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sábado, 31 de agosto de 2013

O que estamos buscando?



Já que ninguém se manifestou para subir, eu vou tentar compartilhar um pouquinho, das vivências aqui, das percepções, não é? do momento. Sei lá! O que vier! Uma das coisas que eu já tenho muito em mente é que a mensagem, a transmissão da percepção, do momento, não pode ser organizada. Se eu começar a organizar, se eu tentar me preocupar em expressar alguma coisa já é o próprio fortalecimento do eu, é o próprio fortalecimento do ego, que pode até sair muito bonito, mas não vai tocar de coração pra coração; pode soar bonito e tocar de intelecto pra intelecto. Mas, o que funciona mesmo é essa reverberação, essa coisa que vem sem ser organizada e que surge quando se dá espaço pra essa consciência que somos, se manifestar, sem se preocupar em ficar buscando na memória a coisa; a coisa flui naturalmente, não é? A coisa flui naturalmente. E a gente vem aí tentar trocar o porquê dessa sala, o porquê desses encontros, e o que a gente está conseguindo vivenciar e às vezes a gente entra um pouco no processo histórico dessa personagem de algumas décadas, e o que se está percebendo.

Achei esse tema muito interessante, nós extraímos ele de um livro, que não precisaria nem abrir o livro; era só ficar na capa desse livre do Krishnamurti, não é? “O que estamos buscando?”... O nome do livro é esse... é “O que estamos buscando?”, não é? Por que começamos a buscar alguma coisa, não é? Por que, não é?

Eu percebo que é assim: esse é um vício herdado, é um vício “transgeracional”, não é? Essa busca que você vai ser alguma coisa, ou que você vai encontrar a felicidade quando lá na frente você vir a ser alguma coisa ou vir a ter alguma coisa, não é? Todos aqui já devem ter perguntado para uma criança, como, quando criança, com certeza ouviram de algum adulto significativo, aquela pergunta: “o que você vai ser quando crescer?” não é?... “O que você vai ser?” Quer dizer: você não é! Você não é nada agora!... Só lá na frente, lá num futuro longínquo, não é? se você adotar umas letrinhas na frente do seu nome, com um quadrinho pendurado na parede, com uma estampilhazinha numa moldura, aí você vai ser alguma coisa, não é? Se você conseguir a casa da praia, a casa de campo, as viagens pela Europa e blá-blá-blá, blá-blá-blá, aí você vai ser alguma coisa, não é? E aí a gente sai partido atrás das coisas que esses adultos adulterados, com a sua educação, com a sua chamada educação adulterada, vão apontando, como fatores a serem conquistados e que prometem por felicidade; e que prometem pôr respeitabilidade; e que prometem por segurança. E aí lá vai aqui o garoto, cheio de medo, cheio de vergonha, cheio de sentimentos de inadequação, conseguidos aí dentro de um lar disfuncional, de muita repressão emocional, física, verbal, temendo o ambiente de alcoolismo e neurose; de ambientes escolares também profundamente neuróticos, onde não há a mínima expressão de uma educação psíquica, de uma educação amorosa, e eu saio correndo atrás dessas coisas que me colocaram como sendo válidas pra buscar, sem ter a mínima possibilidade de fazer qualquer questionamento quanto a esses posicionamentos aí; quanto a essas condições que foram colocadas pro freguês aqui, pra que ele fosse um homem de verdade, pra que ele fosse um homem de sucesso, pra que ele fosse um homem respeitado.

Então assim: não houve muita opção de escolhas; “É fazer ou fazer!... E engole o choro! Certo?... Engole o choro!... Vai atrás aí! Se vira nos trinta! Porque se não fizer desse jeito vai para o reformatório, certo?”... “Vai pro reformatório! Nós vamos botar você na forma aí! Não vem com essa rebeldia, ai!”

Então, aí, como você não é um adulto ainda; como você não tem nenhuma inteligência psíquica, capaz de te proporcionar aí uma autonomia psicológica, você fica nessa mendicância, da aceitação, dos tapinhas nas costas, não é? dessas pessoas significativas da sua vida. Mesmo que isso que você está fazendo para ter aceitação, “condicionada”,  e que eles chamam de amor, você se estrumbique todo, se arrebente todo, se corrompa todo. Porque, corrupção, não é só passar dinheiro embaixo da mesa; corrupção é fazer tudo aquilo que fere, que contraria o seu mais íntimo estado de ser, não é?

Então, durante anos e anos, foi um processo de auto-corrupção, de auto-sabotagem aí, por querer fazer frente a essas descabidas exigências de uma estrutura familiar e social profundamente adulterada, profundamente corruptora da essência do ser que somos; que mata toda a sensibilidade; que arrebenta toda a originalidade; que estrangula toda a autenticidade.

Então, assim, você fica exposto por algumas décadas aí; pelo menos uma década e meia à esse tipo de ambiente abusivo, à esse tipo de estrutura social abusiva, limitante, que só quer fazer você ser uma peça consumista; que só quer fazer você “funcionar”, você ser um “funcionário” de sistema que faz você só uma peça para alimentar esse sistema, que não está nem um pouquinho preocupado em fazer sair essa inteligência que está aí; e trazer seu sopro; e traze sua voz;  e trazer a sua nota; não tem nada disso... É uma estrutura que é só puro ajustamento a um processo tremendamente escravagista, limitante e que aqueles que não foram totalmente adulterados em sua sensibilidade, é óbvio que vão sentir uma dor muito forte e vão precisar de algum processo de anestesiar a esses sentimentos; de anestesiar essa dor dessa corrupção transgeracional; essa corrupção da essência daquilo que somos, pra nos ajustar àquilo que dizem que temos que ser, não é?

Então a gente sai aí durante muito tempo buscando tudo isso, pra ter essa respeitabilidade, pra ter essa aceitação, pra ter essa validação, pra ter esse seu cantinho, não é? onde você possa mostrar pros outros que você está sendo um homem de sucesso; que você merece respeito; que você merece ser convidado pros almoços de domingo. E todo mundo entra nesse joguinho!... Profundamente descontente!... Porque quando começa a tocar música do “Fantástico”,  no domingo, todo mundo sabe muito bem aquela depressão que bate e tem que correr pra geladeira, abrir e comer alguma coisa, um chocolatinho, um docinho, um salgadinho, porque lá vem a segunda-feira, não é na cara? Com a mesma rotina, o mesmo tedio, a mesma insatisfação e aquele esforço violento, com os dentes “branco de laboratório químico”, pra disfarçar que eu sou um cara feliz, que eu sou um cara ajustado, não é cara?...

Essa aí foi minha história até que veio a depressão! E eu agradeço profundamente e, toda vez que vejo alguém com depressão eu estico a mão e dou os meus parabéns: “Você é uma bem-aventurado!”... Porque a depressão não é nada mais, nada menos, de um grito dessa inteligência psíquica, dessa inteligência que somos, dizendo: “Chega!... Chega!... Chega!... Não dá mais para se ajustar ao que não é ajustável!... Ou você faz o resgate daquilo que você é, ou eu te mato!”
Então, assim: pra mim, esse processo brecou com essa depressão profunda que quase me levou ao suicídio; por muito pouco não cheguei ao suicídio; que era uma compreensão errada da necessidade de um “egocídio” aí, que vem, sem esforço, que vem por esse processo do início de uma educação psíquica, e que cada um começa ter essa educação psíquica dentro dos ambientes que vão encontrando aí; dentro dos ambientes que vão encontrado. A minha educação psíquica começou dentro de um centro espírita, que foi o primeiro lugar que eu comecei a contrariar o processo nefasto do cristianismo que me foi apresentado; veja bem: do cristianismo que me foi apresentado; não estou falando mal contra o cristianismo, não. E aí começou todo um processo: encontrei os grupos anônimos, não é? A quem eu sou profundamente grato; em cada grupo anônimo que eu fiz parte, foi uma oficina aí de trabalho, pra colocar esses instintos naturais que nos foram dadas aí pela Grande Vida, que estavam totalmente deturpados pela ação dos condicionamentos... desse egocentrismo aí. Então, cada oficina aí foi trabalhando numa questão aí; e essas questões que me levaram a esses grupos, num determinado momento, elas foram sanadas, só que aí ficou um grande vazio, porque esse processo, esse processo de bê-á-bá psíquico, essa educação psíquica que a gente começa a colher em todas essas escolas aí; acredito que todas essas escolas que a gente foi passando aí — cada um sabe por onde passou — elas vão tirando esses condicionamentos materialistas, mas elas criam os condicionamentos espiritualistas, que às vezes são profundamente impossíveis — pelo menos pro freguês aqui, não era palpável, não é possível, não é possível. Quer dizer: eu troco uma imagem e vou pra uma imagem espiritualista e saio buscando isso daí.

