Se você se sente grato por este conteúdo e quiser materializar essa gratidão, em vista de manter a continuidade do mesmo, apoie-nos: https://apoia.se/outsider - informações: outsider44@outlook.com - Visite> Blog: https://observacaopassiva.blogspot.com

Mostrando postagens com marcador Texto Krishnamurti. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Texto Krishnamurti. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Enquanto houver distinção entre o indivíduo e o grupo tem que haver conflito


Amigos, nesta breve conversa introdutória, antes de responder a algumas das perguntas que me foram colocadas, quero expressar algumas ideias sobre as quais se deveria refletir com inteligência crítica. Não quero entrar em pormenores, mas quando refletirem sobre o que eu digo e o transportarem para a ação, verão a sua importância prática neste mundo de cruel e terrível caos.

A primeira coisa que temos que compreender é que enquanto houver distinção entre o indivíduo e o grupo tem que haver conflito, tem que haver exploração, tem que haver sofrimento. O conflito no mundo é na realidade entre o indivíduo que procura realização, e o grupo. Na expressão da sua força única como indivíduo, ele tem inevitavelmente que entrar em conflito com a multidão, e este conflito só aumenta a divisão entre os dois. A mera imposição superficial de um sobre o outro ou a exterminação de um pelo outro, não pode livrar o mundo da exploração e das crueldades repressivas.

Enquanto não compreendermos a verdadeira relação entre o indivíduo e o grupo, e a verdadeira função do indivíduo entre o grupo, haverá um contínuo estado de guerra. Para mim, esta distinção entre o indivíduo e o grupo é artificial e não verdadeira, embora tenha assumido uma realidade. Enquanto não compreendermos verdadeiramente como nasceu a consciência de grupo e o que é o indivíduo e qual é a sua função, tem que existir um atrito contínuo.

Antes de responder às questões esta noite, quero tentar explicar o que quero dizer com indivíduo. A consciência de grupo não é senão a expansão da do indivíduo, portanto vamos interessar-nos com o pensamento e a ação do indivíduo. Embora o que eu digo possa parecer-lhes novo, por favor, examinem-no sem preconceito.

O indivíduo é o resultado do passado, expressando-se através do meio presente; o passado sendo o herdado, o incompleto, e o presente, aquilo que é criado pela incompletude. O passado nada mais é que o pensamento, emoção e ação incompletos; isto é, pensamento, emoção e ação condicionados e limitados pela ignorância.

Expondo-o de maneira diferente, se uma pessoa desenvolveu certo background através de tradições, através de um meio econômico, através de hereditariedade, através da formação religiosa, e está a tentar expressar-se através da limitação desse background, então naturalmente as suas ações, pensamentos e sentimentos têm que ser limitados, condicionados. Isto é, a sua mente está pervertida, distorcida pelo seu passado, e é com essa limitação que ele tenta enfrentar a vida e compreender as suas experiências. Portanto a ignorância é a acumulação dos resultados da ação através dos muitos impedimentos cujo significado o indivíduo não compreendeu integralmente. Estes impedimentos foram edificados pela mente para sua autoproteção.

Cada um constantemente procura e cria segurança para ele próprio, e por isso toda a sua reação à vida é de contínua autodefesa. Enquanto a mente e o coração estiverem à procura de medidas para se protegerem através de ideais e valores defensivos, tem que existir ignorância, que impede a mente de agir plenamente, completamente, e, portanto, ela desenvolve a sua própria particularidade a que chamamos individualidade, e que inevitavelmente entra em conflito com as muitas outras individualidades. Esta é a causa fundamental do sofrimento.

Ora, para mim, o verdadeiro significado da individualidade consiste em libertar a mente do passado, da sua ignorância para com o seu meio limitado. Neste processo de libertação, nasce a verdadeira inteligência, a única que libertará o homem do sofrimento, das crueldades e da exploração.

Assim, quando a mente está liberta do hábito e da tradição de procurar e criar valores para sua autoproteção, através da acumulação, que é ignorância, e enfrenta a vida completamente, absolutamente despida, só então existe o duradouro discernimento daquilo que é verdadeiro.

Pergunta: É possível viver sem exploração, individual e comercial?

Krishnamurti: A maior parte de nós é levada pela mera sensação de posse. Desejamos adquirir, e por isso começamos a acumular cada vez mais, pensando que através da acumulação encontraremos felicidade, segurança. Enquanto houver desejo acumulativo e aquisitivo, tem que existir exploração; e só podemos libertar-nos dessa exploração quando começarmos a despertar a inteligência através da destruição dos valores autoprotetores. Mas se simplesmente tentarmos descobrir quais são as nossas necessidades e nos limitarmos a essas necessidades, então a nossa vida tornar-se-á pequena, tacanha e mesquinha. Ao passo que, se vivêssemos inteligentemente, sem acumulações autoprotetoras, não haveria exploração, com as suas muitas crueldades. Tentar resolver este problema unicamente controlando as condições econômicas do homem ou pela mera renúncia, parece-me uma abordagem errada a este complicado problema. É somente através da compreensão voluntária e inteligente da inutilidade e ignorância da autoproteção, que pode chegar a ausência de exploração.

Despertar a inteligência é descobrir, através da dúvida e do questionamento, o verdadeiro significado dos valores que adquirimos, das tradições, sejam religiosas, sociais ou econômicas, que herdamos ou conscientemente edificamos. Em tal questionamento, se for real e vital, há a descoberta inteligente das necessidades. Esta inteligência é a certeza de felicidade.

Pergunta: Deveríamos transformar as nossas espadas em arados, mesmo embora o nosso país seja atacado por um inimigo? Não é o nosso dever moral defender o nosso país?

Krishnamurti: Para mim a guerra é radicalmente errada, seja defensiva ou ofensiva. O sistema de aquisitividade em que se baseia toda esta civilização tem naturalmente que criar distinções de classe, distinções raciais e nacionais, conduzindo inevitavelmente à guerra, a que podem chamar ofensiva ou defensiva de acordo com os ditames dos líderes comerciais ou políticos. Enquanto existir este sistema econômico explorador, tem que haver guerra; e o indivíduo que é confrontado com o problema de se deveria lutar ou não, decidirá de acordo com a sua aquisitividade, a que ele por vezes chama patriotismo, ideais, etc. Ou, compreendendo que todo este sistema inevitavelmente conduz à guerra, como indivíduo, começará a libertar-se inteligentemente deste sistema. E esta é para mim a única verdadeira solução.

Pela nossa aquisitividade construímos através de muitos séculos este esmagador sistema de exploração que está a destruir todas as nossas sensibilidades, o nosso amor pelo outro. E quando perguntamos, “Não deveríamos lutar pelo nosso país, não é o nosso dever moral?” há algo inerentemente errado, algo essencialmente cruel na própria questão. Para se libertar desta extrema estupidez, o homem da guerra tem que reaprender a pensar mesmo do princípio. Enquanto a humanidade estiver dividida pela religião, pelas seitas, pelos credos, pelas classes, pelas nacionalidades, tem que haver guerra, tem que haver exploração, tem que haver sofrimento. Só quando a mente se começa a libertar destas limitações, só quando a mente se derrama no coração, é que há a verdadeira inteligência, que é a única solução duradoura para as crueldades bárbaras desta civilização.

Pergunta: Como é que podemos ajudar melhor a humanidade a compreender e a viver os seus ensinamentos?

Krishnamurti: É muito simples: vivendo-os vocês mesmos. O que é que estou a ensinar? Não lhes estou a dar um novo sistema, ou um novo conjunto de crenças; mas digo, prestem atenção à causa que gerou esta exploração, a falta de amor, o medo, as guerras contínuas, o ódio, as diferenças de classes, a divisão do homem contra o homem. A causa é, fundamentalmente, o desejo da parte de cada um de nós de se proteger através da aquisitividade, através do poder. Todos desejamos ajudar o mundo, mas nunca começamos por nós próprios. Queremos reformar o mundo, mas a mudança fundamental tem que ter lugar primeiro dentro de nós próprios. Portanto, comecem a libertar a mente e o coração deste sentido de possessividade. Isto exige, não mera renúncia, mas discernimento, inteligência.

Pergunta: Qual é a sua atitude relativamente ao problema do sexo, que representa um papel tão predominante na nossa vida quotidiana?

Krishnamurti: Tornou-se um problema porque não há amor. Não é assim? Quando realmente amamos, não há problema, há ajustamento, há compreensão. Só quando perdemos o sentido da verdadeira afeição, desse profundo amor em que não há sentimento de possessividade, é que surge o problema do sexo. Só quando nos submetemos completamente à mera sensação, é que há muitos problemas relativos ao sexo. Como a maioria das pessoas perdeu a alegria do pensar criativo, naturalmente voltam-se para a mera sensação do sexo, que se torna um problema desgastando as suas mentes e corações. Enquanto não começarem a questionar e a compreender o significado do meio, dos muitos valores que edificaram em vosso redor para vossa autoproteção e que estão a esmagar o pensar fundamental, criativo, têm naturalmente que recorrer às muitas formas de estimulação. Daqui surgem inumeráveis problemas para os quais não há solução exceto a compreensão fundamental e inteligente da própria vida.

Por favor, experimentem com o que eu estou a dizer. Comecem por descobrir o verdadeiro significado da religião, do hábito, da tradição, de todo este sistema de moralidade que está constantemente a forçá-los, a instá-los numa determinada direção: comecem a questionar todo o seu significado sem ideias preconcebidas. Despertarão então esse pensamento criativo que dissolve os muitos problemas nascidos da ignorância.

Pergunta: Acredita na reencarnação? É um fato? Pode dar-nos provas da sua experiência pessoal?

Krishnamurti: A ideia da reencarnação é tão velha como as colinas; é a ideia de que o homem, através de muitos renascimentos, passando através de inúmeras experiências, chegará finalmente à perfeição, à verdade, a Deus. Ora bem, o que é que renasce, o que é que continua? Para mim, essa coisa que se supõe continuar nada mais é que uma série de camadas de memória, de determinadas qualidades, de determinadas ações incompletas que foram condicionadas, impedidas pelo medo nascido da autoproteção. Ora essa consciência incompleta é o que nós chamamos o ego, o “eu”. Conforme expliquei no início da minha breve conversa introdutória, a individualidade é a acumulação dos resultados de várias ações que foram impedidas, entravadas por determinados valores herdados e adquiridos, pelas limitações. Espero não estar a tornar isto muito complicado e filosófico. Tentarei torná-lo simples.

Quando falam do “eu”, querem dizer com isso um nome, uma forma, determinadas ideias, certos preconceitos, determinadas distinções de classe, qualidades, preconceitos religiosos, etc., que foram desenvolvidos através do desejo de autoproteção, de segurança, de conforto. Portanto, para mim, o “eu”, baseado numa ilusão, não tem realidade. Por isso a questão não é saber se existe a reencarnação, se há uma possibilidade de um crescimento futuro, mas se a mente e o coração se podem libertar desta limitação do “eu”, do “meu”.

Perguntam-me se eu acredito ou não na reencarnação porque esperam que através da minha certeza possam adiar a compreensão e a ação no presente, e que eventualmente chegarão a realizar o êxtase da vida ou a imortalidade. Querem saber se, sendo forçados a viver num meio condicionado com oportunidades limitadas, chegarão alguma vez através da infelicidade e do conflito a compreender esse êxtase da vida, a imortalidade. Como se está a fazer tarde tenho que expor o assunto brevemente, e espero que reflitam sobre ele.

Ora eu digo que a imortalidade existe, para mim é uma experiência pessoal; mas ela só pode ser compreendida quando a mente não estiver a contar com um futuro no qual viva com mais perfeição, mais completamente, mais ricamente. A imortalidade é o presente infinito. Para compreender o presente com o seu significado pleno, rico, a mente tem que estar livre do hábito da aquisição autoprotetora; quando estiver totalmente despida, só então há imortalidade.

Pergunta: Para podermos alcançar a verdade, devemos trabalhar sozinhos ou coletivamente?

Krishnamurti: Se é que o posso sugerir, deixem a questão da verdade de lado; vamos antes considerar se é inteligente trabalhar para a obtenção pessoal ou para o coletivo. Durante séculos cada um procurou a sua própria segurança, e foi, portanto, implacável, agressivo, explorador, gerando assim a confusão e o caos. Considerando tudo isto, vocês, o indivíduo, começarão a trabalhar voluntariamente para o bem-estar do todo. Neste ato voluntário, o indivíduo nunca se tornará mecânico, automático, um mero instrumento nas mãos do grupo; por conseguinte, nunca poderá haver um conflito entre o grupo e o indivíduo. A questão da expressão criativa do indivíduo em oposição e em conflito com o grupo só desaparecerá quando cada um agir integralmente na plenitude da compreensão. Só isto originará a cooperação inteligente na qual a compulsão, seja através do medo ou da ganância, não tem lugar. Não esperem a ser levados a agir coletivamente, mas comecem a despertar essa inteligência, desnudando todas as estupidezes aquisitivas, e então haverá a alegria do trabalho coletivo.

Krishnamurti, 

Rio de Janeiro, 2ª Palestra – 17 de Abril de 1935.

Penetrado as ilusões e libertando-se dos seus falsos valores


Amigos, como houve tantos equívocos e más interpretações nos jornais e revistas com respeito a mim, penso que seria melhor se eu fizesse uma declaração para clarificar a posição. As pessoas geralmente desejam ser salvas por outra, ou por algum milagre, ou por ideias filosóficas; e eu receio que muitos venham aqui com este desejo, esperando que pelo simples fato de me ouvirem encontrarão uma solução imediata para os seus muitos problemas. Nem a solução para os seus problemas nem a sua chamada salvação pode chegar através de qualquer pessoa ou de qualquer sistema de filosofia. A compreensão da verdade ou da vida está no nosso próprio discernimento, na nossa própria perseverança e clareza de pensamento. Porque a maior parte de nós somos demasiado indolentes para pensarmos por nós próprios, aceitamos cegamente e seguimos pessoas ou apegamo-nos a ideias que se tornam o nosso meio de fuga em tempo de conflito e sofrimento.

Em primeiro lugar, quero esclarecer que não pertenço a nenhuma sociedade. Não sou teosofista nem missionário teosófico, nem vim aqui para os converter a nenhuma forma particular de crença. Não penso que seja possível seguir alguém, ou aderir a uma determinada crença, e ao mesmo tempo ter a capacidade de pensar claramente. Eis porque a maioria dos partidos, sociedades, seitas, corpos religiosos, se tornam meios de exploração.

Nem trago uma filosofia oriental, instigando-os a aceitá-la. Quando falo na Índia dizem-me que o que digo é uma filosofia ocidental, e quando venho aos países ocidentais, dizem-me que trago um misticismo oriental que é impraticável e inútil no mundo da ação. Mas se realmente chegarem a refletir sobre isso, o pensamento não tem nacionalidade, nem está limitado por nenhum país, clima ou povo. Portanto, por favor, não suponham que o que vou dizer é o resultado de algum preconceito racial peculiar, idiossincrasia, ou peculiaridade pessoal. O que tenho a dizer é real, real no sentido de que pode ser aplicado à vida presente do homem; não é uma teoria baseada em algumas crenças ou esperanças, mas é praticável e aplicável ao homem.

Ora bem, o pleno significado do que eu vou dizer só pode ser compreendido através da experimentação e, portanto, através da ação. A maior parte de nós gosta de discutir questões filosóficas em que as nossas ações diárias não tomam parte; ao passo que, isso de que falo não é uma filosofia ou um sistema de pensamento, e o seu profundo significado só pode ser compreendido através da experiência, através da ação.

O que eu digo não é uma teoria, uma crença intelectual para ser simplesmente discutida, para ser argumentada; exige muito pensamento; e só na ação, não pelo debate intelectual, podem descobrir se é verdadeiro e prático. Não é um sistema a ser memorizado, nem é um conjunto de conclusões que podem ser aprendidas e automaticamente levadas a cabo. Tem que ser compreendido criticamente. Ora a crítica é diferente da oposição. Se forem realmente críticos, não se oporão simplesmente, mas tentarão descobrir se o que digo tem em si qualquer mérito intrínseco. Isto exige clareza de pensamento da vossa parte, para que possam trespassar a ilusão das palavras, não permitindo que os vossos preconceitos, sejam religiosos ou econômicos, os impeçam de pensar profundamente. Isto é, têm que pensar a partir do próprio início, simples e diretamente. Todos nós fomos educados com muitos preconceitos e ideias preconcebidas, fomos criados em tradições supurantes e limitados pelo meio, e, portanto, o nosso pensamento é continuamente pervertido e deformado, impedindo assim a simplicidade de ação.

A questão da guerra, por exemplo. Vocês sabem, são tantos os discutem a retidão e o erro da guerra. Por certo que não pode haver duas maneiras de olhar para a questão. A guerra, defensiva ou ofensiva, está fundamentalmente errada. Agora, para pensar a partir do princípio no que respeita a essa questão, a mente tem de estar inteiramente livre da doença do nacionalismo. Somos impedidos de pensar profundamente, diretamente, simplesmente, devido aos preconceitos que têm sido explorados através dos tempos sob a capa do patriotismo, com os seus absurdos.

Criámos, portanto, através dos séculos muitos hábitos, tradições, preconceitos, que impedem o indivíduo de pensar completamente, fundamentalmente sobre as questões humanas vitais.

Ora para compreender os muitos problemas da vida, com as suas variedades de sofrimento, temos que descobrir por nós próprios os motivos e as causas fundamentais, com os seus resultados e efeitos. A menos que estejamos plenamente conscientes das nossas ações, da sua causa e efeito, exploraremos e seremos explorados, tornar-nos-emos escravos dos sistemas e as nossas ações serão unicamente mecânicas e automáticas. Até que possamos libertar conscientemente as nossas ações do seu efeito restritivo, através da compreensão do significado da sua causa, a menos que nos libertemos das velhas formas de pensamento que edificamos em nosso redor, não seremos capazes de penetrar as inumeráveis ilusões que criamos à nossa volta e nas quais estamos entravados.

Cada um tem que perguntar a si próprio o que está a procurar, ou se está simplesmente a ser conduzido pelas circunstâncias e condições, e é, portanto, irresponsável, irrefletido. Aqueles de vocês que estão realmente insatisfeitos, que são críticos, têm que ter perguntado a si mesmos o que é que cada indivíduo procura. Procuram conforto, segurança, ou a compreensão da vida? Muitos dirão que procuram a verdade; mas se analisassem as suas ânsias, a sua busca, ver-se-ia que na realidade estão à procura de conforto, de segurança, de uma fuga do conflito e do sofrimento.

Ora se estão à procura de conforto, de segurança, essa procura tem que se basear na aquisição e, portanto, na exploração e na crueldade. Se dizem que procuram a verdade, tornar-se-ão prisioneiros da ilusão, porque não se pode correr atrás da verdade, não se pode procurar e encontrar; ela tem que acontecer. Isto é, o seu êxtase só se conhece quando a mente está completamente despojada de todas as ilusões que criou na procura da sua própria segurança e conforto. Somente então há o despontar daquilo que é a verdade.

Colocando as coisas de maneira diferente, temos que perguntar a nós próprios em que é que se baseiam a nossa vida, pensamento e ação. Se pudermos responder a isto completamente, com verdade, então podemos descobrir por nós próprios quem é o criador das ilusões, destas supostas realidades das quais nos tornamos prisioneiros.

Se realmente pensarem sobre isso, verão que toda a vossa vida se baseia na procura de segurança, proteção e conforto individuais. Nesta procura de segurança nasce, naturalmente, o medo. Quando procuram conforto, quando a mente está a tentar evadir a luta, o conflito, o sofrimento, ela tem que criar várias vias de fuga, e estas vias de fuga tornam-se as nossas ilusões. Portanto o medo, que é o resultado da procura individual de segurança, é o criador das ilusões. Isto leva-os de uma seita religiosa a outra, de uma filosofia a outra, de um instrutor a outro, para procurar essa segurança, esse conforto. A isto vocês chamam a procura da verdade, da felicidade.

