mudança em toda a estrutura
mental, no ser inteiro. Nesse sentido temos tentado vários meios: disciplina, ajustamento,
obediência, seguir; ou temos aceito a vida tal qual é e tratado de vive-la a
pleno; e, se temos certas capacidades, dinheiro, ao chegar a morte dizemos que
vivemos uma boa vida e agora é chegado o fim dela. Podemos perceber que, para
viver, necessita-se ordem — porque sem ordem não há paz — mas a ordem que se
cria mediante a identificação do indivíduo com um conceito, uma ideia, uma
fórmula, só produz isolamento. Embora a pessoa possa identificar-se com uma
coisa tal o nacionalismo ou uma ideia de Deus, essa identificação causa
separação e conflito. Por conseguinte, o identificar-nos com uma ideia, um
conceito, não efetua nenhuma mudança radical.
Exteriormente, estão-se
verificando enormes mudanças tecnológicas, porém, interiormente, continuo o
mesmo que sou há séculos — em conflito, aflição, a batalhar comigo mesmo e com
os outros; minha vida é um campo de batalha, todas as minhas relações
baseiam-se em imagens formadas pelo pensamento. Sendo a vida um campo de
batalha, desejo alterá-la, porque vejo que nenhuma possibilidade tenho de viver
em paz, dentro de mim mesmo, ou com a sociedade, ou com meu semelhante, a menos
que haja perfeita ordem, quer dizer, liberdade perfeita. A ordem só pode
tornar-se existente quando há liberdade; e não é possível a liberdade pela
escravização a uma ideia, ou a aceitação de uma certa teologia, ou o
ajustamento a um certo padrão, imposto pela sociedade ou por mim próprio. Que
devo fazer, então? Não sei se já refletistes a esse respeito; se o fizestes,
deveis ter percebido que se trata realmente de um problema formidável. Que devo
fazer, eu, um ente humano condicionado por milhões de anos, dotado de um
cérebro que só funciona por padrões de autoconservação (autoconservação que
leva cada vez mais ao isolamento e, portanto, a mais e mais conflito), que devo
fazer? Percebendo todo este campo de batalha em que, como ente humano, estou
vivendo, atormentado pelo medo, pelo sentimento de “culpa”, pelo desespero;
apegado às memórias do passado; temendo morrer; vivendo numa semi-obscuridade,
embora suficientemente engenhoso para inventar teorias de toda espécie;
trabalhando, escrevendo livros, explicando, fazendo tudo o que em geral fazem
os entes humanos — percebendo tudo isso, não como ideia, não como coisa
existente fora de mim, porém, vendo realmente que essa é minha vida, que devo
fazer? Como mudar toda estrutura psicológica de minha existência?
Se este é um problema que vos
concerne tanto quanto concerne ao orador (não é propriamente um problema meu,
mas estamos explorando juntos), que devemos fazer? É claro que não pode mais
haver autoridade alguma, pois ninguém pode dizer-nos o que devemos fazer —
nenhum sacerdote, nenhum teólogo, nenhum guru, nenhum livro, nenhum agente
externo pode dizer-nos o que devemos fazer. Tudo isso já tentamos e não tem
significação alguma, nem nunca a teve. Uma vez que não pode haver nenhuma
autoridade, tenho de depender totalmente de mim mesmo. Entretanto, esse “eu
mesmo” é uma entidade confusa. Quanto mais rejeito todo e qualquer agente
externo que me prometa uma mudança dentro de mim mesmo — sanções, leis que me
obrigam a fazer isto ou aquilo — quanto mais rejeito tudo isso, tanto mais
cônscio me torno do enorme problema de “mim
mesmo” — um ente confuso, incerto, ignorante. E, ao tornar-me cônscio
disso, há mais medo, mais desespero e, como reação, uma reversão às condições
anteriores, isto é, trato de ingressar em organizações políticas ou religiosas;
se eu era católico, torno-me protestante; se era protestante, trato de seguir o
Zen ou de adotar outra espécie de distração. E o problema fundamental fica sem
solução.
Eis, pois a situação. Rejeitamos
totalmente a autoridade externa — se a temos — percebendo que essa autoridade é
uma das causas da desordem. Vemos que estivemos seguindo um certo “instrutor”,
filósofo, salvador, e que o seguíamos
por medo e não por amor. Se tivéssemos amor, não seguiríamos ninguém; o
amor não obedece, o amor não conhece dever e responsabilidade. Uma pessoa segue,
aceita, obedece, essencialmente porque tem medo — medo de não alcançar os seus
fins, de errar o caminho, etc. — há dúzias de formas de medo. Interiormente, é
dificílimo rejeitar a autoridade — a autoridade de outrem e também a autoridade
de nossos próprios conceitos, de nossa passada experiência. Relativamente fácil
é rejeitar a autoridade da sociedade; os monges o têm feito de várias maneiras
e a moderna “geração mais nova” o está fazendo de diferente maneira. Mas, o
livrar-nos da autoridade de nosso próprio condicionamento, de nossas
experiências, da autoridade do passado é sobremodo importante, é essencial,
porque é ela que gera a autoridade externa, e também o medo, dado o nosso
desejo de certeza, segurança, proteção.
Assim, o libertar-nos do passado,
que significa libertar-nos do medo, do medo psicológico, é, sem dúvida, o
primeiro requisito da ordem. Podemos ficar totalmente livres do temor, tanto no
nível consciente como no inconsciente?
Krishnamurti – 20 de abril de
1967 - A essência da Maturidade – Ed. ICK – pág. 20 à 24