
Krishnamurti: Suponho que o que lhe interessa são os apegos psicológicos, interiores. Quanto mais apego, tanto maior a dependência Não há só apego a pessoas, mas também a ideias e a coisas. Somos apegados a certo ambiente, um certo país, etc. Daí se origina a dependência e, por conseguinte, a resistência.
Interrogante: Porque “resistência”?
Krishnamurti: O objeto de meu apego é meu domínio, territorial ou sexual. Esse domínio eu protejo, resistindo a qualquer espécie de intrusão por parte de outros. Limito, também, a liberdade da pessoa a quem estou apegado, e limito minha própria liberdade. Apego, portanto, é resistência. Tenho apego a alguma coisa ou a alguma pessoa. Esse apego é sentimento de posse; o sentimento de posse é resistência e, consequentemente, apego é resistência.
Interrogante: Sim, percebo.
Krishnamurti: Qualquer forma de invasão de meus domínios leva à violência, legal ou psicologicamente. Portanto, apego é violência, resistência, aprisionamento nosso e do objeto de nosso apego. Apego significa “Isto é meu, e não teu; não o toque!”. Por conseguinte, essa relação é resistência a outros. O mundo inteiro está dividido em “meu” e “seu”; minha opinião, meu julgamento, meu alvitre, meu Deus, minha pátria — uma infinidade de absurdos tais. Vendo-se tudo isso ocorrer em nossa vida diária, não abstratamente, porém realmente, é lícito perguntar porque existe esse apego a pessoas, coisas e ideias. Por que depende uma pessoa? Existir é estar em relação, e todas as relações estão nessa dependência, com sua violência, resistência e domínio. Eis o que fizemos do mundo. Quando há posse, há necessariamente domínio. Encontramo-nos com a beleza e nasce o amor; imediatamente ele se converte em apego, e começa a nossa aflição. O amor “fugiu-nos pela janela”. Perguntamos, então: “Que foi feito de nosso grande amor?” É isso, com efeito, o que está acontecendo em nossa vida diária. E, assim, podemos agora perguntar: Porque é que o homem invariavelmente tem apego, não só ao que é belo, mas também a tudo quanto é ilusão e a tantas fantasias absurdas?
A liberdade não é um estado de não dependência; é um estado positivo em que não há dependência nenhuma. Mas, a liberdade não é um resultado, a liberdade não tem causa. Isso precisa ser compreendido bem claramente, antes de se poder examinar esta questão do porque o homem depende ou se deixa cair na armadilha do apego, com todas as suas aflições. Porque temos apego, tentamos cultivar um estado de independência — e isso é mais uma forma de resistência.
Interrogante: Então, que é liberdade? Você diz que ela não é a negação ou cessação da dependência; você diz que não é estar livre de alguma coisa, porém, simplesmente, liberdade. Que é ela, pois? Uma abstração ou uma realidade?
Krishnamurti: Não é uma abstração. É um estado mental em que não existe nenhuma espécie de resistência. Ela não é como o rio que se acomoda às rochas que encontra em seu curso, contornando-as ou sobre elas passando. Nessa liberdade não há rochas, porém apenas o movimento da água.
Interrogante: Mas a rocha do apego existe, neste rio da vida . Não se pode simplesmente falar de outro rio em que não existem rochas.
Krishnamurti: Não estamos evitando a rocha ou dizendo que ela não existe. Temos, primeiramente, de compreender a liberdade. Ela não é o mesmo rio que aquele onde existem rochas.
Interrogante: Eu tenho ainda o meu rio, com suas rochas, e foi sobre ele que vim lhe consultar, e não sobre algum outro rio livre de rochas. Este não tem nenhuma utilidade para mim.
Krishnamurti: Está certo. Mas, você deve saber o que é liberdade, para poder compreender as suas rochas. Deixemos, porém, de parte este símile. Consideremos tanto a liberdade como o apego.
Interrogante: O meu apego tem alguma coisa que ver com a liberdade, ou a liberdade com meu apego?
Krishnamurti: No seu apego há dor. Você quer ficar livre dessa dor e trata de cultivar o desapego, sendo isso mais uma forma de resistência. No oposto não se encontra nenhuma liberdade. Estes dois opostos (o apego e o desapego) são idênticos e mutuamente se reforçam. O que lhe interessa é saber como ter os prazeres do apego, sem as suas aflições. Isso não é possível. Eis porque importa compreender que liberdade não significa desapego. No processo da compreensão do apego, nasce a liberdade, e não na fuga do apego. Assim, nossa questão agora é esta: Porque são os entes humanos apegados, dependentes?
Vendo que somos “nada”, que em nós mesmos somos um deserto, esperamos com a ajuda de outrem encontrar água. Vendo-nos vazios, pobres, desgraçados, incompletos, sem nada de interessante ou de importante, esperamos, com a ajuda de outro, enriquecer-nos. Com a ajuda do amor de outrem, esperamos esquecer a nós mesmos. Com a ajuda da beleza de outrem esperamos alcançar a beleza. Com a ajuda da família, da nação, do amante, de alguma crença fantástica, esperamos cobrir de flores o deserto. E Deus é o supremo amante. Em todas essas coisas procuramos amparar-nos. Nisso há dor e incerteza, e o deserto se torna mais árido do que nunca. Naturalmente ele não se torna nem mais árido nem menos árido; continua a ser o que sempre foi; nós é que o estivemos evitando enquanto fugíamos para uma dada forma de apego, com suas dores, e destas dores fugindo para o desapego. Mas, continuamos áridos e vazios como antes. Assim, em vez de tentarmos a fuga para o apego ou o desapego, não será melhor tornar-nos cônscios do fato, dessa profunda pobreza e insuficiência interior, desse sombrio e vazio isolamento? Essa é a única coisa importante, e não o apego ou o desapego. Você pode olhar o fato sem nenhuma ideia de condenação ou avaliação? Quando o faz, está a olhá-lo como o observador a olhar a coisa observada, ou sem o observador?
Interrogante: “O observador” — que você quer dizer com isso?
Krishnamurti: Você está a olhá-lo de um centro, com todas as suas conclusões de agrado e desagrado, de opinião, juízo, desejo de se libertar desse vazio, etc. — está a olhar a sua aridez com os olhos da conclusão, ou a está olhando com olhos completamente límpidos? Quando a olha com olhos límpidos, não existe observador. E, se não existe observador, existe então a coisa que é observada como solidão, vazio, aflição?
Interrogante: Você quer dizer que aquela árvore não existe, se a olho sem conclusões, sem um centro que é o observador?
Krishnamurti: A árvore existe, naturalmente.
Interrogante: Porque é que a solidão desaparece e a árvore não desaparece, quando a olho sem o observador?
Krishnamurti: Porque a árvore não foi criada pelo centro, pela “mente do eu”. Com sua atividade egocêntrica, a mente do eu criou esse vazio, esse isolamento. Mas, quando aquela mente em que não há centro olha, termina a atividade egocêntrica. Já não existe solidão. A mente funciona então em liberdade. Observando a estrutura do apego e do desapego, e o movimento da dor e do prazer, vemos como a mente do “eu” cria seu próprio deserto e suas próprias fugas. Quando a mente do “eu” está quieta, não há mais deserto, e não há fuga.
Krishnamurti — Uma Luz que não se apaga