Ora, não há segurança, não há conforto; existe apenas a clareza de pensamento que ocasiona a compreensão da causa fundamental do sofrimento, a única que libertará o homem. Nesta libertação reside a bem-aventurança do presente. Eu digo que há uma realidade eterna que só pode ser descoberta quando a mente está livre de todas as ilusões. Portanto tenham cuidado com a pessoa que lhes oferece conforto, porque nisto tem que haver exploração; essa pessoa cria uma artimanha na qual são apanhados como peixe na rede.

Na procura de conforto, de segurança, a vida veio a ser dividida em religiosa ou espiritual, e em econômica ou material. A segurança material é procurada através das posses que dão poder e através desse poder esperam poder realizar a felicidade. Para alcançar esta segurança material, este poder, tem que haver exploração, a exploração do vosso semelhante através de um sistema estabelecido deliberadamente e que se tornou hediondo nas suas muitas crueldades. Esta procura de segurança individual, na qual está incluída também a da nossa própria família, criou a diferença de classes, os ódios raciais, o nacionalismo, e em última análise termina em guerras. E curiosamente, se prestarem atenção, a religião que deveria denunciar a guerra, ajuda à sua promoção. Os sacerdotes, que se supõe serem os educadores do povo, encorajam todas as insanidades que o nacionalismo cria e que cega as pessoas em momentos de ódio nacional. E vocês criam este sistema, baseado na segurança e no conforto individual, a que chamam religião. Criaram as organizações religiosas que são apenas formas cristalizadas de pensamento e que asseguram a imortalidade pessoal.

Entrarei em pormenores sobre esta questão da imortalidade numa das minhas palestras posteriores.

Portanto através da procura de segurança individual, através da exigência de continuação individual, vocês criaram uma religião que os explora através do clericalismo, através das cerimônias, através dos chamados ideais. O sistema a que chamam religião e que foi criado através da vossa própria exigência de segurança tornou-se tão poderoso, tão realista, que muito poucos se libertam do seu peso de tradição esmagadora e autoridade. O próprio princípio da verdadeira crítica reside no questionamento dos valores que a religião estabeleceu em nosso redor.

Ora cada um está preso nesta estrutura; e enquanto forem escravos de meios e valores inexplorados, não questionados, tanto passados como presentes, eles têm que perverter a plenitude da ação. Esta perversão é a causa do conflito entre o indivíduo que procura segurança, e as maiorias; entre o indivíduo e o movimento contínuo da experiência. Como individualmente criamos este sistema de exploração e limitação esmagadora, temos que individualmente e conscientemente demoli-lo compreendendo as bases da fundação desta estrutura e não unicamente criando novos conjuntos de valores, que serão apenas uma outra série de fugas. Assim começaremos a penetrar no verdadeiro significado de viver.

Afirmo que existe uma realidade, deem-lhe o nome que quiserem, que somente pode ser compreendida e vivida quando a mente e o coração tiverem penetrado as ilusões e estiverem livres dos seus falsos valores. Só então existe o eterno.

Krishnamurti - Rio de Janeiro, 1ª Palestra – 13 de Abril de 1935.

A família como fator condicionante e divisor

Você não pode aprender o amor com o pensamento, nem pode cultivar o amor com o pensamento. Só pode compreender o amor e saber o que significa amar, quando morre para o ciúme, para a estreita esfera da família, quando o pensamento não dita as ações da vida. Quando você ama, pode fazer tudo o que deseja fazer, porque a vida é sem conflito. A mente que é ambiciosa, ávida, invejosa, desejosa de autoridade – essa mente não tem amor, embora fale muito de amor, como os políticos, os gurus, que estão sempre a falar em amor, com o coração vazio, e cheios de conflitos e de ardentes desejos; nunca há um momento em que, dentro deles próprios, tudo esteja morto, e sua mente esteja inteiramente vazia. Só quando a mente está completamente vazia, é possível compreender essa coisa extraordinária chamada “amor”. Quando você diz “amo meu marido, meu filho”, não ama; porque, se o marido ou a mulher lhe vira as costas, sente ciúme, sente cólera, amargor. É isso o que você chama “amor”. O amor não têm apego. E, portanto, amor não significa “amor à família”. (1)

Quase todos vós procedeis de famílias ou de escolas onde fostes educados para respeitar a posição. Vosso pai e vossa mãe têm posição, o diretor tem posição, e, por conseguinte, já vindes para aqui com medo, com esse respeito à posição. Mas, temos de criar na escola uma atmosfera de liberdade, e isso só pode acontecer quando há função sem posição e, por conseguinte, um sentimento de igualdade. O verdadeiro encargo da educação correta é encaminhar-vos para serdes um ente humano valoroso e sensível, um ente humano sem medo e sem falsa idéia do respeito devido à posição. (2) 

Deve haver segurança física para todos, e não apenas para uns poucos; mas essa "segurança física para todos" é negada quando se busca a segurança psicológica, nas nações, nas religiões, na família... O ente humano necessita de segurança física, a qual é negada quando ele busca a segurança psicológica. Isto é um fato, e não uma opinião. Quando busco a segurança em minha família, minha mulher, meus filhos, minha casa, tenho de me opor ao mundo; tenho de separar-me das outras famílias, ficar contra o resto do mundo. (3)

No momento que você protege a sua família, sua pátria, um tecido colorido chamado bandeira, uma crença, uma idéia, um dogma, um objeto de desejo ou aquilo a que já tens apego, essa própria proteção anuncia a raiva. (4) 

(...)Nós não estamos sós. Nós somos o resultado de mil influências, mil condicionamentos, heranças psicológicas, propaganda, cultura. Nós não estamos sós, e portanto somos seres humanos de segunda mão! Quando a pessoa está só, totalmente só, não pertence a nenhuma família, embora tendo uma família, não pertence a nenhuma nação, a nenhuma cultura, não tem nenhum compromisso particular, existe a sensação de ser estranho – estranho a qualquer padrão de pensamento, ação, família, nação. E somente quando a pessoa está completamente só é que é inocente. E é esta a inocência que liberta a mente do sofrimento... Quando o homem se livra da estrutura social da ganância, inveja, ambição, arrogância, acumulação, prestígio social – quando ele mesmo se livra disso, ele se encontra completamente só. Isto é totalmente diferente! Existe então grande beleza, a percepção de grande energia. (5) 

Se lançardes as vistas para o nosso sistema atual, verificareis ser ele nada mais que uma série de explorações astutas do homem pelo homem. A família torna-se o próprio centro de exploração. Peço-vos que não compreendais mal o que entendo por família. Por família entendo o centro que vos faz sentir seguros, que exige a exploração do vosso próximo. A família, que deveria ser a própria expressão do amor e não da exclusividade, torna-se um meio da auto-perpetuação egoísta. Daí desenvolvem-se classes, as superiores e as inferiores; e os meios de adquirir riqueza acumulam-se nas mãos de uns poucos. (6) 

Se você só tivesse uma hora de vida, o que você faria? Você não organizaria tudo o que é necessário, seus negócios, sua vontade e tudo o mais? Você não chamaria junto a sua família e amigos e pediria perdão por qualquer dano que você talvez tenha feito a eles, e perdoaria todo e qualquer dano eles talvez tenham feito a você? Você não morreria completamente para as coisas da mente, para os desejos e para o mundo? E se isso pode ser feito durante uma hora, então também pode ser feito durante todos os dias e anos que se seguem ... Tente e você descobrirá. (7) 

Primeiramente, senhores, não achais também necessária uma revolução radical na vida do indivíduo? Ou estais satisfeitos com as coisas tais como são, com vossas idéias de progresso e evolução, vossos desejos de realizações, vossos anseios é vossos prazeres precários? No momento em que começardes a pensar realmente, a sentir realmente, sereis empolgados desse ardente desejo de modificação profunda, revolução radical, completa reorientação do pensar. Pois bem. Se sentirdes necessária tal coisa, então, nem família, nem amigos constituirão empecilhos Porque, nesse caso, não haverá revolução externa nem revolução interna; haverá, simplesmente, revolução, modificação. Mas, se começais a estabelecer restrições, dizendo: "não devo magoar minha família, meus amigos, meu pároco, meu explorador capitalista ou meu explorador político" - não vedes então a necessidade de mudança radical e apeteceis apenas mudança de ambiente. Isso é evidente letargia, a qual criará outro ambiente falso, fazendo continuar o conflito.

Parece-me um tanto falaz o pretexto de não devermos magoar nossas famílias e amigos. Por certo, quando desejais fazer algo de capital importância, vós o fazeis, sem considerações de família nem de amigos, não é verdade? Não receais, então, prejudicá-los. Isso já não está sob vosso controle: sentis tão intensamente, pensais tão completamente, que sois transportados para fora das limitações dos círculos de família, das obrigações de qualquer classe. Mas só começais a levar em conta a família, os amigos, os ideais, as crenças, as tradições, a ordem estabelecida - só começais a tomá-los em consideração quando ainda vos apegais a uma determinada segurança, quando vos falta aquela riqueza interior de que vos falei há pouco, e, em lugar dela, existe apenas a dependência de estímulos exteriores. Assim, pois, se existe plena consciência do sofrimento, despertada pelo conflito, não estais, então, tolhidos pelos vínculos de qualquer ortodoxia, amigos ou família: quereis achar a causa do sofrimento, quereis descobrir o significado do ambiente que recria esse conflito; apagou-se a personalidade, desapareceu a ideia limitada do "eu". É somente quando vos apegais a essa ideia limitada do "eu", que sois obrigados a considerar até onde vos podeis transportar e até onde não deveis ir.