Então, chegou um momento que essa busca também não estava funcional; não estava mais surtindo resultado; e foi aí que caiu na mão esse material aí, com, inicialmente, o Osho e depois com Krishnamurti. Houve antes de Krishnamurti, houve um período legal com o Osho e depois quando caiu Krishnamurti, aí a coisa começou a descer redondo... E ele começou a quebrar todos esses condicionamentos que eu também fui colhendo dentro dessa chamada busca da verdade, dessa chamada busca do despertar; que na realidade eu não estava buscando nada disso! Não estava tendo busca da verdade coisa nenhuma! Não estava tendo a busca da espiritualidade coisa nenhuma! O que ocorria é que havia um estado de profunda contradição interna, em tudo! Em tudo! Nas
nas relações; no cotidiano; na profissão... Em tudo!... Do freguês com o freguês mesmo!... Então, o que tinha aqui era uma busca pra desabafar aquele profundo estado de contradição. Foi sempre isso! Sempre procurando alguém pra me dizer como fazer pra sair daquele estado de conflito... Sempre foi isso! Não tinha esse negócio de correr atrás da verdade!

E aí eu  percebo que essa coisa de buscar um Deus, aqui pro freguês, foi na realidade a tentativa de achar alguma coisa que pudesse tirar aquela dor que os humanos em volta de mim, por mais boa vontade que tivessem, tinham a sua limitação e não conseguiam expressar aquilo. Sabe aquela coisa que o poeta fala, não é? “Ninguém está me dizendo que eu quero ouvir; e ninguém também está entendendo que eu estou querendo dizer!” E aí, quando cai esse material do Krishnamurti,  começo a perceber a realidade de como usei esses ambientes como uma fuga; como usei essas imagens, essas ideias de Deus, esses conceitos, esses achismos, todo esse material metafísico, esotérico, de auto-ajuda, simplesmente para tentar acabar com a dor e manter as zonas de conforto... E manter as zonas de conforto sem questioná-las. Só que é bem o que eu falei no encontro de ontem, não é? Krishnamurti não vem trazer paz pra ninguém, não! Não vem mesmo! Como nenhum homem aí que tenha tido uma percepção, como a verdade, não é? Porque não é o homem, não é a personalidade, mas essa Consciência que está ali, naquele veiculozinho de carnê e osso ali, ele não vem trazer paz, ele vem trazer a espada mesmo! Vem cortar aí, tudo o que é falso! Vem cortar tudo que é falso! E o que é difícil é justamente isso: esse processo de autoconhecimento, começa apresentar a falência de tudo o que foi montado durante décadas, em nome de encontrar essa respeitabilidade; e aí você começa a olhar a “natureza exata” de cada uma dessas relações, e começa a ver que cada uma dessas relações não foram montadas na base sólida do amor: foram sempre montadas em cima da busca da satisfação de algum instinto degenerado... É o instinto degenerado de segurança; o extinto degenerado do sexo; do companheirismo; do medo da solidão e do abandono; da facilitação diante da vida material... E aí você não sabe o que fazer com tudo isso, porque você começa a ver a grande fraude — a grande fraude — que é essa personalidade que seguiu um script social, que foi escrito por quem ele nem sabe quem escreveu isso... Então fica muito difícil olhar pra isso; e só os sérios mesmo, aqueles que tem saco roxo, vão conseguir olhar isso, de uma maneira como um cientista: sem entrar naquelas ideias reativas que o próprio pensamento cria. Porque o pensamento, ele também vai pegar tudo isso que a Consciência está trazendo à consciência, para criar conflito, para criar aquelas reações inconscientes inconsequentes, então chutar o pau da barraca de tudo! E não é bem isso a proposta! Pelo menos da minha compreensão aqui, na compreensão do freguês aqui; qualquer a ação que seja desse ego, desse fundo, pode trazer um alívio momentâneo, mas traz mais confusão ainda! Enquanto qualquer movimentação foi por essa base — a base é a confusão — o resultado vai ser confuso. Isso a gente foi vendo aí nessa caminhada e tem visto o quanto realmente é difícil ficar só sentado observando, porque pra mente lógica, cartesiana, racional, que foi condicionada a resolver problemas, a criar problemas e resolver problemas, a ter algum tipo de ação, “você tem que se doar”, “você precisa exercitar”, “você precisa e isso”,  “você precisa fazer caridade”... Que é uma puta sacanagem, não é cara?... Você é usar o cara que está mais ferrado, para tentar tampar seus buraco aí, pela falta de competência de compreender a si mesmo, não é? É uma puta sacanagem esse negócio de caridade, não é cara?... Que criança esperança essa daí, não é cara?

Então, assim: hoje, fica bem claro, que o lance é só observar; só observar... Não é? Não buscar mais absolutamente nada! É um momento muito difícil também você se deparar, não é? Porque é frustra inclusiva essa ideia de “iluminação”. Frustra tudo! Esse material frustra tudo isso aí! Frustra toda a imagem que é criada; é tudo imagem! Até a imagem da iluminação, do que a eliminação pode trazer pra mim, do que o encontro com a verdade pode trazer pra mim. Na realidade, não se está querendo nada de um encontro com a verdade; só cá parar de sofrer, não é cara? Mas quero parar de sofrer, de novo colocando o resultado nas mãos de terceiros; só que agora o terceiro espiritual aí, é uma entidade aí. Quando você se depara com esses materiais tão claros que apontam a falência disso, a grande maioria não tem estrutura pra ficar com isso; porque não aprendeu a ficar com isso, não é? Não aprendeu a ficar nesse processo de autonomia psicológico, de sentar, não é? E observar!

E é isso que a gente vem fazendo; e é isso que essa sala vem apresentando; que esse material vem apresentando pro freguês aqui: uma capacidade de percepção nunca antes se quer imaginada; uma capacidade de ficar com o que é, nunca antes sequer imaginada; uma capacidade de não ter mais a necessidade de dar a última palavra; de não ter mais a necessidade de ficar entrando em controvérsias com aquele confradezinho que está ali totalmente identificado com esse processo de criar confusão, de querer vomitar o próprio estado interno de contradição, criando mais contradição, contaminando mais com contradição.

Então, hoje, o lance, é bem uma frase que a Deca gosta muito de falar aqui: “tempo de silêncio e solidão”... Está doendo? Faça uso dessa poderosa ferramenta que lhe foi dada pela Grande Vida: a bunda pra sentar numa cadeira; os dois cotovelos pra segurar a cabeça e observe o que está rolando. E, se você for sério, algo vai ser revelado!

Então é isso aí gente! Um fraterabraço pra vocês, obrigado pela escuta atenta!

Outsider44

O que significa nossa chamada “busca da verdade”?

Que entendemos com conflito, por contradição? Por que existe contradição em nós? Compreendem o que eu entendo por contradição? — esta luta constante para ser algo diferente do que sou. Sou isto e quero ser aquilo. Essa contradição em nós é um fato, não um dualismo metafísico, sobre o qual não há necessidade de discorrermos. A metafísica nenhum valor tem para a compreensão do que é. Podemos discutir sobre o dualismo, dizer o que ele é, se existe, etc.; mas, que valor tem ele se não sabemos se existe contradição em nós, desejos antagônicos, interesses opostos? Isto é, quero ser bom e não consigo. Essa contradição, essa oposição que existe em nós precisa ser compreendida, porque gera conflito; e no conflito, na luta, não podemos criar individualmente. Vejamos com clareza o estado em que nos encontramos. Há contradição, e por isso tem de haver luta; e a luta é sempre destruição, desperdício. Em tal estado, nada podemos produzir, senão antagonismo, luta, mais amarguras e sofrimentos. Se pudermos compreender perfeitamente esse estado e ficarmos livres da contradição, haverá paz interior, a qual nos trará a mútua compreensão.

O problema, portanto, é este: Visto que o conflito é destrutivo, inútil, por que existe contradição em cada um de nós? Para compreender isso, precisamos ir um pouco mais longe. Por que existem desejos opostos? Não sei se estamos bem conscientes disso — dessa contradição, desse querer e não querer, desse lembrar-nos de uma coisa e querermos esquecê-la, substituí-la por algo novo. Observem bem. É um fato muito simples e muito normal. Nada tem de extraordinário. A verdade é que existe contradição. Mas, como nasce a contradição? Não é importante compreendê-lo? Porque se não fosse a contradição, não haveria conflito, não haveria luta, e o que é seria compreendido sem lhe acrescentarmos um elemento oposto, gerador de conflito. A questão que temos de examinar, portanto, é: Por que existe essa contradição e, consequentemente, essa luta inútil e destrutiva? Que significa contradição? Não implica ela um estado impermanente ao qual se opõe um outro estado impermanente? Isto é, julgo que tenho um desejo permanente. Admito em mim a existência de um desejo, e logo surge outro desejo, que o contradiz; e essa contradição gera conflito, que é desperdício. Isto é, há uma constante negação de um desejo por outro desejo, um interesse que se sobrepõe a outro interesse. Mas existe de fato um desejo permanente? Sem dúvida, todo desejo é impermanente — não metafisicamente, mas de fato. Não deem a isso uma significação metafísica, pensado que assim a compreendem. Na realidade, todo desejo é impermanente. Desejo um emprego. Isto é, penso que um determinado emprego me proporcionará felicidade, e quando o obtenho vejo-me insatisfeito. Quero tornar-me gerente, depois proprietário, etc.; não somente neste mundo, mas também no mundo dito espiritual — o professor quer ser diretor, o ministro quer ser bispo, o discípulo Mestre.

Assim, esse constante “vir a ser”, esse sucessivo passar de um estado para outro, produz contradição, não é verdade? Nessas condições, por que não encarar a vida, não como um desejo permanente, mas como uma série de desejos fugitivos, em constante oposição entre si? A mente, não tem necessidade de permanecer em estado de contradição. Se considero a vida, não como um desejo permanente, mas como uma série de desejos temporários, em constante mutação, não existe contradição... Muito importa compreender que, onde há contradição há sempre conflito, e que o conflito é improdutivo, inútil, quer se trate de uma disputa entre duas pessoas, quer de uma luta interior; como a guerra, ele é totalmente destrutivo.

A contradição, surge apenas quando temos um ponto fixo de desejo, isto é, quando a mente, não considerando todo desejo como uma coisa em movimento, transitória, se apodera de um desejo, atribuindo-lhe permanência: só então, ao surgirem outros desejos, apresenta-se a contradição. Mas todos os desejos estão em constante movimento, não há fixação do desejo. Não há um ponto fixo de desejo; a mente estabelece um ponto fixo, porque se serve de todas as coisas como um meio de ganho; e há de haver contradição, conflito, enquanto houver esse empenho de chegar. Não sei se percebem isso.

É importante compreender, em primeiro lugar, que o conflito é essencialmente destrutivo, quer se trate de conflito comunal, do conflito entre nações, entre ideias, quer do conflito interno do indivíduo. Ele é sempre destrutivo; e essa luta é aproveitada, explorada pelos sacerdotes, pelos políticos. Se percebemos bem isso, se percebemos realmente que toda luta é destrutiva, cabe-nos então descobrir a maneira de colocar fim à luta, isto é, investigar a contradição; a contradição implica sempre o desejo de vir a ser, de ganhar, o desejo de chegar — é isso, afinal de contas o que significa a chamada busca da verdade. Isto é, vocês querem atingir algo, querem alcançar bom êxito, querem encontrar, no final de tudo, um Deus ou a verdade, que passará a ser a permanente satisfação de vocês. Por conseguinte, não estão em busca da verdade, não estão à procura de Deus. Procuram satisfação com uma ideia, uma palavra de som respeitável, tal como Deus, a verdade; mas de fato, cada um de vocês está é em busca de satisfação, e, pondo essa satisfação, no mais alto nível, vocês a chamam Deus: no mais baixo nível ela se chama embriaguez pela bebida. Enquanto o que a mente busca é satisfação, não há muita diferença entre Deus e a bebida... Se desejam realmente encontrar a verdade, devem ser sinceros, ao extremo, e não apenas no nível verbal, mas totalmente; precisam estar extraordinariamente lúcidos, e não podem ter lucidez se se furtam a encarar os fatos. E é isto o que estamos tentando, nestas reuniões: perceber claramente, por nós mesmos o que é. Se não desejam ver, podem ir embora; mas se desejam encontrar a verdade, precisam estar extraordinariamente lúcidos, escrupulosamente lúcidos... Enquanto a mente estiver fixa com uma ideia, com uma crença, haverá contradição na vida; e essa contradição gera antagonismo, confusão, luta, o que significa que não haverá paz.

Jiddu Krishnamurti — O que estamos buscando?

sábado, 15 de setembro de 2012

Poderosas observações para uma ovelha sem rebanho


Quem sou eu? é uma questão tão antiga e perene apenas porque cada indivíduo precisa respondê-la por si mesmo. Se descobrir a verdadeira resposta, ele descobrirá também que não pode transferi-la, de fato, para outra pessoa, mas apenas uma idéia dela, uma sombra mental do que ela é. Isto também pode ter valor para os outros, mas não é a mesma coisa.

Aquele que procura a verdade sobre esses assuntos descobrirá que ela é contrária à opinião corrente, e portanto terá que descobri-la por si mesmo e para si mesmo. Ele deve comprovar a verdade não em referência a livro ou bíblia, mas em referência à sua experiência particular. Não há lugar, nessa escola, para os que estão prontos a resolver os problemas da vida com uma apreciação de segunda mão. A necessidade do pensamento individual é vital aqui. A humanidade não será salva em grupos ou organizações. Ela será salva indivíduo por indivíduo.  A busca começa com ele e termina com ele. Ser sincero consigo mesmo traz a felicidade. Ser indiferente à crítica daqueles que compreendem mal libera da ansiedade por seu apreço. Andar nas ruas com espírito independente permite que andemos como um milionário! Que os outros se sacrifiquem ao esnobismo, se quiserem; sejamos livres. É apenas quando os pés descansam que podemos fazer a mente descansar — a menos que sejamos os Realizados!

Deixe que os outros sigam qualquer caminho que os atraia, mas não deixe que lhe imponham esse caminho se você não sente nenhuma afinidade por ele. Sem fazer alarde e evitando atritos desnecessários, ele pode seguir seu caminho independente e escolher suas próprias metas.  A necessidade individual de escapar do formalismo rígido para a liberdade intelectual vem somente a minoria. Mas é dessa minoria que emergem os que realmente procuram a verdade... Não assumindo posição teórica, não se comprometendo com nenhuma crença, não usando nenhum rótulo, não se colocando em nenhuma categoria, o buscador inicia sua procura pela verdade em liberdade intelectual e termina-a em liberdade pessoal interior. Ele é, então, o que é... O comum, o "normal", não deve ser tomado como o verdadeiro padrão.

Para ingressar nesta busca não é preciso pedir autorização a nenhum mestre ou organização; ele é livre para fazê-lo na medida em que lhe permitem sua aspiração e capacidade. Ele se recusou a submeter-se ao próprio ego apenas para submeter-se ao da sociedade? Deve conformar-se ao mundo e aos caminhos do mundo por medo da opinião do mundo a seu respeito? Terá coragem suficiente para rejeitar as idéias religiosas de seu vizinho, mas não para resistir aos hábitos tolos de seu vizinho? Se um homem não consegue encontrar na sociedade os padrões adequados a seu caráter, deve, então encontrar os seus próprios padrões. É isso que o transforma em alguém que busca.

Um homem deve permanecer em sua própria órbita e tirar suas diretrizes de seu interior. Se, por medo da solidão, por intimidação ou por sugestão, juntar-se aos grandes grupos de seu tempo, não chegará ao melhor de si mesmo. Enquanto tantos homens vivem em erro e comprometidos com o que é incorreto, meramente porque isso foi estabelecido pela tradição ou pelo costume, alguns poucos devem fazer aquilo que é o mais nobre, seguindo um audacioso não-conformismo. Ele deve andar em seu próprio passo, e não no trote apressado da sociedade. Ele deve escolher sua própria estrada, e não a mais percorrida. O modo de vida de seus vizinhos não lhe serve e, então, deve agir diferente. Ele sente o desejo de se transformar criativamente m algo melhor do que é agora, algo mais nobre, mais sábio e mais perceptivo. Mas seus vizinhos não têm esse desejo, estão satisfeitos com uma vida estática. Ele deve estar disposto, e até mesmo determinado, a pensar e a sentir diferentemente daqueles que estão à sua volta. E como pode ser de outra forma, se sua meta também é diferente?

Enquanto uma convenção é razoável e útil, ele a respeita, mas quando ela se transforma numa formalidade vazia ou numa pomposidade inflada, não mais. Enquanto o conformismo implica fingimento, insinceridade e imitação tímida e cega, ele não lhe é favorável; mas enquanto implica decência no comportamento, consideração pelos outros e padrões testados pela experiência, ele é a seu favor.  Ele deve aceitar o fato de que não é, e não quer ser, como a maioria das pessoas. A pessoa superior tem sempre uma escolha diante de si: deve viver da maneira que os outros vivem para agradá-los ou deve viver da maneira que seus próprios padrões exigem? Se deixa que eles a derrubem, perde o que levou muitos, muitos anos para desenvolver. Em algum lugar, em algum ponto, deve tomar sua posição, deve fincar os pés e recusar-se a mover-se dali.

Num mundo ideal, aquele que busca poderá viver sem se tornar mundano, poderá cumprir seus compromissos sociais sem se tornar um escravo das convenções sociais. O corajoso desafio do buscador ao pensamento ultrapassado do rebanho tem atrás de si um espírito positivo e não negativo. Quando um homem se afasta dos falso padrões estabelecidos pelo materialismo, entra em conflito com convenções mutilantes de sua época. Seja qual for a peculiaridade que tenha demonstrado no passado, isso agora não é mais necessário: ele não precisa usar roupas bizarras ou assumir posturas teatrais. Suas roupas podem ser comuns e discretas, seu comportamento normal, sua maneira simples. Mas deve fazer uma coisa: cultivar alguma individualidade em sua atitude diante da vida... A pessoa, jovem ou velha, que tem a mente voltada para as coisas mais elevadas que os prazeres do momento e está disposta a sacrificar um pouco de tempo, atenção e interesse a esses estudos e meditações, descobrirá que sua recusa a se conformar com os caminhos de outras pessoas é recompensada com crescimento interior na busca.

Quase todos os homens vivem prisioneiros de idéias que nem mesmo são suas, mas lhe foram sugeridas por outros. O pensamento independente é raro. Conscientemente ou involuntariamente, a maioria de nós é sugestionável. Aceitamos os pensamentos que as outras pessoas querem colocar em nossas cabeças. E fazemos isso numa medida tal que vivemos de modo vicário: não vivemos realmente nossas próprias vidas. Isso é muito bom e adequado para a infância e a adolescência, mas como pode servir à idade adulta? Onde está o homem que tem o seu próprio eu, e não um eu criado pelos outros? A hereditariedade do ambiente, a sociedade, a sugestão, a convenção e a educação contribuem poderosamente para formar um "eu" que não é o seu próprio "eu", para fabricar um pseudo-indivíduo que não é ele mesmo, mas que passa por ele. À medida que penetra mais e mais em si mesmo, suas ações particulares tornam-se mais e mais independentes das sugestões de outras pessoas, e resistentes à sua influência.  Onde está a pessoa capaz de cultivar sua própria inteligência sem ser condicionada pelas idéias e exemplos introduzidos nela por seu ambiente ou suas leituras, por sua religião ou sua família, por sua tradição social ou pelos medos e desejos pessoais relacionados aos outros? São os outros, do passado morto ou do presente vivo, que a aprisionam, parcial ou totalmente, em seus pensamentos e imaginações, seus conflitos.

Uma vida interior não inteiramente dirigida por outra pessoa ou não inteiramente dependente de outra pessoa é uma vida adulta. Ninguém é adulto enquanto busca a aprovação dos outros para suas ações ou se encolhe diante de sua desaprovação. Não temos que aceitar todos os encargos que os outros tentam colocar sobre nossos ombros. Somos livres para escolher e ter a certeza de que não estamos meramente subjugando nosso próprio ego ao de outra pessoa. Qual a utilidade de perguntar ou aceitar as opiniões dos que são ineptos nesse assunto porque ainda não o estudaram acuradamente? Uma verdade que nasce do conhecimento pessoal, ou é elaborada com esforço a partir da experiência pessoal, tem mais valor para um homem do que aquilo que ele ouve de outras pessoas.

Seja qual for a forma que sua vida exterior deva assumir sob a pressão do destino, ele manterá sua vida interior inviolada. O indivíduo que se recusa a ser fundido num molde é que traz inspiração, contato interior com o divino, não a instituição. Existem alguns poucos que se erguem acima da multidão até esse nível, por seu próprio auto-enobrecimento e auto-interiorização. Um buscador não fica desanimado por ser tão pequeno o número dos que adotam ideias filosóficas. Ele não está procurando o sucesso de um movimento, grupo, programa ou seita. Mesmo que fosse o único homem a sustentar essas ideias, não ficaria desanimado. Porque ele sabe que não foi posto no mundo para reformá-lo, mas para reformar a si mesmo. Ele faz sua própria visão de mundo, em vez de herdá-la com o seu corpo, isto é, ele pensa por si mesmo, sem predisposições e preconceitos herdados. Às vezes é benéfico jogar fora os manuais de espiritualidade, os livros didáticos de santidade! Aquele que busca tem de ser diferente e não aceitar as concepções convencionais ou as ideias religiosas ortodoxas. Tem de julgar os problemas do ponto de vista filosófico, pois não deve acreditar que qualquer outro forneça conclusões verdadeiras. Este ponto de vista tem a perspectiva elevada, a única que pode fornecer uma estimativa verdadeira do que está envolvido nesses problemas. Nós nos afastamos de um ensinamento que não satisfaz nosso espírito interior, que deixa insaciada nossa sede mais profunda.  

Seja você mesmo, seu próprio eu divino. Por que representar um papel? Por que ser um eco? Por que seguir o mundo em sua procura do trivial, do estúpido, daquilo que provoca dor? Ele não deve permitir-se ficar preso pelos outros em contatos passados que já cumpriram seu objetivo e que, agora, só vão limitá-lo. Essa liberdade de procurar a verdade, bem como selecionar seu próprio caminho de aproximação a ela, é uma prerrogativa preciosa. Lembre-se de que o costume e o hábito são os grandes tiranos que escravizam a massa da humanidade. A liberdade real é possível apenas quando se é sincero consigo mesmo. Não se permita ser hipnotizado pela indiferença tão comum a esses assuntos elevados, mas seja leal às sugestões do espírito. Com essa determinação ele faz sua declaração pessoal de independência. Nenhuma escola poderá segurá-lo. Sua lealdade, daí em diante, é dada a um pensamento global. E isso não é tudo. A  vida mística não depende de nenhuma instituição, tradição ou sectarismo. É uma existência independente e individual. Sem cair no vazio do ceticismo, aquele que busca, sendo inteligente e independente, evita posições intelectuais ou emocionais dogmáticas e sectárias. Mas sua mente aberta, sua posição semi-imparcial não impedem que forme julgamentos favoráveis ou acolha impressões não-lisonjeiras.

Se os homens aprendessem a aceitar a autoridade da Voz da Inspiração, sempre e onde quer que esta lhes falasse, não precisariam restringir-se nem se confinar entre os muros de qualquer seita ou facção, culto ou organização. O Eu Real habita acima do tempo e do espaço, da matéria e da forma, inviolável em sua liberdade perfeita. Se essa for a menta e o estado ideal, o buscador deverá, cedo ou tarde, começar a estreitar suas relações com ele, e a crescer pela radiância de sua Luz. Assim, não estará errado se permanecer distante do aprisionamento do discipulado a um homem particular, e das restrições da adesão a um grupo organizado. Ele não mais está disposto a ceder às exigências do mundo por lealdade, por conformismo, por submissão... Se sua mente estiver preenchida pelos ensinamentos de outras pessoas, ela pode não dar atenção aos ensinamentos, orientações e intuições do seu próprio Eu Superior. Está recuperando sua identidade individual e está determinado a mantê-la. É ao Eu Superior que ele deve consagrar sua fidelidade última.

O que busca de maneira independente, sem compromisso com qualquer culto, pode ser uma ovelha sem rebanho, mas não está necessariamente sem pastor. A voz interior pode guiá-lo e cuidar dele não menos do que faria um homem de carne e osso... Se ele encontra o mesmo princípio em dez credos religiosos diferentes ou em sistemas metafísicos diferentes, fica feliz com essa reiterada confirmação. Mas, no final, terá que obtê-la por si mesmo, de dentro de seu próprio eu —   o Eu Superior. Essa é a base mais firme da vida. Ele quer ser fiel à "Luz Ardente" interior como foi chamada por místicos do Extremo Oriente, sem se deixar sujeitar e sem ser obstruído por nenhum autoritarismo externo.

Ele é original no verdadeiro sentido da palavra: não tem que copiar os outros, apenas expressar sua própria individualidade, principalmente sua individualidade superior. Toma cuidado para continuar sendo aquilo que é ou, nas palavras de Shakespeare, para ser verdadeiro consigo mesmo, com seu Eu Superior. Na medida em que permite que sua felicidade dependa de outra pessoa e perde sua independência, ele fica enfraquecido. Mesmo que o outro lhe dê conhecimento, amor ou apoio, ele não deve deixar de olhar para dentro o mais profundamente possível, para obter a Paz idílica.

No final, um homem deve vir a si mesmo, a seu eu mais divino, a seu ser essencial. E onde deve procurá-lo, a não ser onde Jesus indicou, no interior? — não no exterior, não em outro homem, por mais alta que seja sua reputação de guru, não em algum livro, por mais sacrossanta que seja sua autoridade. tanto o homem quanto o livro devem, se forem leais ao que é superior, dirigi-lo para dentro. O Reino está dentro de você e não em algum outro lugar, não num ashram, nem mesmo aos pés de um guru... aquele que busca individualmente deve tomar sua própria alma — seu Eu Superior — como guia... Sua atração por este ou aquele instrutor pode enfraquecer e morrer, mas sua atração pelo Instrutor de todos os instrutores, o Eu Superior, continuará a crescer cada vez mais em seu interior... Ele não precisará aceitar nenhuma liderança humana se ouvir a voz do Silêncio e aceitar sua liderança invisível. Foi Ramana Maharshi de Arunachala que disse: "Você mesmo é seu próprio guru. Seja-o."

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Como pode a mente chegar ao estado de constante ação criadora?

Afinal, que é que estamos buscando? Que é que busca, cada um de nós, não teoricamente, abstratamente, mas na realidade? E há alguma diferença entre a busca do homem que aspira à satisfação por meio do saber, de Deus, e a daquele que deseja ser rico, realizar suas ambições, ou daquele que vai buscar a satisfação na bebida? Socialmente, há diferença. O homem que vai buscar satisfação na bebida é, sem dúvida, um ser anti-social, ao passo que o que busca a satisfação ingressando numa ordem religiosa, tornando-se eremita, etc, é socialmente útil; mas a diferença é só esta. 

Mas, a coisa que buscamos — por mais interessada que seja a nossa busca, traz-nos a tranquilidade? E nós, de fato, estamos  muito interessados, pois não? O eremita, o monge, o homem que busca o prazer, de diferentes maneiras, cada um deles está muito interessado. Mas esse interesse é realmente sério? Existe sério interesse, quando empreendemos uma busca com o fim de adquiri alguma coisa? Entendeis a minha pergunta? Ou só pode haver um interesse sério quando não se está visando um fim?

Afinal, vós, aqui presentes, deveis sentir um certo interesse, pois do contrário não vos teríeis dado ao trabalho de vir. Ora, eu pergunto a mim mesmo e espero que estejais também perguntando a vós mesmos, o que significa "interesse sério"; porque eu acho que daí depende o que vou explicar mais adiante. Se aqui estais a buscar a satisfação ou um meio de compreender uma certa experiência passada, ou de cultivar um certo estado mental que pensais que vos dará tranquilidade, paz, ou de experimentar o que chamais "Realidade", "Deus", podeis estar com muito interesse; mas, não devemos duvidar desse interesse? É sério o nosso interesse ao buscarmos uma coisa porque achamos que ela nos dará prazer ou tranquilidade?

Se pudermos compreender o processo da busca, compreender porque buscamos e o que buscamos — e essa compreensão só é possível pelo autoconhecimento, pela percepção do movimento do nosso próprio pensar, nossa reações e nossos diferentes impulsos — talvez possamos então, descobrir o que é ser "virtuoso" sem nos disciplinarmos para sermos virtuosos. Pois bem, tenho a impressão que, ainda que consigamos reprimir o conflito existente em nós, ainda que procuremos fugir dele, disciplinar e controlar  a mente, moldá-la de acordo com diferentes padrões, o conflito permanecerá latente, e nossa mente nunca estará verdadeiramente tranquila. E ter uma mente tranquila, acho eu, é coisa essencial, porque nossa mente é o único instrumento de compreensão, de percepção, de comunicação, e enquanto não tivermos esse instrumento perfeitamente claro e capaz de percepção, capaz de se aplicar à busca sem ter um fim em vista, não poderá haver liberdade, tranquilidade, nem, por conseguinte, o descobrimento de coisas novas.

Assim, há possibilidade de vivermos neste mundo, — tão cheio de agitações, de ansiedades, de insegurança — sem esforço? Esse é um dos nossos problemas, não achais? Para mim, esta é uma questão muito importante, porque só é possível a ação criadora, quando a mente se acha num estado em que não existe esforço algum. Não estou empregando a palavra "criadora" no sentido acadêmico de aprender "literatura criadora", "atividade criadora", "pensamento criador", etc.; estou-a empregando num sentido muito diferente. Quando a mente se acha num estado em que o passado, com seu cultivo da virtude através da disciplina, desapareceu completamente, só então pode existir uma ação criadora atemporal, que se pode chamar Deus, a Verdade, ou como quiserdes. Como pode, pois, a mente chegar a esse estado de constante ação criadora?

Que acontece quando tendes um problema? Pensais nele, de princípio ao fim, ficais engolfado nele, vos tornais nervoso e agitado por causa dele; e quanto mais o analisais, aprofundais, desbastais, quanto mais preocupados ficais a seu respeito, tanto menos o compreendeis. Mas, no momento em que deixais de dar-lhe atenção, nesse momento o compreendeis, tudo se torna, de súbito, perfeitamente claro. Tal experiência já deve ter ocorrido á maioria de vós. A mente já não se acha num estado de confusão, conflito, estando por conseguinte, capacitada para receber ou perceber uma coisa totalmente nova. É possível a mente permanecer nesse estado, de modo que não fique mais repetindo as mesmas coisas e se torne capaz de experimentar "o novo", momento por momento? Depende isso, a meu ver, de compreendermos o problema do cultivo da virtude. 

Cultivamos a virtude, disciplinamo-nos, com o fim de ajustar-nos a determinado padrão de moralidade. Por que? Não só porque desejamos tornar-nos socialmente respeitáveis, mas também porque percebemos a necessidade de pôr ordem, controlar a nossa mente, o nosso falar, o nosso pensar. Reconhecemos quanto isso é importante, mas, no processo de cultivar a virtude, estamos construindo a estrutura da memória, essa memória, que é o "eu", o "ego". Tal é a base de nossa ação, principalmente dos que pensam ser religiosos, porque praticam constantemente uma certa disciplina, pertencem a certas seitas, certos grupos, chamados coletividades religiosas. Sua recompensa poderá estar noutra parte, "no outro mundo", mas é sempre recompensa o que querem; no cultivo da virtude, que significa polir, disciplinar, controlar a mente, estão eles desenvolvendo e mantendo uma memória do "eu" e, por conseguinte, nunca há um momento em que estão livres do passado

Se realmente já disciplinastes a vós mesmos, exercitando-vos para não serdes invejosos, irritadiços, etc., não sei se já tendes notado como esse próprio exercitar, esse próprio disciplinar da mente cria uma série de lembranças, que são conhecimentos. É assaz difícil este problema, e espero me esteja fazendo claro. Esse processo que consiste em dizermos: "Não devo fazer isto" — cria ou constrói o tempo; e a mente que está aprisionada no tempo não pode, é claro, nunca, experimentar algo fora do tempo, " o desconhecido". Entretanto, devemos ter nossa mente "bem arrumada", livre de desejos contraditórios — e isso não significa ajustamento, aceitação, obediência. 

Nessas condições, se sentis um interesse muito sério, no sentido em que estou empregando a palavra, este problema tem de surgir, inevitavelmente. Vossa mente é o resultado do "conhecido". Vossa mente é o conhecido, sendo moldada pelas memórias, pelas reações, pelas impressões do "conhecido"; e a mente mantida no terreno do conhecido jamais compreenderá ou experimentará o desconhecido, aquilo que não se acha na esfera do tempo. A mente só é criadora quando está livre do conhecido; e, então, ela pode servir-se do conhecido, isto é, da técnica. Estou-me fazendo claro?

Como sabeis, nosso tédio é tão grande, que estamos constantemente a ler, a adquirir, a aprender, a frequentar, igrejas e executar rituais, sem nunca conhecermos um momento inédito, original, não corrompido, completamente livre de todas as impressões; e esse momento é o que é criador, atemporal, eterno, ou qualquer outra palavra que preferirdes. Sem essa ação criadora, a nossa vida se torna insipida e estúpida, e todas as nossas virtudes, nosso saber, nossas ocupações, nossos entretenimentos, nossas várias crenças e tradições, tudo muito pouco significa. Como disse há dias, a sociedade apenas cultiva o "conhecido", e nós somos o resultado dessa sociedade. Para encontrarmos o desconhecido, é essencial nos libertarmos da sociedade — o que não significa retirar-nos para um mosteiro e ficarmos rezando da manhã à noite, disciplinando-nos incansavelmente, ajustando-nos a certo dogma ou crença. Isto, por certo, não pode emancipar a mente do conhecido. 

A mente é resultado do conhecido, resultado do passado, que é acumulação no tempo; e tem essa mente alguma possibilidade de ficar livre do conhecido, sem fazer esforço algum, para que possa descobrir algo original? Qualquer esforço que ela faça, para libertar-se, qualquer busca que empreenda, estará sempre na esfera do conhecido. Ora, por certo, Deus ou a Verdade deve ser algo que nunca foi pensado, algo inteiramente novo, nunca formulado, descoberto ou experimentado antes. E como pode a mente resultante do conhecido, experimentar, em algum tempo, essa coisa? Percebeis o problema? Se o problema está claro, achareis então a maneira correta de o atenderdes, a qual não é um método. 

Aí está a razão por que importa descobrir se uma pessoa pode ser boa, no sentido completo desta palavra, sem se esforçar para ser boa, sem lutar para libertar-se da inveja, da ambição, da crueldade, sem se disciplinar para deixar de ser maledicente, enfim, abstendo-se de todos os rigores a que nos submetemos quando desejamos ser bons. Pode haver bondade, sem se fazer esforço para "ser bom"? Acho que só haverá, se cada um de nós souber escutar, estar atento. Só há bondade quando há atenção completa. percebei esta verdade de que não pode haver bondade mediante luta, esforço. Percebei simplesmente esta verdade — mas só podereis percebê-la se estais dando atenção completa ao que se está dizendo. Esquecei todos os livros que lestes, tudo o que vos tem ensinado, e prestai toda atenção à asserção de que não pode haver virtude, enquanto há esforço para se ser virtuoso. Enquanto luto para não ser violento, tem de haver violência; enquanto luto para não ser invejoso, tem de haver inveja; enquanto luto para ser humilde, tem e haver orgulho. Se percebo esta verdade, não intelectualmente, ou verbalmente — o que significa apenas ouvir as palavras e concordar, com elas —, se a percebo com toda simplicidade, diretamente, então, daí virá a bondade. Mas a dificuldade é que a mente diz: "Como conservar esse estado? Posso ser bom, enquanto estou aqui, ouvindo algo que sinto ser verdadeiro, mas, depois de sair daqui, ver-me-ei de novo colhido pela corrente da inveja". Acho que isso não têm importância; vós o descobrireis. 

Nossa cultura, nossa sociedade está baseada na inveja, na vontade de adquirir conhecimentos, experiência, bens materiais, etc. E para nos libertarmos disso não se requer nenhum luta ou esforço, mas só que vejamos o que significa o esforço. O homem que está adquirindo conhecimentos, não está em paz, pois está empenhado num esforço. Só quando completamente livre do esforço, pode a mente achar-se em paz , que é, na verdade, um estado extraordinário, mas que pode ser alcançado por qualquer um que a isso se aplique de coração e com toda a atenção. A mente que não está lutando, tentando "vir a ser" alguma coisa, social ou espiritualmente, a mente que está reduzida a "nada" — só ela pode receber "o novo".

Krishnamurti - Realização sem esforço, pág. 34 à 39
Ojai, Califórnia, USA - 7 de agosto de 1955

terça-feira, 28 de agosto de 2012

A busca do homem

Através das idades veio o homem buscando uma certa coisa além de si próprio, além do bem-estar material – uma coisa que se pode chamar verdade, Deus ou realidade, um estado atemporal – algo que não possa ser perturbado pelas circunstâncias, pelo pensamento ou pela corrupção humana.
            O homem sempre indagou: Qual a finalidade de tudo isto? Tem a vida alguma significação? Vendo a enorme confusão reinante na vida, as brutalidades, as revoltas, as guerras, as intermináveis divisões da religião, da ideologia, da nacionalidade, pergunta o homem, com um profundo sentimento de frustração, o que se deve fazer, o que é isso que se chama viver e se alguma coisa existe além dos seus limites.
            E, não podendo encontrar essa coisa sem nome e de mil nomes que sempre buscou, o homem cultivou a fé – fé num salvador ou num ideal, a fé que invariavelmente gera a violência.
            Nessa batalha constante que chamamos “viver”, procuramos estabelecer um código de conduta conforme à sociedade em que somos criados, quer seja uma sociedade comunista, quer uma pretensa sociedade livre; aceitamos um padrão de comportamento como parte de nossa tradição hinduísta, mulçumana, na, cristã ou outra. Esperamos que alguém nos diga o que é conduta justa ou injusta, pensamento correto ou incorreto e, pela observância desse padrão, nossa conduta e nosso pensar se tornam mecânicos, nossas reações, automáticas. Pode-se observar isso muito facilmente em nós mesmos.
Durante séculos fomos amparados por nossos instrutores, nossas autoridades, nossos livros, nossos santos. Pedimos: “Dizei-me tudo; mostrai-me o que existe além dos montes, das montanhas e da Terra” - e satisfazemo-nos com suas descrições, quer dizer, vivemos de palavras, e nossas vidas são superficiais e vazias. Não somos originais. Temos vivido das coisas que nos têm dito, ou guiados por nossas inclinações, nossas tendências, ou impelidos a aceitar pelas circunstâncias e o ambiente. Somos o resultado de toda espécie de influências e em nós nada existe de novo, nada descoberto por nós mesmos, nada original, inédito, claro.
Consoante a história teológica garantem-nos os guias religiosos que, se observarmos determinados rituais, recitarmos certas preces e versos sagrados, obedecermos a alguns padrões, refrearmos nossos desejos, controlarmos nossos pensamentos, sublimarmos nossas paixões, se nos abstivermos dos prazeres sexuais, então, após torturar suficientemente o corpo e o espírito, encontraremos uma certa coisa além desta vida desprezível. É isso o que têm feito, no decurso das idades, milhões de indivíduos ditos religiosos, quer pelo isolamento, nos desertos, nas montanhas, numa caverna, quer peregrinando de aldeia em aldeia a esmolar, quer em grupos, ingressando em mosteiros e forçando a mente a ajustar-se a padrões estabelecidos. Mas, a mente que foi torturada, subjugada, a mente que deseja fugir a toda agitação, que renunciou ao mundo exterior e se tornou embotada pela disciplina e o ajustamento - essa mente, por mais longamente que busque, o que achar será em conformidade com sua própria deformação.
Assim, para descobrir se de fato existe ou não alguma coisa além desta existência ansiosa, culpada, temerosa, competidora, parece-me necessário tomarmos um caminho completamente diferente. O caminho tradicional parte da periferia para dentro, para, através do tempo, da prática e da renúncia, atingir gradualmente aquela flor interior, aquela íntima beleza e amor - enfim, tudo fazer para nos tornarmos estreitos, vulgares e falsos; retirar as camadas uma a uma; precisar do tempo, amanhã ou na próxima vida chegaremos - e quando, afinal, atingimos o centro, não encontramos nada, porque nossa mente se tornou incapaz, embotada, insensível.
Após observar esse processo, perguntamos a nós mesmos se não haverá outro caminho totalmente diferente, isto é, se não teremos possibilidade de “explodir” do centro.
O mundo aceita e segue o caminho tradicional. A causa primária da desordem em nós existente é estarmos buscando a realidade prometida por outrem; mecanicamente seguimos todo aquele que nos garante uma vida espiritual confortável. É um fato verdadeiramente singular esse, que, embora em maioria sejamos contrários à tirania política e à ditadura, interiormente aceitamos a autoridade, a tirania de outrem, permitindo-lhe deformar a nossa mente e a nossa vida. Assim, se de todo rejeitarmos, não intelectual, porém realmente, a autoridade dita espiritual, as cerimônias, rituais e dogmas, isso significará que estamos sozinhos, em conflito com a sociedade; deixaremos de ser entes humanos respeitáveis. Ora, um ente humano respeitável nenhuma possibilidade tem de aproximar-se daquela infinita, imensurável realidade.
Começais agora por rejeitar uma coisa que é totalmente falsa - o caminho tradicional - mas, se o rejeitardes como reação, tereis criado outro padrão no qual vos vereis aprisionado como numa armadilha; se intelectualmente dizeis a vós mesmo que essa rejeição é uma idéia importante, e nada fazeis, não ireis mais longe. Se entretanto a rejeitardes por terdes compreendido quanto é estúpida e imatura, se a rejeitais com alta inteligência, porque sois livre e sem medo, criareis muita perturbação dentro e ao redor de vós, mas vos livrareis da armadilha da respeitabilidade. Vereis então que cessou o vosso buscar. Esta é a primeira coisa que temos de aprender: não buscar. Quando buscais, agis, com efeito, como se estivésseis apenas a olhar vitrinas.
A pergunta sobre se há Deus, verdade, ou realidade ou como se queira chamá-lo - jamais será respondida pelos livros, pelos sacerdotes, filósofos ou salvadores. Ninguém e nada pode responder a essa pergunta, porém somente vós mesmo, e essa é a razão por que deveis conhecer-vos. Só há falta de madureza na total ignorância de si mesmo. A compreensão de si próprio é o começo da sabedoria.
E, que é vós mesmo, o vós individual? Penso que há uma diferença entre o ente humano e o indivíduo. O indivíduo é a entidade local, o habitante de qualquer país, pertencente a determinada cultura, uma dada sociedade, uma certa religião. O ente humano não é uma entidade local. Ele está em toda parte.  Se o indivíduo só atua num certo canto, isolado do vasto campo da vida, sua ação está totalmente desligada do todo. Portanto, é necessário ter em mente que estamos falando do todo e não da parte, porque no maior está contido o menor, mas o menor não contém o maior. O indivíduo é aquela insignificante entidade condicionada, aflita, frustrada, satisfeita com seus pequeninos deuses e tradições; já o ente humano está interessado no bem-estar geral, no sofrimento geral e na total confusão em que se acha o mundo.
Nós, entes humanos, somos os mesmos que éramos há milhões de anos – enormemente ávidos, invejosos, agressivos, ciumentos, ansiosos e desesperados, com ocasionais lampejos de alegria e afeição. Somos uma estranha mistura de ódio, medo e ternura; somos a um tempo a violência e a paz. Têm-se feito progressos, exteriormente, do carro de boi ao avião a jato, porém, psicologicamente, o indivíduo não mudou em nada, e a estrutura da sociedade, em todo o mundo, foi criada por       indivíduos. A estrutura social, exterior, é o resultado da estrutura psicológica, interior, das relações humanas, pois   o indivíduo é o resultado da experiência, dos conhecimentos e da conduta do homem, englobadamente. Cada um de nós é o depósito de todo o passado. O indivíduo é o ente humano que representa toda a humanidade. Toda a história humana está escrita em nós.
Observai o que realmente está ocorrendo dentro e fora de vós mesmo, na cultura de competição em que viveis, com seu desejo de poder, posição, prestígio, nome, sucesso etc.; observai as realizações de que tanto vos orgulhais, todo esse campo que chamais viver e no qual há conflito em todas as formas de relação, suscitando ódio, antagonismo, brutalidade e guerras intermináveis. Esse campo, essa vida, é tudo o que conhecemos, e como somos incapazes de compreender a enorme batalha da existência, naturalmente lhe temos medo e dela tentamos fugir pelas mais sutis e variadas maneiras. Temos também medo ao desconhecido - temor da morte, temor do que reside além do amanhã. Assim, temos medo ao conhecido e medo ao desconhecido. Tal é a nossa vida diária; nela, não há esperança alguma e, por conseguinte, qualquer espécie de filosofia, qualquer espécie de teologia representa meramente uma fuga à realidade - do que é.
Todas as formas exteriores de mudança, produzidas pelas guerras, revoluções, reformas; pelas leis e ideologias, falharam completamente, pois não mudaram a natureza básica do homem e, portanto, da sociedade. Como seres humanos, vivendo neste mundo monstruoso, perguntemos a nós mesmos: “Pode esta sociedade, baseada na competição, na brutalidade e no medo, terminar? - terminar, não como um conceito intelectual, como uma esperança, porém como um fato real, de modo que a mente se torne vigorosa, nova, inocente, capaz de criar um mundo totalmente diferente?” Creio que isso só ocorrerá se cada um de nós reconhecer o fato central de que, como indivíduos, como entes humanos - seja qual for a parte do universo em que vivamos, não importando a que cultura pertençamos - somos inteiramente responsáveis por toda a situação do mundo.
Somos, cada um de nós, responsáveis por todas as guerras, geradas pela agressividade de nossas vidas, pelo nosso nacionalismo, egoísmo, nossos deuses, preconceitos, ideais - pois tudo isso está a dividir-nos. E só quando percebemos, não intelectualmente, porém realmente, tão realmente como reconhecemos que estamos com fome ou que sentimos dor, bem como quando vós e eu percebemos que somos os responsáveis por todo este caos, por todas as aflições existentes no mundo inteiro, porque para isso contribuímos em nossa vida diária e porque fazemos parte desta monstruosa sociedade, com suas guerras, divisões, sua fealdade, brutalidade e avidez - só então poderemos agir.
Mas, que pode fazer um ente humano, que podeis vós e que posso eu fazer para criar uma sociedade completamente diferente? Estamos fazendo a nós mesmos uma pergunta muito séria. É necessário fazer alguma coisa? Que podemos fazer? Alguém no-lo dirá? Muita gente no-lo tem dito.  Os chamados guias espirituais, que supõem compreender essas coisas melhor do que nós, no-lo disseram, tentando modificar-nos e moldar-nos em novos padrões, e isso não nos levou muito longe; homens sofisticados e eruditos no-lo têm dito, e também eles não nos levaram mais longe.  Disseram-nos que todos os caminhos levam à verdade; vós tendes o vosso caminho, como hinduísta, outros o tem como cristão, e outros, ainda, o têm como muçulmano; mas, todos esses caminhos vão encontrar-se diante da mesma porta. Isso, quando o consideramos bem, é um evidente absurdo. A verdade não tem caminho, e essa é sua beleza; ela é viva. Uma coisa morta tem um caminho a ela conducente, porque é estática, mas, quando perceberdes que a verdade é algo que vive, que se move, que não tem pouso, que não tem templo, mesquita ou igreja, e que a ela nenhuma religião, nenhum instrutor, nenhum filósofo pode levar-vos - vereis, então, também, que essa coisa viva é o que realmente sois - vossa irascibilidade, vossa brutalidade, vossa violência, vosso desespero, a agonia e o sofrimento em que viveis. Na compreensão de tudo isso se encontra a verdade. E só o compreendereis se souberdes como olhar tais coisas de vossa vida. Mas não se pode olhá-las através de uma ideologia, de uma cortina de palavras, através de esperanças e temores.
Como vedes, não podeis depender de ninguém. Não há guia, não há instrutor, não há autoridade. Só existe vós, vossas relações com outros e com o mundo, e nada mais. Quando se percebe esse fato, ou ele produz um grande desespero, causador de pessimismo e amargura; ou, enfrentando o fato de que vós e ninguém mais sois o responsável pelo mundo e por vós mesmo, pelo que pensais, pelo que sentis, pela maneira como agis, desaparece de todo a autocompaixão.  Normalmente, gostamos de culpar os outros, o que é uma forma de autocompaixão.
Poderemos, então, vós e eu, promover em nós mesmos sem dependermos de nenhuma influência exterior, de nenhuma persuasão, sem nenhum medo de punição - poderemos promover em nossa própria essência uma revolução total, uma mutação psicológica, para que não sejamos mais brutais, violentos, competidores, ansiosos, medrosos, ávidos, invejosos enfim, todas as manifestações de nossa natureza que formaram a sociedade corrompida em que vivemos nossa vida de cada dia?
Importa compreender desde já que não estou formulando nenhuma filosofia ou estrutura de idéias ou conceitos teológicos. Todas as ideologias se me afiguram totalmente absurdas. O importante não é uma filosofia da vida, porém que observemos o que realmente está ocorrendo em nossa vida diária, interior e exteriormente. Se observardes muito atentamente o que se está passando, se o examinardes, vereis que tudo se baseia num conceito intelectual. Mas o intelecto não constitui o campo total da existência; ele é um fragmento, e todo fragmento, por mais engenhosamente ajustado, por mais antigo e tradicional que seja, continua a ser uma parte insignificante da existência, e nós temos de interessar-nos pela totalidade da vida. Quando consideramos o que está ocorrendo no mundo, começamos a compreender que não há processo exterior nem processo interior; há só um processo unitário, um movimento integral, total, sendo que o movimento interior se expressa exteriormente, e o movimento exterior, por sua vez, reage ao interior. Ser capaz de olhar esse fato - eis o que é necessário, só isso; porque, se sabemos olhar, tudo se torna claríssimo. O ato de olhar não requer nenhuma filosofia, nenhum instrutor. Ninguém precisa ensinar-vos como olhar. Olhais, simplesmente.
Assim, vendo todo esse quadro, vendo-o não verbalmente porém realmente, podeis transformar-vos, natural e espontaneamente? Esse é que é o verdadeiro problema. Será possível promover uma revolução completa na psique?
Eu gostaria de saber qual é a vossa reação a uma pergunta dessas. Direis, porventura: “Não desejo mudar” - e a maioria das pessoas não o deseja, principalmente aqueles que se acham em relativa segurança, social e economicamente, ou que conservam crenças dogmáticas e se satisfazem em aceitar a si próprios e às coisas tais como são ou em forma ligeiramente modificada. Tais pessoas não nos interessam. Ou talvez digais, mais sutilmente: “Ora, isso é dificílimo, está fora do meu alcance”. Nesse caso, já fechasses o caminho, já cessasses de investigar e será completamente inútil prosseguir. Ou, ainda, direis: “Percebo a necessidade de uma transformação interior, fundamental, em mim mesmo, mas como empreendê-la? Peço-vos me mostreis o caminho, me ajudeis a alcançá-la”. Se assim falardes, então o que vos interessa não é a transformação em si, não estais realmente interessado numa revolução fundamental: estais, meramente, a buscar um método, um sistema capaz de efetuar a mudança.
Se fôssemos tão sem juízo que vos déssemos um sistema, e vós tão sem juízo que o seguísseis, estaríeis meramente a copiar, a imitar, a ajustar-vos, a aceitar, e, fazendo tal coisa, teríeis estabelecido em vós mesmo a autoridade de outrem, do que resultaria conflito entre vós e essa autoridade. Pensais que deveis fazer tal e tal coisa porque vo-la mandaram fazer e, no entanto, sois incapaz de fazê-la. Tendes vossas peculiares inclinações, tendências e pressões, que colidem com o sistema que julgais dever seguir e, por conseguinte, existe uma contradição. Levareis, assim, uma vida dupla, entre a ideologia do sistema e a realidade de vossa existência diária. No esforço para ajustar-vos à ideologia, recalcais a vós mesmo e, no entanto, o que é realmente verdadeiro não é a ideologia, porém aquilo que sois. Se tentardes estudar-vos de acordo com outrem, permanecereis sempre um ente humano sem originalidade.
O homem que diz: “Desejo mudar, dizei-me como consegui-lo” - parece muito atento, muito sério, mas não o é. Deseja uma autoridade que ele espera estabelecerá a ordem nele próprio. Mas, pode algum dia a autoridade promover a ordem interior? A ordem imposta de fora gera sempre, necessariamente, a desordem. Podeis perceber essa verdade intelectualmente, mas sereis capaz de aplicá-la de maneira que vossa mente não mais projete qualquer autoridade - a autoridade de um livro, de um instrutor, da esposa ou do marido, dos pais, de um amigo, ou da sociedade? Como sempre funcionamos segundo o padrão de uma fórmula, essa fórmula torna-se em ideologia e autoridade; mas, assim que perceberdes realmente que a pergunta “como mudar?” cria uma nova autoridade, tereis acabado com a autoridade para sempre.
Repitamo-lo claramente: Vejo que tenho de mudar completamente, desde as raízes de meu ser; não posso mais depender de nenhuma tradição, porque foi a tradição que criou essa colossal indolência, aceitação e obediência; não posso contar com outrem para me ajudar a mudar, com nenhum instrutor, nenhum deus, nenhuma crença, nenhum sistema, nenhuma pressão ou influência externa. Que sucede então?
Em primeiro lugar, podeis rejeitar toda autoridade? Se podeis, isso significa que já não tendes medo. E então que acontece? Quando rejeitais algo falso que trazeis convosco há gerações, quando largais uma carga de qualquer espécie, que acontece? Aumentais vossa energia, não? Ficais com mais capacidade, mais ímpeto, maior intensidade e vitalidade. Se não sentis isso, nesse caso não 1argastes a carga, não vos livrasses do peso morto da autoridade.
Mas, uma vez vos tenhais livrado dessa carga e tenhais aquela energia em que não há medo de espécie alguma - medo de errar, de agir incorretamente - essa própria energia não é então mutação? Necessitamos de grande abundância de energia, e a dissipamos com o medo; mas, quando existe a energia que vem depois de nos livrarmos de todas as formas do medo, essa própria energia produz a revolução interior, radical. Nada tendes que fazer nesse sentido.
Ficais então a sós com vós mesmo, e esse é o estado real que convém ao homem que considera a sério estas coisas. E como já não contais com a ajuda de nenhuma pessoa ou coisa, estais livre para fazer descobertas. Quando há liberdade, há energia; quando há liberdade, ela não pode fazer nada errado. A liberdade difere inteiramente da revolta. Não há agir correta ou incorretamente, quando há liberdade. Sois livre e, desse centro, agis.  Por conseguinte, não há medo, e a mente sem medo é capaz de infinito amor. E o amor pode fazer o que quer.

O que agora vamos fazer, por conseguinte, é aprender a conhecer-nos, não de acordo comigo ou de acordo com um certo analista ou filósofo; porque, se o fazemos de acordo com outras pessoas, aprendemos a conhecer essas pessoas e não a nós mesmos. Vamos aprender o que somos realmente.
Tendo percebido que não podemos depender de nenhuma autoridade exterior para promover a revolução total na estrutura de nossa própria psique, apresenta-se a dificuldade infinitamente maior de rejeitarmos nossa própria autoridade interior, a autoridade de nossas próprias e insignificantes experiências e opiniões acumuladas, conhecimentos, idéias e ideais. Digamos que tivestes ontem uma experiência que vos ensinou algo, e isso que ela ensinou se torna uma nova autoridade, e vossa autoridade de ontem é tão destrutiva quanto a autoridade de um milhar de anos.  A compreensão de nós mesmos não requer nenhuma autoridade, nem a do dia anterior nem a de há mil anos, porque somos entidades vivas, sempre em movimento, sempre a fluir e jamais se detendo. Se olhamos a nós mesmos com a autoridade morta de ontem, nunca compreenderemos o movimento vivo e a beleza e natureza desse movimento.
Livrar-se de toda autoridade, seja própria, seja de outrem, é morrer para todas as coisas de ontem - para que a mente seja sempre fresca, sempre juvenil, inocente, cheia de vigor e de paixão.  Só nesse estado é que se aprende e observa. Para tanto, requer-se grande capacidade de percebimento, de real percebimento do que se está passando no interior de vós mesmo, sem corrigirdes o que vedes, nem dizerdes o que deveria ou não deveria ser. Porque, tão logo corrigis, estais estabelecendo outra autoridade, um censor.
Vamos, pois, investigar juntos a nós mesmos; ninguém ficará explicando enquanto ides lendo, concordando ou discordando do explicador ao mesmo tempo que ides seguindo as palavras do texto, porém vamos fazer juntos uma viagem, uma viagem de exploração dos mais secretos recessos de nossa mente. Para empreender essa viagem, precisamos estar livres; não podemos transportar uma carga de opiniões, preconceitos e conclusões - todos os trastes imprestáveis que juntamos no decurso dos últimos dois mil anos ou mais. Esquecei-vos de tudo o que sabeis a respeito de vós mesmo. Esquecei-vos de tudo o que pensastes a vosso respeito; vamos iniciar a marcha como se nada soubéssemos.
A noite passada choveu torrencialmente e agora o céu está começando a limpar-se; é um dia novo, fresco. Encontremo-nos com este dia novo como se fosse nosso único dia. Iniciemos juntos a jornada, deixando para trás todas as lembranças de ontem, e comecemos a compreender-nos pela primeira vez.

Krishnamurti
 Do livro: LIBERTE-SE DO PASSADO -  Editora Cultrix
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill