Ao chegarmos ao estudo da espiritualidade nos deparamos com o problema do relacionamento com um mestre, lama, guru, ou como quer que nós chamamos a pessoa que, supomos, nos dará compreensão espiritual. Essas palavras, sobretudo o termo "guru", adquiriram no Ocidente significados e associações enganosos e que, geralmente, aumentam a confusão em torno da questão de saber o que significa estudar com um mestre espiritual. Isso não quer dizer que as pessoas no Oriente saibam como devem relacionar-se com guru, enquanto os ocidentais não o saibam; o problema é universal. As pessoas chegam sempre ao estudo da espiritualidade com algumas ideias já fixas a respeito do que vão conseguir e como lidar com a pessoa da qual presumem que vão conseguir. Até a noção de
conseguir alguma coisa de um guru — felicidade, paz de espírito, sabedoria, seja o que for que procuremos — é um dos preceitos mais difíceis de todos. Desse modo, penso que seria proveitoso examinar o modo com que alguns discípulos famosos lidaram com os problemas de como relacionar-se com a espiritualidade e com um mestre espiritual. É bem possível que esses exemplos tenham alguma relevância para a nossa própria busca.
(...) O processo de receber ensino depende do aluno dar alguma coisa em troca; é necessário uma espécie de entrega psicológica, algum presente dessa natureza. Por isso precisamos distinguir a entrega, a abertura, a renúncia das expectativas, antes de podermos falar sobre o relacionamento mestre e aluno. É fundamental que você se entregue, que se abra, que se apresente tal como é ao guru, em vez de tentar apresentar-se como um aluno meritório. Pouco importa o quanto esteja disposto a pagar, o decoro do seu comportamento, a inteligência que demonstra ao dizer a coisa certa ao seu mestre. Não é como realizar uma entrevista para conseguir emprego nem como comprar um carro novo. A questão de obter ou não o emprego depende de suas credenciais, do bom aspecto do seu traje, do bonito lustro que deu aos sapatos, do seu modo correto de falar, das suas boas maneiras. Se você estiver comprando um carro, tudo dependerá da quantia de dinheiro que tenha e do seu crédito na praça.
Em se tratando, porém, de espiritualidade, requer-se algo mais. Já não é uma questão de solicitar um emprego, de vestir-se bem a fim de impressionar o possível empregador. Esse tipo de engano não se aplica a uma entrevista com um guru, que enxerga as nossas imperfeições. Ele achará engraçado que você se vista especialmente para falar com ele. Não se fazem gestos cativantes nessa situação; na verdade, isso é fútil. Precisamos assumir um compromisso verdadeiro de abrir-nos perante o mestre; precisamos estar dispostos a desistir de todas as nossas ideias preconcebidas.
(...) Receio que a palavra "guru" seja usada em demasia no Ocidente. Teria sido melhor se falássemos em "amigo espiritual", uma vez que os ensinamentos enfatizam um encontro recíproco entre duas mentes. É mais uma questão de comunicação mútua do que uma relação de amo e criado entre um ser altamente desenvolvido e um ser miserável e confuso. No relacionamento de amor e criado, o ser altamente desenvolvido pode dar a impressão de não estar sequer sentado na sua poltrona, mas parecerá flutuar, levitar, olhando de cima para todos nós. Sua voz, penetrante, difunde-se pelo espaço. Cada palavra, cada tosse, cada movimento que faz é um gesto de sabedoria. Mas isto é um sonho. O guru há de ser um amigo que nos comunica e oferece suas qualidades.
(...) Tampouco vale a pena escolher alguém como guru simplesmente por ser famoso, ser renomado por ter publicado montes de livros e convertido milhares ou milhões de pessoas. O critério, nesse caso, seria se você pode, de fato, comunicar-se com a pessoa, direta e completamente. Até que ponto você se ilude a si mesmo? Se você abrir-se realmente com o seu AMIGO ESPIRITUAL, vocês com certeza trabalharão JUNTOS. Você é capaz de falar com ele plena e devidamente? Ele sabe alguma coisa a seu respeito? E, a propósito, ele sabe alguma coisa a respeito de si próprio? O guru é, de fato, capaz de enxergar através das suas máscaras, de comunicar-se com você adequada e diretamente? Na procura do mestre, estas parecem ser as indicações, muito mais do que a fama e a sabedoria.
(...) Se você for fazer amizade com um mestre espiritual, terá de agir com simplicidade, abertamente, de modo que a comunicação se estabeleça entre iguais, em lugar de tentar conquistar-lhe a simpatia.
Para poder ser aceito pelo guru como amigo, você terá de abrir-se completamente com ele. E para poder abrir-se, terá provavelmente de sujeitar-se a provas que lhe serão dadas pelo seu amigo espiritual e pelas situações da vida em geral, e todas elas assumirão a forma de desapontamento. Em alguma fase do processo você DUVIDARÁ de que o amigo espiritual tenha qualquer sentimento, qualquer emoção em relação a você. Isso é lidar com a própria hipocrisia. A hipocrisia, o fingimento e a deformação básica do ego é extremamente dura; tem uma pele muito grossa. Tendemos a usar armaduras, uma em cima da outra. Essa hipocrisia é tão densa e multinivelada que, assim que retiramos uma camada da armadura, encontramos outra debaixo dela. Esperamos que não sejamos obrigados a despir-nos completamente. Esperamos que o simples despojar de algumas camadas nos faça apresentáveis. Em seguida, aparecemos envergando a nova couraça com um rosto insinuante, mas o nosso amigo espiritual não usa nenhum tipo de armadura; é uma pessoa nua. Em comparação com a sua nudez, estamos vestidos de cimento. A nossa armadura é tão grossa que o nosso amigo NÃO CONSEGUE SENTIR A TEXTURA DE NOSSA PELE, DE NOSSOS CORPOS. Não pode sequer ver direito o nosso rosto.
(...) Já houve quem dissesse que a primeira fase do encontro com um AMIGO ESPIRITUAL é como a ida a um supermercado. Você está emocionado e sonha com todas as coisas diferentes que irá comprar: a riqueza do amigo espiritual e as coloridas qualidades da sua personalidade. A segunda fase do relacionamento é como o comparecimento a um tribunal, como se você fosse um criminoso. Incapaz de satisfazer às exigências do seu amigo, você começa a sentir-se constrangido, porque não ignora que ele sabe tanto quanto você a respeito de você mesmo, o que é sumamente embaraçoso. A terceira faze, quando você vai ver o amigo espiritual, é como estar vendo uma vaca que pasta feliz, num campo. Você apenas lhe admira o sossego e a paisagem, e continua andando. Finalmente, a quarta fase é como passar por uma pedra na estrada. Você nem sequer percebe, passa por ela e segue em frente.
No princípio, ocorre uma espécie de namoro com o guru, um caso de amor. Até que ponto você é capaz de obter as boas graças dessa pessoa? Há uma tendência para querer estar mais perto do AMIGO ESPIRITUAL, porque deseja REALMENTE aprender. Sente grande admiração por ele. Ao mesmo tempo, porém, ELE O ASSUSTA, o perturba. Ou a situação não corresponde às suas expectativas, ou há um sentimento embaraçoso que o leva a pensar: "Talvez eu não seja capaz de abrir-me total e completamente". Surge, então, um relacionamento de amor e ódio, como um processo de entrega e fuga. Em outras palavras, começamos a jogar um jogo: o jogo de queremos nos abrir, de queremos nos envolver num caso de amor com o guru e, logo fugir. Se chegarmos demasiado peto do amigo espiritual, começaremos a nos sentir subjugados por ele. Como diz o provérbio tibetano: "O guru é como o fogo. Se você se aproximar demais, se queimará; mas, se permanecer demasiado longe, não receberá calor suficiente." Esse gênero de namoro acontece da parte do aluno, que tende a chegar perto demais do mestre, mas, ao fazê-lo, queima-se. Então deseja fugir de uma vez por todas.
Por fim, o relacionamento começa a tornar-se muito efetivo e sólido. Você começa a compreender que o desejo de estar perto e o desejo de estar longe do guru é simplesmente um jogo seu. Não relação alguma com a situação real, pois é apenas uma alucinação sua. O guru ou amigo espiritual está sempre lá, ardendo, sempre como um fogo de vida. Você pode entreter-se com ele, ou não, como bem entender.
A seguir, o relacionamento com o seu AMIGO ESPIRITUAL começa a ficar muito criativo. Você aceita as situações de ser engolfado ou ser excluído por ele. Se ele decidir representar o pale da água gelada, você o aceita. Se ele decidir representar o papel do fogo, você o aceita. Nada o consegue abalar e você se reconcilia com ele.
A fase seguinte é aquela em que, tendo aceito tudo o que o amigo espiritual pode fazer, você começa a perder a própria inspiração porque se entregou completamente, desistiu completamente. Sente-se reduzido a um grãozinho de pó. É insignificante. Começa a achar que o único mundo que existe é o do seu amigo espiritual, o guru. Como se estivesse assistindo um filme fascinante, tão emocionante que você passa a fazer parte dele. Já não há você, nem sala de cinema, nem poltronas, nem expectadores, nem amigos sentados ao seu lado. O filme é tudo o que existe. Este é o período chamado "período de lua-de-mel", em que se veem todas as coisas como parte do ser central, o guru. Você não passa de uma pessoa inútil, insignificante, continuamente alimentada pelo grande e fascinante ser central. Toda vez que se sente fraco, cansado ou entendiado, senta-se na sala do cinema e é entretido, enaltecido, rejuvenescido. Nesse ponto, destaca-se o fenômeno do culto a personalidade. O guru é a única pessoa do mundo que existe, viva e vibrante. O próprio significado da sua vida depende dele. Se você morrer,morrerá por ele. Se viver, sobreviverá por ele e é insignificante.
Esse caso de amor com o amigo espiritual, todavia, não dura para sempre. Mais cedo ou mais tarde diminuirá a intensidade e você terá de enfrentar sua própria situação de vida e sua própria psicologia. É como se houvesse casado e se acabasse a lua-de-mel. Você não só toma consciência da pessoa amada como foco central de sua atenção, mas também começa a perceber-lhe o estilo de vida. Começa reparando no que faz dessa pessoa um mestre, para além dos limites da individualidade e da personalidade. Dessa forma, o princípio da "universalidade do guru" entra igualmente em cena. cada problema com que você se depara na vida é parte do seu casamento. Sempre que você vivencia dificuldades, ouve as palavras do guru. Este é o ponto em que começa a conquistar a independência do guru como amante, porque cada situação passa a ser uma expressão dos ensinamentos. primeiro você se entregou ao amigo espiritual. Depois se comunicou e entreteve-se com ele. E agora chegou ao estado de abertura completa, em consequência do qual começa a ver a qualidade de guru em cada situação da vida, e a perceber que todas as situações da vida lhe oferecem a oportunidade de ser tão aberto quando você é com o guru, de modo que todas as coisas podem transformar-se no guru.
(...) O amigo espiritual passa a fazer parte de nós, ao mesmo tempo que continua a ser um indivíduo, uma pessoa externa. Como tal, o guru, tanto interno como externo, desempenha um papel muito importante na penetração e exposição das nossas hipocrisias. O guri pode ser uma pessoa que age como um espelho, refletindo-nos, ou a nossa própria inteligência básica assume a forma do amigo espiritual. Quando o guru interno começa a funcionar, não se pode mais fugir da exigência de abrir-se. A inteligência básica nos segue a toda a parte; não se pode escapar da própria sombra. "O Grande Irmão está nos vigiando". Embora não sejam entidades externas que nos observam e assediam, nós nos assediamos. Nossa própria sombra nos assedia.
Podemos olhar isso de duas maneiras diferentes. Podemos ver o guru como um fantasma, que nos assombra e zomba da nossa hipocrisia. Pode haver uma qualidade demoníaca na compreensão do que somos. De outro lado, há sempre a qualidade criativa do amigo espiritual que também se torna parte de nós. A inteligência básica, continuamente presente nas situações da vida, é tão aguda e penetrante que, em determinada fase, não conseguimos livrar-nos dela, ainda que o desejemos. às vezes, ela assume uma expressão severa, outros um sorriso inspirador. Segundo a tradição tântrica, não vemos o rosto do guru, apenas a sua expressão durante o tempo todo, sorrindo, sardônico, ou fechando a cara, colérico. Sua expressão faz parte de cada situação de vida. A inteligência básica, natureza de Buda, está sempre presente em toda experiência que a vida nos traz. Não há como escapar-lhe. Diz-se também nos ensinamentos: "è melhor não começar. Mas se você começar, é melhor terminar." Por isso é melhor que você só ponha os pés no caminho espiritual, se precisar fazê-lo. Mas, depois que tiver posto os pés no caminho, depois que o tiver realmente feito. não pode voltar atrás. Não há jeito de escapar.
Chögyam Trungpa - Além do materialismo espiritual