Certo, não se pode encontrar a verdade, ou essa faculdade divina da compreensão, enquanto estivermos apegados à família, à tradição, ou ao hábito. Ela só poderá encontrar-se quando estiverdes em plena nudez, despidos de vossos desejos, esperanças e cautelas. Nessa simplicidade direta está a riqueza da vida. (8) 

Todos nós estamos colhidos nas malhas do sofrimento e do conflito, mas a maioria dos indivíduos não está consciente desse conflito porque vive a procurar substituições, soluções e refúgios. Se, entretanto, deixarem de procurar refúgio e começarem a interrogar o ambiente, que é a causa do conflito, tornar-se-á, então, a mente penetrante, ativa, inteligente. Nessa intensidade a mente se torna inteligente e capaz, portanto, de discernir o exato valor e significado do ambiente, causador do conflito... se estiverdes em conflito, é claro que deveis interrogar o ambiente, mas a mente da maioria já de tal modo se desvirtuou que não percebe que está à cata de soluções e meios de fuga, com maravilhosas teorias. É perfeito o seu raciocinar, porém, baseado, embora inconsciente, no desejo de fuga... Se há, pois, conflito e desejais descobrir-lhe a causa, deixai que a mente descubra pela intensidade do pensamento e, interrogando tudo o que o ambiente põe em torno de vós – vossa família, vossos semelhantes, vossas religiões, vossas autoridades políticas; no interrogar haverá ação contra o ambiente. Tendes a família, o semelhante, o Estado, e, interrogando o significado dessas coisas, vereis como é espontânea a inteligência, que ela não é coisa que se adquire ou cultive. Lançada a semente do percebimento, nasce a flor da inteligência. (9) 

Procuramos felicidade através das coisas, pelas relações, por meio de pensamentos e idéias. Assim as coisas, as relações e idéias tornam-se todas importantes, e não a Felicidade. Quando se procura felicidade através de alguma coisa, então, a coisa torna-se de valor superior a própria felicidade. Quando apresentado desta forma o problema parece simples e é simples. Procuramos felicidade na propriedade, na família, no nome e então, a propriedade, a família, a idéia torna-se todas importantíssimas, mas sendo a felicidade procurada por um algum meio, o meio destrói o fim. A felicidade pode ser achada por algum meio qualquer, através de qualquer coisa feita pela mão ou pela mente? As coisas, as relações e idéias são claramente não-permanentes, estamos sempre insatisfeitos com elas. As coisas são impermanentes, se acabam e são perdidas; o relacionamento é um constante atrito e a morte é o fim; idéias e convicções não têm nenhuma estabilidade, não são permanentes. Procuramos felicidade nisso e ainda não percebemos sua impermanencia. Portanto, o sofrimento se torna nossa constante companheira superando nosso problema. Para descobrir o verdadeiro sentido da felicidade, temos de explorar o rioa do autoconhecimento. Autoconhecimento não é um fim em si mesmo. Existe a fonte deste rio? Cada gota de água do seu início até o fim é que faz o rio. Imaginar que acharemos felicidade na fonte é um equivoco. Ela se encontra onde você está no rio do autoconhecimento. (10) 

Um homem que tem o propósito de descobrir a verdade deve interiormente ser um completo revolucionário. Não pode pertencer a qualquer classe, nação, grupo ou ideologia, a nenhuma religião organizada, a verdade não está no templo ou na igreja, verdade não se encontra nas coisas feitas pela mão ou pela mente. A verdade surge apenas quando as coisas da mente e da mão são abandonadas, e abandonar as coisas da mente e da mão não é uma questão de tempo. A verdade vem a quem é livre do tempo, quem não usa o tempo como um meio de auto-expansão. Tempo significa memória de ontem, a memória da sua família, da sua raça, do seu caráter particular, do acúmulo de sua experiência que torna-se o “eu” e o “meu”.” (11) 

Com que facilidade destruímos a delicada sensibilidade de nosso ser. A luta e o esforço incessantes, as fugas e os medos ansiosos logo embotam a mente e o coração; e a mente astuta rapidamente encontra substitutos para a sensibilidade da vida. Divertimentos, família, política, crenças e deuses ocupam o lugar da clareza e do amor. A clareza é perdida pelo conhecimento e pela crença, e o amor pelas sensações. (12) 

Se houvesse o amor real, não o amor ideal, sabeis como seria diferente este mundo? Seriamos todos verdadeiramente felizes. E não faríamos, portanto, a nossa felicidade depender das coisas, da família, dos ideais. Seríamos felizes, e, portanto, as coisas, a família, os ideais, não dominariam as nossas vidas. Tudo isso são coisas secundárias. Mas, porque não amamos e porque não somos felizes atribuímos importância às coisas, já que nos darão a felicidade, e uma dessas coisas a que damos importância é Deus. (13) 

Fizemos da vida um campo de batalha: cada família, cada grupo, cada nação contra as demais. Percebendo bem isso, não como idéia, porém como coisa que se está realmente observando, coisa que está à nossa frente, perguntamos a nós mesmos que sentido pode ter esse estado de coisas. Porque continuarmos a viver dessa maneira, nem vivendo nem amando, cheios de medo, cercado de terrores até à morte?

Se formulardes essa pergunta, que fareis? Ela não pode ser respondida pelos que se acham bem estabilizados em seus ideais familiais, suas casas confortáveis, seu dinheirinho, vivendo como pessoas altamente respeitáveis, burguesamente. Quando fazem perguntas, tais pessoas as traduzem em conformidade com suas necessidades individuais de satisfação. Mas, sendo este um problema muito humano, muito comum, um problema que toca a cada um de nós, ricos e pobres, jovens e velhos - porque é que vivemos esta vida tão monótona e sem significação - freqüentando um escritório ou trabalhando num laboratório ou fábrica por quarenta anos seguidos, gerando filhos educando-os de maneira absurda e, no fim, morrendo? Acho que deveis fazer esta pergunta com todo o vosso ser, a fim de descobrirdes a resposta. E então se pode fazer a pergunta subseqüente: se os entes humanos podem mesmo mudar radicalmente, fundamentalmente, e, assim, olhar o mundo de maneira nova, com olhos diferentes, com um coração novo, não mais repleto de ódio, de antagonismo, de preconceitos raciais; com uma mente perfeitamente clara, dotada de tremenda energia.

Vendo-se tudo isso - as guerras, as absurdas divisões criadas pelas religiões, a separação entre o indivíduo e a comunidade, a família oposta ao resto do mundo, cada (ente humano apegado a seu peculiar ideal, separando-se como "eu" e "vós", "nós" e "eles" - vendo-se tudo isso, tanto objetiva como psicologicamente, resta uma única questão, um único problema fundamental, ou seja se a mente humana, tão fortemente condicionada que está, pode mudar não em alguma encarnação futura, não no fim da vida, porem mudar radicalmente agora mesmo, de modo que se torne nova, revigorada, juvenil, inocente, livre de todas as cargas, e saibamos, assim, o que significa amar e viver em paz. Este me parece ser o único problema. Resolvido ele, todos os outros problemas, econômicos ou sociais, todos os fatores que conduzem à guerra, terminarão e haverá uma diferente estrutura social. (14) 

Pergunta: A família é o arcabouço do nosso amor e da nossa avidez, do nosso egoísmo e da nossa divisão. Que lugar tem ela?

Krishnamurti: A vida é uma coisa viva, uma coisa dinâmica, ativa, não podeis encerrá-la num arcabouço. São os intelectuais que põem a vida num molde (…) Em primeiro lugar, temos o fato de nossas relações com os outros, uma esposa, um marido ou um filho — as relações a que chamamos família. (15) 

Pois bem, que é isso a que chamamos família? Trata-se, obviamente, de uma relação de intimidade, de comunhão. Ora, em vossa família, em vossas relações com vossa esposa, vosso marido, há comunhão? (…) Relação significa comunhão sem temor, liberdade de mútua compreensão, de comunhão direta. (16) 

Estais em comunhão com vossa esposa? Talvez estejais, fisicamente, mas isso não é relação. Vós e vossa esposa viveis dos lados opostos de uma muralha de isolamento (…) Tendes os vossos alvos e ambições próprios e ela os seus. (17) 

Ora, se existem relações reais entre duas pessoas, o que significa que existe comunhão entre elas, o que isso implica é de extraordinária significação. Porque então não há isolamento, há amor, e não responsabilidade ou dever. Um homem que ama, porém, não fala de responsabilidade — ele ama. Por isso partilha com alguém a sua alegria, a sua tristeza, o seu dinheiro. (18)

Então, senhores, não é isso que está acontecendo? Em nossas famílias o que há é isolamento, e não comunhão; logo, não há amor. Amor e sexo são duas coisas diferentes (…) Se tivésseis interesse pelo próximo, se estivésseis em real comunhão com vossa esposa, com vosso marido, o mundo não estaria nesta desgraça. (19) 

Como, então, quebrar esse isolamento? Para quebrarmos esse isolamento, precisamos estar cônscios dele (…) Tomai nota da maneira como tratais vossa esposa, vosso marido, vossos filhos; notai a insensibilidade, a brutalidade, as asserções tradicionais, a falsa educação (…) E, por não saberdes amar vossa esposa, vosso marido, não sabeis amar a Deus. (20)

A família é um processo de identificação particularista; e quando a sociedade está baseada nessa ideia da família como unidade exclusiva, em oposição a outras (…), tal sociedade (…) há de produzir violência. (21)

Usamos a família como meio de segurança para nós mesmos. (…) Essa exclusão é chamada “amor”, e, nesse chamado estado de família ou de matrimônio, existe realmente amor? (…) Não estamos considerando o ideal do que ela deveria ser, mas (…) tal como a conhecemos. (22)

Entendeis por “família”, vossa esposa e vossos filhos (…) É uma unidade (…), e nessa unidade sois vós quem tem importância — não a vossa esposa, nem os vossos filhos ou a sociedade — mas somente vós, que estais em busca de segurança, de nome, de posição, de poder, tanto na família como fora dela. (23)

Dominais a vossa esposa, e ela vos é subserviente; vós ganhais e gastais o dinheiro, ela é vossa cozinheira e a progenitora dos vossos filhos. Criais, assim, a família, que é uma unidade exclusiva (…) Por conseguinte, não pode haver reforma do coletivo enquanto vós, como indivíduo, fordes exclusivista e buscardes o auto-isolamento em cada uma de vossas ações, limitando o vosso interesse a vós mesmos. (24)

Ora, esse processo de exclusão não é, por certo, amor. O amor não é criação da mente. O amor não é pessoal (…) O amor é algo que não pode ser compreendido enquanto existir o pensamento, que é exclusivista. O pensamento, que é reação da mente, nunca pode compreender o que é amor; o pensamento é invariavelmente exclusivista, separatista. (25) 

A família, como a conhecemos, (…) é exclusivista, é um processo de engrandecimento do “eu”, que é resultado do pensamento; (…) Dizemos que amamos a verdade, (…) a esposa, o esposo, os filhos; mas essa palavra está rodeada pelo fumo do ciúme, da inveja, da opressão, da dominação. (26)

Pergunta: Você é contra a instituição da família?

Krishnamurti: Sou, se a família for o centro de exploração, se estiver baseada na exploração. (Aplauso) Por favor, o que adianta simplesmente concordarem comigo? Têm que agir para alterar isto. Este desejo de perpetuação cria a família que se torna o centro de exploração. Portanto a pergunta é na realidade, pode-se alguma vez viver sem explorar? Não se a vida familiar está certa ou errada, não se ter filhos está certo ou errado, mas se a família, as posses, o poder, não são o resultado do desejo de segurança, de auto-perpetuação. Enquanto existir este desejo, a família torna-se o centro de exploração. Podemos alguma vez viver sem exploração? Eu digo que podemos. Tem que existir exploração enquanto houver esta luta pela auto-proteção; enquanto a mente procurar segurança, conforto, através da família, da religião, da autoridade ou da tradição, tem que existir exploração. E a exploração só cessa quando a mente discernir a falsidade da segurança e já não estiver enredada pelo seu próprio poder de criar ilusões. Se experimentarem com o que digo, compreenderão então que não estou a destruir o desejo, mas que podem viver neste mundo de uma maneira rica e sensata, uma vida sem limitações, sem sofrimento. Só podem descobrir isto experimentando, não negando, não através da resignação nem simplesmente imitando. Onde funciona a inteligência – e a inteligência cessa de funcionar quando há medo e o desejo de segurança – não pode haver exploração. (27)

Sabe, de fato não temos amor – essa é uma coisa terrível de se perceber. De fato não temos amor; temos sentimento; temos emocionalismo, sensualidade, sexualidade, temos lembranças de alguma coisa que pensamos que era amor. Mas de fato, brutalmente, não temos amor. Porque ter amor significa não ter violência, nem medo, nem competição, nem ambição. Se você teve amor, nunca dirá, “Esta é minha família.” Você pode ter uma família e lhe dar o melhor que pode; mas ela não será “sua família” que está em oposição ao mundo. Se você ama, se existe amor, existe paz. Se você amasse, educaria seu filho não para ser nacionalista, não para ter apenas uma profissão técnica e tratar apenas de seus pequenos assuntos; você não teria nacionalidade. Não haveria divisões de religião, se você amasse. Mas como essas coisas de fato existem – não teoricamente, mas brutalmente – este mundo hediondo, mostra que você não tem amor. Mesmo o amor da mãe por seu filho não é amor. Se a mãe realmente amasse seu filho, você acha que o mundo seria assim? Ela cuidaria que ele tivesse o alimento correto, a educação correta, que fosse sensível, que apreciasse a beleza, que não fosse ambicioso, ganancioso, invejoso. Então a mãe, conquanto ela possa pensar que ama seu filho, não ama. Então não temos esse amor. (28)

Pergunta: — Você disse ontem que se a pessoa se pudesse libertar do círculo de que se rodeia a família, aconteceria uma coisa extraordinária. Gostaria muito de compreender isso.

Krishnamurti: — Antes de mais, cada pessoa estará consciente — não verbalmente — de que há um muro à roda de si mesma? Cada um de nós tem um muro à sua volta, um muro de resistência, de medo e ansiedade — é o "eu" construído à minha volta a fazer essa barreira; é este  "eu" na família, cada membro da qual está também rodeado pelo seu próprio muro. Depois, é toda a família, com uma parede à sua volta, e o mesmo acontece com a comunidade e a sociedade. Ora, estaremos nós conscientes disso? Não temos nós o sentimento de que, vivendo neste mundo, isso é necessário, de outro modo o  "eu" seria destruído, assim como a família? Desse modo, mantemos o muro, como a coisa mais sagrada. Ora, se tomarmos consciência disso, que acontece? Se fizermos desaparecer completamente esse muro à volta de cada um, à volta da família, será que a família acaba? Que acontece então à competição entre o  "eu",  a família, e o resto do mundo?

Sabemos muito bem o que se passa quando há um muro — há então resistência, conflito, luta e sofrimento constantes, porque qualquer movimento separativo, qualquer atividade egocêntrica, gera de fato conflito e sofrimento. Quando se tem consciência de toda a natureza e estrutura deste círculo, deste muro, e se compreende como ele surge isto é, quando há um percebimento imediato de tudo isto — que sucede então? Quando fazemos desaparecer a divisão entre o  "eu"  e o  "tu" , o  "nós"  e o  "eles" , que acontece? Só então e não antes, se pode talvez usar a palavra amor. E o amor é que é essa coisa absolutamente extraordinária que acontece quando não há  "eu", como o seu círculo com o seu muro. (29)

A família não é um grupo autônomo, em oposição à sociedade?  Ela não é o centro de irradiação de todas as atividades, não constitui uma relação que exclui e domina todas as outras formas de relação? Não é uma entidade geradora de divisão, de separação, do superior e do inferior, do poderoso e do fraco? A família, como sistema, existe para resistir ao todo; cada família está em oposição às outras famílias, aos outros grupos. A família, com suas propriedades, seus bens, não é uma das causas da guerra?... A família, como hoje existe, é uma unidade, um centro de relações limitadas, egocêntricas e "exclusivas". Muitos reformadores e desses chamados revolucionários têm procurado eliminar esse espírito "exclusivo" da família, gerador de atividades anti-sociais de toda ordem. Entretanto, ela é um centro de estabilidade, em oposição à insegurança, e a presente estrutura social, no mundo inteiro, não pode existir sem essa segurança. A família não é uma mera unidade econômica, e é bem evidente que todo o esforço para resolver o problema desse nível, está fadado a falhar. O desejo de segurança não é apenas de natureza econômica, porém muito mais profundo e complexo. Se o homem destruir a família, encontrará outras formas de segurança, dadas pelo estado, pela coletividade, pela crença, etc. etc.; e qualquer dessas coisas gera, por sua vez, os seus problemas próprios. Temos de compreender o nosso desejo de segurança interior, psicológica, e não cuidar apenas de substituir um padrão de segurança por outro.

O problema, pois, não é a família, mas o desejo de estar em segurança. O desejo de segurança, em qualquer nível que seja, não é "exclusivo"? Esse espírito de exclusão se manifesta na família, na propriedade, no Estado, na religião, etc. Esse desejo de segurança interior não constrói formas exteriores de segurança sempre "exclusivas"? O próprio desejo de estar em segurança, destrói a segurança. A "exclusão", a separação, tem de acarretar, inevitavelmente, a desintegração, o nacionalismo; o antagonismo de classe e a guerra são os seus sintomas. A família como meio de segurança interior é uma fonte de desordens e catástrofes sociais... Compreendei, por favor, a verdade a esse respeito. É só quando não buscamos segurança interior, que podemos viver em segurança, exteriormente. Enquanto a família for um centro de segurança, haverá a desintegração social; enquanto a família servir de meio para um fim autoprotetório, terá de haver conflito e sofrimentos... Enquanto eu faço uso de vós ou de outro, para a minha própria segurança interior, psicológica, tenho de ser "exclusivo"; Eu sou importantíssimo, Eu tenho a máxima significação; esta é minha família, minha propriedade. As relações utilitárias estão baseadas na violência. A família como meio de mútua segurança interior é um fator de conflito e confusão... Fazer uso do outro como meio de satisfação e segurança, não é amor. O amor nunca é segurança; o amor é um estado em que não existe desejo de estar em segurança; é um estado de vulnerabilidade é o único estado em que a "exclusão", a inimizade e o ódio são impossíveis. Nesse estado, uma família pode tornar-se existente, mas não será "exclusiva", egocêntrica.

(...) É bom estarmos cônscios dos movimentos do nosso próprio pensar. O desejo interior de segurança se expressa exteriormente pela "exclusão" e a violência, e enquanto o seu "processo" não for perfeitamente compreendido não poderá haver amor. O amor não é um refúgio diferente, na busca de segurança. O desejo de segurança tem de cessar completamente, para que o amor possa vir. O amor não é uma coisa que possamos fazer surgir mediante compulsão. Qualquer forma de compulsão, em qualquer nível, é a negação mesma do amor. Um revolucionário com uma ideologia, não é revolucionário nenhum apenas oferece um substituto, uma segurança de qualidade diferente, uma nova esperança; e esperança é morte.  Só o amor pode promover uma revolução ou uma transformação radical nas relações; e o amor não é produto da mente. O pensamento pode planear e formular as mais estupendas e promissoras estruturas, mas, o pensamento só pode levar a mais conflito, confusão e miséria. O amor existe quando a mente astuciosa, a mente egocêntrica, não mais existe. (30)

Fonte das citações:

(1) Uma Nova Maneira de Agir - Cultrix
(2) A Cultura e o Problema Humano - Ed. Cultrix
(3) O vôo da águia - ICK - Amsterdã - 3/5/1969
(4) Liberte-se do Passado
(5) O Livro da Vida
(6) Krishnamurti no Chile e no México em 1935 - ICK
(7) Krishnamurti - sem citação da fonte - material da Net
(8) A Luta do Homem - Suas causas seus efeitos seu fim - ICK - Ojaí, Califórnia, USA, 1938
(9) A Luta do Homem
(10) O Livro da Vida
(11) O Livro da Vida
(12) Krishnamurti - sem citação da fonte - material da Net
(13) Uma Nova Maneira de Viver - 23 de novembro de 1947
(14) O vôo da águia - ICK - Amsterdã - 3/5/1969
(15) Novo Acesso à Vida, p. 40-41
(16) Novo Acesso à Vida, p. 41
(17) Novo Acesso à Vida, p. 41
(18) Novo Acesso à vida, p. 42
(19) Novo Acesso à vida, p. 42-43
(20) Novo Acesso à vida, p. 43
(21) Que Estamos Buscando?, 1ª ed., p. 248
(22) Que Estamos Buscando?, 1ª ed., p. 248
(23) Que Estamos Buscando?, 1ª ed., p. 248-249
(24) Que Estamos Buscando?, 1ª ed., p. 249
(25) Que Estamos Buscando?, p. 249
(26) Que Estamos Buscando?, p. 249-250
(27) Sobre a ação correta
(28) The Collected Works, Vol. XV Varanasi 5th Public Talk 28th November 1964
(29) O Mundo Somos Nós – Horizonte Pedagógico
(30) Reflexões sobre a vida - pág.124 à 126

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Automelhoramento é progresso no sofrimento e não eliminação do sofrimento

Uma das coisas mais difíceis de compreender parece-me ser o problema da transformação. Como vemos, existe progresso, de diferentes maneiras, a chamada “evolução”; mas há transformação fundamental no progresso? Não sei se esse problema já se vos terá apresentado ou se já alguma vez pensaste nele, mas talvez convenha o apreciarmos nesta manhã.

Vemos que há progresso, no sentido “visível” da palavra: novas invenções, automóveis e aviões melhores, geladeiras melhores, a paz superficial de uma sociedade adianta, etc. Mas esse progresso está produzindo alguma transformação radical no homem, em vós, em mim? Ele altera superficialmente a conduta de nossa vida, mas pode transformar fundamentalmente o nosso pensar? E como operar essa transformação fundamental? Acho ser este um problema que vale a pena considerar. Há progresso no automelhormento; amanhã posso ser melhor, mais amável, mais generoso, menos invejoso, menos ambicioso. Mas o automelhoramento produz a modificação completa do nosso pensar? Ou não há transformação nenhuma, mas só progresso? O progresso implica tempo, não? Sou assim hoje e serei um pouco melhor amanhã. Isto é, no melhoramento, na renúncia, na negação de mim mesmo, há uma progressão, um movimento gradual para uma vida melhor, o que significa que o indivíduo se está ajustando superficialmente ao ambiente, a um padrão melhorado, está sendo condicionado de maneira mais nobre, etc. Vemos constantemente esse processo em vigor. E já vos deveis ter perguntado, como eu o tenho feito, se o progresso produz revolução fundamental.

Para mim, a coisa mais importante não é o progresso, mas a revolução. Não fiqueis horrorizado com a palavra “revolução” — como fica a maioria das pessoas que fazem parte de uma sociedade adiantada, como esta. Mas quer-me parecer que, se não compreendermos a enorme necessidade de se produzir, não apenas uma melhora social, mas uma radical  mudança de nossa perspectiva , o mero progresso será progresso no sofrer; poder-se-á apaziguar, acalmar o sofrimento, que estará sempre latente. Afinal de contas, progresso, no sentido de nos tornarmos melhores num certo período de tempo, constituí, realmente, o “processo” do “eu”, do “ego”. Há evidentemente progresso no automelhoramento, que é o esforço decidido para se ser bom, para se ser mais isto ou menos aquilo, etc. Assim como há sempre melhoramentos nas geladeiras e nos aviões, assim também há a possibilidade de melhoramento do “eu”; mas este melhoramento, este “progresso”, não liberta a mente do sofrimento.

Nessas condições, se desejamos compreender o problema do sofrimento e, se possível, faze-lo cessar, não devemos de modo nenhum pensar em termos de progresso; porque o homem que pensa em termos de progresso, de tempo, e diz que será feliz amanhã, está vivendo no sofrimento. E para compreendermos este problema, temos de entrar fundo na questão da consciência, não achais? Este assunto é difícil demais? Vou continuar, e veremos.

Se desejo realmente compreender o sofrimento e ver o fim do sofrimento, tenho de verificar, não só quais são as coisas implicadas no progresso, mas também, que entidade é essa que deseja melhorar a ai mesma; e devo conhecer, também, o “motivo” que a impele a buscar melhoramento. Tudo isso é consciência. Existe a consciência superficial das atividades diárias: a ocupação, a família, o constante ajustamento ao ambiente social, de maneira feliz e fácil, ou de maneira contraditória, neurótica. E há também o nível mais profundo da consciência, que é a vasta herança social do homem, formada através de séculos: a vontade de existir, a vontade de alterar, a vontade de “vir a ser”. Se desejo realizar uma revolução fundamental em mim mesmo, sem dúvida preciso compreender esse processo total da consciência.

Pode-se ver claramente que o progresso não traz consigo nenhuma revolução. Não falo de revolução social ou econômica — que é muito superficial, como, penso eu, todos vós concordareis. A derrubada de um sistema social ou econômico e o estabelecimento de um novo, não altera certos valores, como é o caso da revolução russa, e de outras revoluções históricas. Refiro-me à revolução psicológica, a única revolução verdadeira; e o homem religioso deve achar-se nesse estado de revolução, de que falarei mais adiante.

Ao atacar-se este problema do progresso e da revolução, faz-se necessário um percebimento, uma compreensão do processo total da consciência. Entendeis? Enquanto eu não compreender realmente o que É a consciência, o mero ajustamento de superfície, conquanto possa ter significação sociológica e mesmo estabelecer uma melhor maneira de viver, com mais comida e menos miséria na Ásia, menos guerras, — nunca resolverá o fundamental problema do sofrimento. Sem se compreender, e dissolver, e transcender o impulso causador do sofrimento, o simples ajustamento social é a conservação, em estado latente, da semente do sofrimento. Assim sendo, tenho de compreender o que é a consciência, mas não de acordo com alguma filosofia, psicologia ou descrição, e, sim, “experimentando” diretamente o estado real de minha consciência, com todo o seu conteúdo.

Ora, possamos, nesta manhã, “experimentar” algo a esse respeito. Vou descrever o que é a consciência; mas, enquanto eu a estiver descrevendo, não vos limiteis a acompanhar a descrição, porém, antes, observai o “processo” do vosso próprio pensar, para conhecerdes, então, por vós mesmos, o que é a consciência, sem precisardes ler os relatos contraditórios das descobertas dos diferentes especialistas. Compreendeis? Eu estou descrevendo uma coisa. Se apenas escutais a descrição, ela terá muito pouca significação; mas, se, por meio da descrição, estais “experimentado” a vossa própria consciência , o vosso próprio “processo de pensar”, então ela terá uma importância extraordinária, agora mesmo, e não amanhã ou noutro dia qualquer, quando tiverdes tempo de refletir a tal respeito, o que vem a ser uma coisa completamente absurda, já que constitui um mero adiantamento.

Se, por meio da descrição, puderdes conhecer o verdadeiro estado de vossa própria consciência, enquanto aqui estais, sentados nos vossos lugares, vereis que a mente é capaz de libertar-se de sua vasta herança de condicionamento, de todas as acumulações e decretos da sociedade, e tem a possibilidade de ultrapassar a consciência do “eu”. Se experimentardes assim, terá utilidade a descrição.

Estamos procurando descobrir por nós mesmos o que é a consciência e se a mente tem a possibilidade de libertar-se do sofrimento — não de modificar o padrão de sofrimento, de decorar a prisão do sofrimento, mas de ficar livre, de todo, da semente, da raiz do sofrimento. Ao investigarmos isso, veremos a diferença que há entre o progresso e a revolução psicológica, que é essencial se desejamos a nossa libertação do sofrimento. Não estamos tentando alterar o conteúdo de nossa consciência, não estamos procurando fazer coisa alguma com relação a esse conteúdo; estamos, apenas, a observá-lo. Com efeito, por pouco que observemos, por mais ligeira que seja a nossa percepção, podemos conhecer as atividades da consciência superficial. Podemos ver que, na superfície, a nossa mente está ativa, ocupada em ajustar-se, ocupada num emprego, a ganhar o sustento, a expressar certas tendências, dotes, talentos, ou adquirindo certos conhecimentos técnicos; e quase todos nós nos satisfazemos com viver na superfície.

Por favor, não acompanheis meramente o que estou dizendo, mas observai a vós mesmos, vossa própria maneira de pensar. Eu estou descrevendo o que está passando superficialmente, na vossa vida diária — distrações, fugas, eventuais fases de medo, ajustamento à esposa, ao marido, à sociedade, etc.— e esta superficialidade basta à maioria de nós.

Ora, podemos mergulhar nas camadas mais profundas e perceber o “motivo” desse ajustamento superficial? Assim, com um pouquinho de conhecimento desse processo, vereis que esse ajustamento à opinião, aos valores, essa aceitação da autoridade, etc., é ocasionado pelo impulso de autoperpetuação, autoproteção. Mas, se descerdes mais fundo, achareis lá uma vasta subcorrente de instintos raciais, nacionais e tribais, todas as acumulações das lutas, do saber, dos empreendimentos humanos, dos dogmas e tradições do hinduísta, do budista, ou do cristão; todos os resíduos da chamada educação, através dos séculos — todas as coisas que nos condicionaram a mente de acordo com um certo padrão hereditário. E, descendo-se ainda mais fundo, lá estará o desejo primário de existir, de ter bom êxito na vida, de “vir a ser”, o qual se expressa, na superfície, em várias formas de atividade social, criando ansiedades e temores de fundas raízes. Dito mui suscintamente, a totalidade dessas coisas é a nossa consciência. Por outras palavras, o nosso pensar se baseia no impulso fundamental para existir, para vir a ser, e, acima deste, se encontram as muitas camadas de tradição, de cultura, educação, e o condicionamento superficial de uma dada sociedade, forçando-nos, tudo isso, a adaptar-nos a um padrão que nos possibilita sobreviver. Há muitos outros pormenores e sutilezas, mas, em essência, isto é a nossa consciência.

Pois bem. Todo progresso realizado dentro dessa consciência constitui automelhoramento, e automelhoramento é progresso no sofrimento, e não eliminação do sofrimento. Isto é muito claro, se observardes. E se a mente tem muito interesse em ficar livre de todo sofrimento, que deve fazer? Não sei se já pensastes neste problema, mas tende a bondade de pensar agora.

Nós sofremos, não é exato? Sofremos não só por doença ou incômodos físicos, mas também por causa da solidão, da pobreza do nosso ser. Sofremos porque não somos amados. Quando amamos alguém e não temos retribuição desse amor, sofremos. Em todos os sentidos, pensar é estar cheio de angústias; por conseguinte, parece-nos que será melhor não pensar e aceitamos, assim, uma crença, e ficamos estagnados nessa crença, a que chamamos religião.

Ora, se a mente perceber que o sofrimento não tem fim por via do automelhoramento, do progresso, o que é muito evidente, que deve ela fazer? Pode a mente transcender essa consciência, transcender os vários impulsos e desejos contraditórios? E esse transcender depende do tempo? Segui isso, não só verbalmente, mas realmente. Se é coisa dependente do tempo, voltais então à mesma cosia, isto é, ao progresso. Percebeis isso? Dentro da estrutura da consciência, todo movimento, em qualquer direção, é automelhoramento, e por conseguinte faz continuar o sofrimento. O sofrimento pode ser controlado, disciplinado, subjugado, racionalizado, requintado, mas a sua qualidade potencial continuará a existir; e para nos vermos livres do sofrimento precisamos libertar-nos dessa potencialidade, dessa semente do “eu”, do “ego”, de todo o processo de “vir a ser”. Para passarmos além, é necessária a cessação desse processo. Mas, se disserdes: “Como poderei passar além?”, nesse caso, o “como” se torna o método, prática, quer dizer, progresso, que não é uma maneira de passar além, mas só de tornar mais apurada a consciência do nosso sofrer. Espero que estejais compreendendo.

A mente pensa em termos de progresso, de melhoramento, de tempo; e é possível que, reconhecendo que o chamado progresso é “progresso no sofrer”, essa mente cesse de todo, não no tempo, não amanhã, mas imediatamente? De outra maneira, ver-nos-emos de novo na mesma rotina, na velha roda de suplícios. Se o problema está enunciado de maneira clara e for claramente compreendido, vós encontrareis a solução absoluta. Emprego a palavra “absoluta” no seu sentido correto. Não há outra solução.

Isto é, nossa consciência está constantemente lutando para ajustar, modificar, mudar, absorver, rejeitar, avaliar, condenar, justificar; mas todo movimento semelhante, da consciência, está sempre dentro do padrão do sofrimento. Todo movimento que ocorre dentro dessa consciência, como sejam, os sonhos, os esforços da vontade, é movimento do “eu”; e todo movimento do “eu”, seja em direção das coisas mais sublimes, seja em direção das coisas mais mundanas, gera sofrimento. Quando a mente percebe isso, que lhe acontece? Compreendeis a pergunta?  Quando a mente percebe a verdade a esse respeito, não apenas verbalmente, mas totalmente, existe então algum problema? Existe problema quando observo uma cascavel e sei que ela é venenosa? Analogamente, se sou capaz de prestar toda atenção a esse “processo” do sofrimento, não está então a mente além do sofrimento?

Tende a bondade de prestar atenção. Nossa mente está agora ocupada com o sofrimento e o modo de evitar o sofrimento, esforçando-se para dominá-lo, diminuí-lo, modifica-lo, fugir dele de várias maneiras. Mas, se percebo, não superficialmente apenas, mas através de todas as camadas, que essa própria ocupação da mente com o sofrimento é movimento do “eu”, criador de sofrimentos; se percebo realmente a verdade a esse respeito, não ultrapassou então a mente essa coisa que chamamos consciência do “eu”?

Expressando-o diferente: Nossa sociedade está baseada na inveja, no desejo de aquisição, não só aqui na América, mas também na Europa e na Ásia, e nós somos o produto dessa sociedade, existente há séculos e milênios. Ora bem, prestai atenção. Reconheço que sou invejoso. Posso apurar esse sentimento, controla-lo, discipliná-lo, encontrar-lhe um substituto através de atividades caritativas, reformas sociais, etc.; mas a inveja lá estará sempre, latente, pronta a saltar para fora. Como pode, então, a mente libertar-se totalmente da inveja? Pois a inveja traz inevitavelmente conflito, a inveja é um estado em que não há ação criadora; e todo homem que deseja descobrir o que é “ação criadora” deve, é óbvio, estar livre da inveja, da comparação, dos impulsos para “vir a ser”.

A inveja é um sentimento que identificamos com uma palavra. Identificamos o sentimento dando-lhe um nome, aplicando-lhe o termo “inveja”. Prosseguirei lentamente e tende a bondade de seguir-me, pois estou fazendo a descrição de nossa consciência. Há um certo estado de sentimento, e a esse estado dou um nome, chamando-o “inveja”. Esta mesma palavra “inveja” é condenatória, tem significados sociais, morais e espirituais, que fazem parte da tradição em que fui educado; assim, pelo próprio emprego da palavra, condenei o sentimento, e esse processo de condenação é automelhoramento. Quando condeno a inveja, estou progredindo na direção oposta, que é a da “não-inveja”, mas esse movimento parte, ainda, do centro que é invejoso.

Pode, pois, a mente por fim ao “dar nome”? Quando há sentimento de ciúme, de concupiscência, de ambição de ser alguma coisa, pode a mente, que foi educada no uso da palavra, na condenação, no dar nome, deter completamente o “processo” de dar nome? Experimentai isso, e vereis como é difícil não dar nome a um sentimento. O sentimento e o dar nome são quase simultâneos. Mas, quando não ocorre a ação de dar nome, há então sentimento? Persiste o sentimento, quando não se lhe dá nome algum? Estais compreendendo, ou isto é abstrato demais? Não concordeis nem discordeis de mim, pois não se trata de minha vida, mas de vossa vida.  

Esse problema de dar nome a um sentimento, aplicar-lhe um termo, faz parte do problema da consciência. Tomai, por exemplo, a palavra “amor”. Que deleite a mente experimenta, no mesmo instante, com essa palavra! Ela encerra tanta significação, tanta beleza, tanto conforto, e tantas outras coisas! E a palavra “ódio” tem imediatamente uma significação toda outra, de coisa que se deve evitar, da qual devemos livrar-nos, fugir, etc. Tem, pois, as palavras, um extraordinário efeito psicológico para a mente, quer estejamos cônscios disso, quer não.

Ora, pode a mente ficar livre de toda essa “verbalização”? Se pode — e ela deve poder, porque do contrário não irá muito longe — surge então o problema: Existe um “experimentador” separado da “experiência”? Se existe experimentador separado da experiência, então a mente está condicionada, porque o experimentador está sempre a acumular ou rejeitar experiências, a traduzir cada experiência em termos de seus próprios gostos e aversões, em termos ditados pelo próprio fundo, seu condicionamento; se ele tem uma visão, pensa que ela é Jesus, um Mestre, ou sabe Deus o que mais. Assim, enquanto há experimentador, há “progresso no sofrer”, que é o processo próprio da consciência do “eu”.

Mas, para se passar além, para se transcender tudo isso, requer-se uma atenção extraordinária. Esta atenção total, na qual não há escolha alguma, nem ideia de “vir a ser”, mudar, alterar, liberta a mente do “processo” da consciência do “eu”; e então não existe mais “experimentador” que acumula, e só então é que se pode dizer com veracidade que a mente está livre do sofrer. A acumulação é que é a causa do sofrimento. Nós não morremos para todas as coisas, de dia em dia, não morremos para as inumeráveis tradições, para a família, para as nossas próprias experiências, nosso próprio desejo de fazer mal a outrem. Precisamos morrer para TUDO isso, de momento a momento, morrer para esta vasta memória constituída de acumulações, porque só então a mente está livre do “eu”, a entidade nascida da acumulação.

Talvez, se examinarmos juntos esta questão, possamos esclarecer tudo o que foi dito.   

Krishnamurti - Realização sem esforço - pág. 46 à 55. - Ojai, Califórnia, USA - 14 de agosto de 1955

Por que somos desatentos?


Pergunta: Não ter senso de condenação, justificação ou comparação, significa achar-se num estado de consciência superior. Eu não me acho nesse estado e, assim, como poderei alcança-lo?

KRISHNAMURTI: Vede, senhores, a própria pergunta “como poderei alcança-lo?” é de natureza invejosa. (Risos). Não riais, senhores, prestai atenção, por favor. Vós desejais ganhar alguma coisa, e por isso tendes métodos, disciplinas, religiões, igrejas, toda esta superestrutura edificada sobre a inveja, a comparação, a justificação, a condenação. Nossa civilização está baseada nesta divisão de hierárquica entre os que têm mais e os que têm menos, os que sabem e o que não sabem, os que são ignorantes e os que estão cheios de sapiência e, por isso, a maneira de encararmos o problema está completamente errada. O interrogante diz: “Não ter sensod e condenação, justificação ou comparação, é achar-se num estado superior de consciência”. É exato? Ou acontece simplesmente que não estamos cônscios de estar condenando, comparando? Por que afirmamos logo que aquele estado é um superior de consciência e, em seguida, em consequência dessa afirmativa, criamos o problema de “como” alcançar tal estado e saber “quem” nos ajudará alcança-lo? A coisa não é muito mais simples?

Isto é, não estamos cônscios de nós mesmos, em absoluto, não percebemos que estamos condenando, comparando. Se pudermos observar-nos todos os dias, sem condenarmos, nem justificarmos coisa alguma, se pudermos estar simplesmente cônscios de que nunca pensamos sem julgar, comparar, avaliar, então, esse próprio percebimento será suficiente. Estamos sempre a dizer: “este livro não é tão como o outro”, ou “Este homem é melhor do que aquele”, etc.; está sempre em vigor este constante processo de comparação, e pensamos que pela comparação compreendemos alguma coisa. Mas, compreendemos? Ou só vem a compreensão quando não estamos comparando, mas prestando atenção? Há comparação ao observardes uma coisa com toda a atenção? Quando estais totalmente atento, não tendes tempo para comparar, tendes? No momento em que comparais, vossa atenção fugiu para outra coisa. Quando dizeis “O pôr do sol, hoje, não está tão bonito como esteve ontem” — não estais realmente olhando o pôr do sol, pois a vossa mente fugiu para a lembrança de ontem. Mas, se puderdes observar o pôr do sol de maneira completa, total, com toda a vossa atenção, então, decerto, não existirá mais comparação.  

O problema, pois, não é de como alcançar alguma coisa, mas sim: Por que não somos atentos? Não somos atentos porque, evidentemente, não temos interesse. Não digais: “mas como posso ter interesse?” Esta pergunta não cabe aqui, pois não estamos tratando disso agora. Por que deveis ter interesse? Se não tendes interesse em escutar o que se está dizendo, por que vos incomodardes? Mas vós estais incomodado, porque vossa vida é cheia de inveja, de sofrimentos e por isso desejais uma resposta, um significado. Se desejais um significado, então prestai toda atenção. A dificuldade está em que não temos interesse sério em coisa alguma — “sério”, no correto sentido da palavra. Quando dais atenção completa a uma coisa, não estais procurando obter nada dessa coisa, estais? Nesse momento de atenção total, não existe inveja, não existe nenhuma entidade que esteja procurando mudar, modificar-se tornar-se algo, não existe “eu”. No momento da atenção, o “eu” está ausente, e é este momento de atenção que é bom, que é amor.

Krishnamurti – A realização sem esforço – Ojai, Califórnia, USA – 13 de agosto de 1955

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A mente invejosa nunca pode estar tranquila

Pergunta: Afirmam alguns filósofos que a vida tem finalidade e significação; outros, porém, sustentam que a vida é puramente acidental e absurda. Que dizeis vós? negais o valor dos alvos, dos ideais e intenções; mas, sem isso, tem a vida alguma significação?

KRISHNAMURTI: Devemos atribuir tanta atenção ao que dizem os filósofos? Certos intelectuais dizem que a vida tem finalidade, tem significação, enquanto outros dizem que ela é acidental e absurda. Ora, cada um a seu modo, negativa ou positivamente, tanto uns como outros estão conferindo significação à vida, não achais? Um afirma, outro nega, mas essencialmente os dois são iguais. Isso é perfeitamente claro. 

Pois bem. Quando perseguis um ideal, um objetivo, ou indagais qual é a finalidade da vida, tal indagação ou busca está baseada no desejo de dar significação à vida, não está? Não sei se estais seguindo isto.

Minha vida é insignificante — suponhamos — e trato pois de dar-lhe significação. Pergunto: "Qual é a finalidade da vida?" — porque, se a vida tem alguma finalidade, poderei então viver em harmonia com essa finalidade. E, assim, invento ou imagino uma finalidade, ou, pela leitura, pela investigação, pela busca, encontro uma finalidade: estou, por conseguinte, dando significação à vida. Como o intelectual, à sua maneira, dá significação à vida, negando ou afirmando que ela tem finalidade e um significado, nós também atribuímos significação à vida por meio de nossos ideais, da busca de um alvo, de Deus, de Amor, da Verdade. E isso, com efeito, significa que, se não damos significação à vida, nossa existência não terá para nós importância alguma. O viver não nos parece tão bom como desejaríamos que fosse, e por isso desejamos dar significação à vida. Não sei se estais percebendo isto.

Qual é a significação de nossa vida, da vossa e da minha, independentemente dos filósofos? Ela tem alguma significação, ou lhe estamos dando significação pela crença, tal como faz o intelectual que se torna católico,  isto ou aquilo,  encontrando assim um abrigo? Como seu intelecto reduziu tudo a cacos, ele se vê agora sozinho, desamparado, etc., e não podendo suportar tal estado, necessita de uma crença, no catolicismo, no comunismo em qualquer coisa que lhe dê alento e dê significação à sua vida.

Agora, pergunto a mim mesmo: Por que razão queremos uma finalidade? E que significa viver sem finalidade alguma? Compreendeis? Sendo a vossa vida vazia, atribulada, triste, precisamos dar-lhe uma significação. E há possibilidade de ficarmos cônscios de nosso vazio, nossa solidão, nossos sofrimentos, todas as tribulações e conflitos de nossa existência, sem darmos, artificialmente, um significado à vida? Podemos estar cônscios dessa coisa extraordinária que chamamos a vida — que significa ganhar o próprio sustento, que significa inveja, ambições e desenganos — estar cônscios, simplesmente, de tudo isso, sem condenação ou justificação, e passar além? A mim me parece que, enquanto estivermos procurando ou dando alguma significação à vida, estaremos perdendo algo de extraordinário e vital.  O mesmo acontece com o homem que quer achar a significação da morte e está constantemente empenhado em racionalizá-la, explicá-la, e impedindo, assim, de "experimentar" o que é a morte. Apreciaremos este ponto noutra palestra.

Não nos estamos esforçando, todos nós, para acharmos uma razão para a nossa existência? Quando amamos, temos uma razão para isso? Ou é o amor o único estado em que "não há razão de espécie alguma, nem explicação, nem esforço, nem luta para ser alguma coisa?" Talvez desconheçamos esse estado. E, desconhecendo-o, tentamos imaginá-lo, dar uma significação à vida; mas, como nossa mente está condicionada, e portanto é limitada, superficial, a significação que damos à vida, os nossos deuses, os nossos ritos, os nossos esforços, tudo também é medíocre.

Não importa, pois, descubramos por nós mesmos qual a significação que damos à vida, se o fazemos? Não há dúvida de que os intentos, os alvos, os Mestres, os deuses, as crenças, os fins que buscamos nosso preenchimento, são todos inventados pela mente, todos produtos de nosso próprio condicionamento; e, compreendendo-se isto, não é importante "descondicionar" a mente? Quando a mente não está mais condicionada e, por conseguinte, não está dando significação à vida, a vida então se torna uma coisa extraordinária, uma coisa totalmente diferente da estrutura construída pela mente. Mas, primeiro que tudo, precisamos conhecer o nosso condicionamento, não é verdade? E podemos conhecer nosso condicionamento, nossas limitações, nosso fundo, sem procurar forçá-lo ou analisá-lo, sublimá-lo ou reprimi-lo? Pois tal processo implica a entidade que observa e se separa da coisa observada, não é exato? Enquanto houver observador e coisa observada, o condicionamento tem que continuar. Por mais que o observador, o pensador, o censor lute para livrar-se de seu condicionamento, continuará preso nesse condicionamento, uma vez que a divisão entre "pensador" e "pensamento", "experimentador" e "experiência", é o próprio fator que perpetua o condicionamento; e é extremamente difícil fazer desaparecer tal divisão, uma vez que aí está presente todo o problema da vontade.

Nossa civilização se baseia na vontade, a vontade de ser, de "vir a ser", alcançar, realizar; por esta razão, está sempre presente em nós a entidade que quer modificar, controlar, alterar aquilo que observa. Mas há diferença entre aquilo que esta entidade observa, e ela própria, ou ambos são uma só entidade? Aqui está uma coisa que não é para se aceitar irrefletidamente. Ela tem de ser pensada, examinada com muita paciência, delicadeza, cautela, de maneira que a mente não fique separada da coisa em que pensa, e o observador e a cosia observada sejam psicologicamente uma só entidade. Enquanto eu continuar psicologicamente separado daquilo que em mim percebo como "inveja", lutarei para dominar essa inveja; mas esse "eu", essa entidade que faz esforço para dominar a inveja, é diferente da inveja? Ou são ambos a mesma coisa, e o "eu" só se separou da inveja para dominá-la, porque a inveja é um sentimento doloroso, e por várias outras razões? Mas, justamente essa separação é a causa da inveja.

Talvez não estejais habituados a esse modo de pensar, e o acheis um pouco abstrato. Mas a mente invejosa nunca pode estar tranquila, porque está sempre comparando, sempre procurando "vir a ser" algo que ela não é; e se nos decidirmos a penetrar esse problema da inveja, radicalmente, profundamente, toparemos inevitavelmente com este problema, ou seja, se a entidade que deseja libertar-se da inveja não é a própria inveja. Ao perceber perceber-se que é a própria inveja que deseja libertar-se da inveja fica então a mente cônscia desse sentimento chamado inveja, sem nenhuma idéia de condená-lo ou libertar-se dele. E, daí, surge outro problema: Há sentimento, se não há verbalização? Pois a própria palavra "inveja" é condenatória, não é verdade? Estou dizendo algo demasiado muito súbito?

Existe sentimento de inveja, se não dou nome a tal sentimento? Pelo próprio fato de lhe dar nome, não estou nutrindo o sentimento? O sentimento e o dar-lhe nome são quase simultâneos, não é verdade? E é possível separá-los de tal maneira que só se tenha uma sensação de reação, sem nome algum? Se investigardes isso, realmente, vereis que, quando não se dá nome ao sentimento, a inveja se acaba — não simplesmente a inveja que uma pessoa sente porque outra é mais bela ou tem um carro melhor, ou por outra estupidez qualquer, mas a essência profunda da inveja, a raiz da inveja. Todos somos invejosos, de diferentes maneiras, não há um só que não seja invejoso. Mas a inveja não é apenas a manifestação superficial; ela é aquele senso de comparação que penetra tão fundo e ocupa uma tão grande porção da mente. E para ficarmos radicalmente livres da inveja tem de deixar de existir o "observador" da inveja, que quer libertar-se da inveja. Apreciaremos isso noutra ocasião.

Krishnamurti - Realização sem esforço - pág. 40 à 44 - 13 de agosto de 1955 - Ojai, Califórnia, USA
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill