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sexta-feira, 13 de abril de 2018

A percepção do que é verdadeiro


A percepção do que é verdadeiro

[...] Para se descobrir o que é verdadeiro, devem ser postas de parte todas as conclusões, todas as formas de comparação e condenação; e isso se nos afigura dificílimo, porque somos educados, condicionados para condenar, justificar. Quando temos um problema, tentamos achar uma solução em vez de tratarmos de compreender o próprio problema; pois a solução está contida no problema, e não fora dele. Para a maioria de nós, mudança consiste apenas em troca de padrão; e se considerardes isso, vereis que troca de padrão constitui uma verdadeira transformação. Toda mudança operada na esfera do tempo é o mesmo movimento, modificado e continuado.

Ora, eu não estou falando sobre mudança de padrão, porém a respeito de uma profunda revolução psicológica — e isso significa libertar-se completamente da estrutura psicológica da sociedade. Mudança que se opera dentro do padrão social é um movimento do “conhecido” para o “conhecido”, não achais? Sou isto e quero tomar-me aquilo, que é meu ideal, e, assim, luto para mudar. Mas o ideal é uma “projeção” do conhecido, e o cultivo do ideal continua a não ser mudança nenhuma.

A revolução implica, por certo, um percebimento total de toda a estrutura psicológica do “eu”, consciente e inconsciente, e que se esteja totalmente livre dessa estrutura sem pensar em “tornar-se outra coisa”. Quer estejamos apercebidos dela, quer não, a maioria de nós estabeleceu um padrão de pensamento e atividade, um modo de vida padronizado. No esforço para operarmos uma mudança em nossa vida, aceitamos consciente ou inconscientemente um certo padrão, e pensamos ter mudado; mas, na realidade, não houve mudança nenhuma.

Como tenho salientado, se não há compreensão do inconsciente, toda “mudança” psicológica é simples ajustamento a um padrão estabelecido pelo inconsciente. E a crise atual — não apenas a crise externa, mas também a crise existente na consciência — exige uma revolução: não me refiro à revolução social ou econômica, que é muito superficial, porém à revolução no inconsciente — à completa libertação da estrutura psicológica da sociedade, total abandono da ambição, da inveja, da avidez, do desejo de poder, posição, prestígio, etc. Esta é a única revolução, porquanto, sem ela, nada de novo pode existir; sem ela, ficamos apenas acalentando ideias, conceitos e, por conseguinte, há sempre sofrimento. Só tem fim o sofrimento com essa revolução total.

A questão, pois, é: Como operar essa mudança interior, essa revolução total? Se fazemos um esforço deliberado, consciente, para modificar-nos, geramos conflito, luta; e a mudança nascida de conflito, luta, só pode produzir mais sofrimento.

Ora, é possível promover uma revolução na psique, sem esforço consciente? Tenho explicado cuidadosamente que o inconsciente é o depósito do passado. No inconsciente estão armazenadas não só as experiências do indivíduo, mas também as da raça. Ele é o repositório de toda a luta do homem no decurso das idades: sua busca de Deus, sua rejeição de Deus, sua adoração do Estado, sua identificação com a nação, com uma ideia, etc. A totalidade de tudo isso é o passado, é o fundo inconsciente de cada um de nós, em conformidade com o qual reagimos. Podemos tentar compreender o inconsciente por meio de exame e análise, mas isso, é óbvio, não produzirá revolução. Podeis modificar, reformar; mas vossa reforma tornará necessária nova reforma; não é revolução, não é a completa libertação do passado. Necessita-se de uma mente jovem, nova, purificada, e essa mente só pode existir quando nos libertamos psicologicamente do passado.

Mas como poderá operar-se essa revolução, sem esforço, sem se procurar fazer algo nesse sentido? Todo esforço ou luta que visa transformação envolve contradição, e a contradição acentua o conflito já existente; portanto, não há transformação. Só se pode perceber o que é novo num estado de purificação, isto é, quando o passado deixou de ter qualquer significação psicológica.

A inocência, como deveis saber, é uma das exigências da sociedade moderna, mas essa exigência é ainda muito superficial. Para as pessoas que têm passado por muitos sofrimentos, que se veem oprimidas pelo sentimento de culpa, pela ansiedade, pelo medo — para essas pessoas a “inocência” é uma coisa muito importante. Mas a “inocência” de que falam é o oposto da complexidade, o oposto do sofrimento, da angústia, da luta, da confusão. A verdadeira “inocência”, como o amor, não é um oposto. O amor não é o oposto do ódio. Só nasce o amor quando o ódio, em todas as suas formas, desapareceu. Do mesmo modo, a mente deve ser “inocente” (ilesa), embora tenha passado por todas as formas de experiência. Para que a mente realize esse estado de “inocência” devem terminar as acumulações de experiência — as quais são ainda o passado, ainda fazem parte do fundo inconsciente.

Ora, como será isso possível? Dizem as pessoas religiosas que devemos recorrer a Deus, pormo-nos num estado de receptividade para a Graça de Deus. E há práticas religiosas (quase ia dizendo “truques”) de toda espécie, que servem para persuadir, influenciar ou controlar a mente humana, a fim de torná-la capaz de alcançar, de uma ou de outra maneira, aquela “inocência”. Há também os que, com o uso de drogas diversas, procuram “experimentar” um estado exaltado de sensibilidade perceptiva, um maravilhoso estado de bem-aventurança. Mas a inocência não pode ser “produzida” com o uso de nenhuma droga, de nenhum método de ioga, nenhuma crença ou rejeição de crença, ou pelo aguardar a Graça de Deus. Tudo isso implica esforço, busca, ânsia de fugir ao fato — o que é. E a inocência só pode vir à existência com a total libertação do “conhecido” — isto é, com o morrer para o “conhecido”, morrer para o passado, para as lembranças agradáveis, para todas as coisas que temos acalentado, formado, acumulado e que constituem nosso caráter.

Infelizmente, a maioria de nós não deseja morrer para nada, principalmente para aquilo que nos dá prazer, para as lembranças de coisas que temos experimentado e a que ficamos apegados. Preferimos encontrar um refúgio, viver numa ilusão. Mas, precisamos morrer para o “conhecido”, a fim de que se torne existente a “inocência”. Isto não é uma mera declaração verbal ou conclusão. É necessário morrermos realmente para o “conhecido”, para o passado. Mas não podemos morrer para o conhecido, se temos um motivo para morrer; pois todo motivo está enraizado no tempo, no pensamento; e o pensamento é a reação do fundo (background) da consciência, o qual é o “conhecido”.

Todos estamos condicionados — como ingleses, russos, hinduístas, cristãos, budistas, o que quer que seja. Somos moldados pela sociedade, pelo ambiente; nós somos o ambiente. A maioria de vós, sem dúvida, crê em Deus, em Jesus, porque nesta crença fostes educados; ao passo que na Rússia as pessoas foram condicionadas para não aceitarem nada disso. A totalidade do condicionamento da mente é o “conhecido”, e esse condicionamento pode ser quebrado, mas não por meio de análise. Só pode ser quebrado quando considerado de maneira negativa, e essa maneira negativa não é o oposto da positiva. Assim como o amor não é o oposto do ódio, assim também esse “negativo” não é o oposto de “positivo”, que é exame, análise, esforço para alterar o padrão existente ou para ajustar-se a um padrão diferente. Tudo isso consideramos “positivo”; e o “negativo” de que falamos não é o oposto disso. Não é, tampouco, uma síntese. Síntese implica reunião dos opostos, mas isso produz novo conjunto de opostos. O “negativo” de que falamos é a total rejeição dos opostos. Quando rejeitamos totalmente o método (que faz parte de nosso condicionamento) pelo qual se procura modificar a psique por meio de esforço, de análise, então o nosso método é negativo; e só nesse estado de negação a mente pode ser “inocente”. Essa é a mente verdadeiramente religiosa.

A pessoa religiosa não é aquela que crê, que vai à igreja todos os dias ou uma vez por semana; não é a que tem um credo, que está escravizada a dogmas e superstições. A mente religiosa é, deveras, uma mente científica; científica, no sentido de que é capaz de observar os fatos sem desfigurá-los, de ver a si própria tal como é. O libertar-se do condicionamento requer, não uma mente crédula, disposta a aceitar, porém aquela capaz de se observar de maneira racional e sã, e de perceber que, a menos que seja despedaçada a estrutura psicológica da sociedade, ou seja o “eu”, não pode haver “inocência”; e que, sem “inocência”, a mente nunca poderá ser religiosa.

A mente religiosa não é fragmentária, não divide a vida em compartimentos. Ela abarca a totalidade da vida — a vida de aflição e dor, a vida de alegrias e satisfações passageiras. Uma vez que está totalmente livre da estrutura psicológica da ambição, da avidez, da inveja, da competição, de toda exigência de mais, acha-se a mente religiosa num estado de “inocência”, e só assim a mente pode transcender a si própria, e não quando crê, meramente, num além ou nutre uma certa hipótese relativa a Deus.

A palavra “deus” não é Deus; o conceito que tendes de Deus não é Deus. Para se descobrir se existe isso que se pode chamar “Deus”, devem desaparecer totalmente todos os conceitos verbais e formulações, todas as ideias, todo pensamento que seja reação da memória. Só então existe aquele estado de “inocência” em que não há automistificação, nem o querer ou desejar resultado; e então podereis descobrir por vós mesmo o que é verdadeiro.

Assim, a mente já não está em busca de experiência. Se ela busca experiência, é imatura. À mente “inocente” já não interessa a experiência. Está livre da palavra, ou seja da capacidade de reconhecer com seu fundo de conhecimento (background). O reconhecimento implica associação, que pode ser verbal ou empírica e sem essa associação nada se pode reconhecer. A mente religiosa, ou “inocente”, está livre da palavra, livre de conceitos, padrões, formulações, e só assim pode uma mente descobrir por si própria se há, ou não há, o Imensurável.

Krishnamurti, Londres, 19 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


A questão da percepção do que somos


A questão da percepção do que somos

[...] Estamos tratando de ver-nos como somos, conhecer a nós mesmos, se possível, totalmente. Estamos tratando de compreender essa entidade sobremodo complexa que é cada um de nós, com todas as suas sutis variações, conflitos, ânsias, compulsões.

Disse eu que, para nos compreendermos completamente, torna-se necessário um certo percebimento, o percebimento individual de como somos; e não podemos ter essa percepção, se condenamos ou justificamos o que vemos em nós. Ora, isso é bastante simples. Se condeno a mim próprio, não há compreensão. Não percebo o significado daquilo que vejo; condeno-o, apenas. Se condeno uma pessoa ou a comparo com outra, não a compreendo.

Assim, para compreendermos a nós mesmos — por nobres ou ignóbeis, sensíveis ou insensíveis que sejamos — requer-se percebimento. Esse percebimento implica que não deve haver justificação, nem condenação, nem comparação. Justificação, condenação e comparação estão dentro da esfera do tempo; são ditadas pelo nosso condicionamento. Olhamos as coisas como ingleses, hindus, cristãos ou comunistas. Nossa observação e nosso pensar estão condicionados pelas influências culturais e educativas de nosso ambiente, e se não estamos apercebidos desse condicionamento, não podemos ver o que é, não podemos ver o fato. Isto, em si, é bastante simples, não achais? Não é algo que estais tentando aprender de mim. Para verdes e compreenderdes a entidade sobremodo complexa que sois, deveis olhar-vos sem esse fundo de condenação, justificação e comparação. E quando vos olhardes desse modo sabereis ver-vos de maneira total.

Considero importante compreender esta questão do percebimento, e não torná-la algo misterioso. Não há mistério nenhum no percebimento. Ele é infinitamente praticável e aplicável à existência diária. Se uma pessoa percebe que está comparando, julgando, avaliando, se está inteirada de seus gostos, versões, contradições, sem condenar ou procurar livrar-se delas, — se percebe tudo isso, se está crente do fato, que acontece? Que acontece se não ignoro que sou mentiroso — se percebo o fato sem condená-lo, sem dizer quanto isso é terrível, maléfico, desvirtuoso, etc.? Se sabeis que realmente mentis, que acontece?

Vede, por favor, que não estais aprendendo nada de mim. Eu não quero ser vosso instrutor, não quero ser seguidor. Isso é prejudicial, um obstáculo, destrói toda a vossa capacidade de vós mesmo o descobrirdes. Mas, se observardes, vereis que, quando estais simplesmente apercebido do fato, vós o examinais sem terdes nenhuma opinião a seu respeito. Olhais para ele como coisa nova, e não com todas as lembranças e associações ligadas ao fato.

Espero estar-me explicando com clareza.

A dificuldade é que nunca encarais a realidade diretamente, olhais apenas para os “valores” e opiniões a ela associadas, e isso vos impede de ver o fato.

Ora, que acontece quando vejo que estou mentindo, que sou ambicioso, ou invejoso, ou ávido? Quando olho para o fato, sem nenhuma opinião, nenhuma lembrança a ele relativa, já não há então nenhum obstáculo a percebê-lo. Posso olhá-lo, sem desvio nem desfiguração; e, então, esse próprio fato gera a energia de que preciso para tratar dele. Posso descobrir porque minto, e o que a esse respeito devo fazer. Compreendeis? Se não tenho nenhuma opinião, juízo ou avaliação concernente ao fato, então ele próprio gera a energia necessária para enfrentá-lo.

Tudo isso faz parte da percepção, faz parte do tempo. Por favor, não especuleis a respeito do atemporal. Para descobrirdes o que existe além do tempo, não deveis “fabricar” uma porção de palavras, e tampouco podeis aprendê-lo de minha boca. Tendes de trabalhar aplicadamente, para chegardes a esse descobrimento.

Perceber significa estar consciente de vossas reações ao vos defrontardes com um fato. Significa observar todas as vossas reações aos “desafios” — não algum desafio “supremo”, mas os desafios de cada dia, os pequenos desafios ocorrentes quando viajais num ônibus, quando falais com o patrão, etc. Deveis dar-vos conta, não apenas de vossas reações conscientes, educadas, “modernas”, mas também dos motivos, compulsões e ânsias inconscientes; porque tanto o consciente como o inconsciente estão dentro do campo do condicionamento e, por conseguinte, do tempo. O inconsciente é o passado, a herança racial acumulada, e é preciso que se perceba tudo isso.

Ora, para se poder estar ciente, sem escolha, desse processo total do inconsciente e do consciente, necessita-se de um estado mental negativo; e acho que agora já deve estar bastante claro o que eu entendo por “ estado mental negativo” . O estado positivo é aquele em que a mente condena, julga, avalia, aprova, nega, concorda ou discorda, e ele resulta de vosso particular condicionamento. Mas o processo negativo não é o oposto do positivo.

Se desejais compreender o que está dizendo este orador, deveis escutar negativamente, não? “Escutar negativamente” significa não aceitar nem rejeitar o que se diz, nem compará-lo com o que está escrito na Bíblia, ou com o que diz o vosso analista. Escuta-se, simplesmente. Nesse “escutar negativo” percebeis vossas próprias reações sem julgá-las; por conseguinte, começais a compreender-vos, e não simplesmente o que o orador está dizendo. O que o orador diz é apenas um espelho em que vos mirais.

Ora, esse percebimento implica atenção, não achais? E, no estado de atenção, não há esforço de concentração. No momento em que dizeis: “Preciso concentrar-me”, criastes o conflito, porque concentração envolve contradição. Desejais concentrar-vos em alguma coisa, vosso pensamento foge, procurais fazê-lo voltar, e ficais continuamente empenhado nessa batalha. E, enquanto se desenrola a batalha, não estais escutando. Se aprofundardes isso, acho que descobrireis que os dizeres do orador exprimem a verdade. Não é uma coisa aplicável a vós mesmo só porque ouviste alguém dizer algo sobre ela.

A compreensão, pois, é um estado de atenção sem escolha. E, sem esse percebimento, essa atenção, nenhum significado tem o falar acerca do que está além, o atemporal, etc. Isso é pura especulação. É o mesmo que ficar sentado ao pé do monte a perguntar o que há do outro lado dele. Para descobrirdes o que há, tereis de galgar o monte. Mas ninguém deseja galgar o monte, pelo menos poucos o desejam. Em geral nos satisfazemos com explicações, conceitos, ideias, símbolos. Procuramos compreender apenas verbalmente o que é atenção, o que é percebimento. Mas essa compreensão de si mesmo é tarefa verdadeiramente penosa. Não estou empregando a palavra “penosa” no sentido de conflito ou esforço para alcançar algo. É preciso estar verdadeiramente interessado em tudo isso. Se não estais interessado, muito bem, não precisais tocar nisso. Mas, se estais interessado, vereis quanto é difícil compreender a si próprio totalmente. Todos os problemas humanos originam-se desse centro extraordinariamente complexo e vivo que é o “eu”, e o homem que deseja descobrir os sutis movimentos desse “eu”, tem de estar negativamente apercebidos, observando sem escolher. Todo esforço para ver, toda espécie de compulsão, desfigura o que se vê, e, por conseguinte, nada vemos.

Krishnamurti, Londres, 17 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito



quinta-feira, 12 de abril de 2018

Que se entende por “estar apercebido sem escolha”?


PERGUNTA: Que se entende por “estar apercebido sem escolha”?

KRISHNAMURTI: Não devemos atribuir exagerada significação à palavra “apercebido”. “Estar apercebido” não é nada misterioso em que devais exercitar-vos; não é uma coisa que só pode ser aprendida deste orador ou de um certo senhor de longas barbas. Tais coisas são por demais fantásticas e absurdas. “Estar simplesmente apercebido” que significa isso? Cientificar-vos de que estais sentados aí e eu estou sentado aqui; de que eu vos estou falando, e vós me estais escutando; conscientizar-vos deste salão, sua forma, sua iluminação, sua acústica; observar as variadas cores dos traços das pessoas, as atitudes dessas pessoas, seu esforço para prestar atenção, o coçar-se, o bocejar, o enfado, a insatisfação de não poderem extrair do que estão ouvindo algo que possam “levar para casa”; o seu concordar ou discordar do que se está dizendo. Tudo isso é parte do “estar perceptivo” — parte muito superficial, aliás.

Por trás dessa observação superficial, está a reação de nosso condicionamento; eu gosto e não gosto, sou inglês e vós não sois, sou católico e vós sois protestante. E nosso condicionamento, com efeito, é bem profundo. Ele requer investigação, compreensão. Perceber nossas reações, nossos secretos motivos e reações condicionadas — isso também faz parte da conscientização.

Não podeis “estar plenamente consciente” se estais a escolher. Se dizeis “isto é certo e aquilo é errado”, o “certo” e o “errado” dependem do condicionamento pessoal. O que para vós é “certo”, no Extremo-Oriente pode ser “errado”. Credes num Salvador, no Cristo, e eles não creem; e vós pensais que eles irão para o inferno, porque não creem como vós. Tendes recursos para construir maravilhosas catedrais, enquanto eles talvez adorem uma imagem de pedra, uma árvore, uma ave, ou uma pedra, e vós dizeis: “Como são estúpidos esses pagãos!”. “Estar ciente” é perceber tudo isso sem discriminar; é dar-vos conta de vossas reações conscientes e inconscientes. E não podeis estar totalmente conscientes se estais condenando, se estais justificando, ou se dizeis “Conservarei minhas crenças, minhas experiências, meus conhecimentos”. Nesse caso, só percebeis parcialmente; e percepção parcial é, em verdade, cegueira.

Ver e compreender não é questão de tempo, não é questão de gradação. Ou vedes, ou não vedes. E não podeis ver, se não estais bem a par de vossas reações, de vosso próprio condicionamento. Estando ciente de vosso condicionamento, deveis observá-lo objetivamente; deveis ver o fato sem emitir opinião ou juízo a respeito dele. Por outras palavras, cumpre olhar o fato sem pensamento. Há então um percebimento, um estado de atenção, sem centro, sem fronteiras, no qual o conhecido não pode interferir; e é nesse estado de atenção total que a mente pode compreender o incognoscível. Uma mente vulgar, uma mente entravada por ideias neuróticas, pelo medo, pela avidez, pela inveja, poderá pensar a respeito do incognoscível, a respeito de Deus, a respeito disto ou daquilo, mas o que pensar terá pouca significação. Essa mente não é, em absoluto, uma mente religiosa.

Krishnamurti, Londres, 12 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


A Verdade só pode ser percebida num clarão


A Verdade só pode ser percebida num clarão

[...] Nesta tarde, vou falar sobre a mente religiosa e a mente nova. E, para examinarmos este assunto — e desejo fazê-lo com certa profundeza — acho necessário compreendermos o significado das palavras.

Usamos as palavras para comunicação; mas, as palavras se tornam barreiras à comunicação quando aceitamos a acepção comum de uma palavra, e esta se torna o padrão de nosso pensar. Vou empregar a palavra “religioso” num sentido todo diferente. A mente tem capacidade para agir totalmente, não em fragmentos, não em partes. A mente que é capaz de ver, no “imediato”, no presente, o todo e não apenas a parte; a mente capaz de compreender, no agora “imediato”, a totalidade da existência — essa mente encerra, em essência, a beleza e a lucidez do amor, o único que pode unir a ação ao Todo. E é necessário compreender essa qualidade da mente religiosa, cuja ação não é dividida, fracionada, fragmentada, porém total. Em si, essa mente é livre da “ideação” como memória, como efeito do “eu”. É o “eu” que fraciona a ação; é o “eu” que impele à aquisição. Esse impulso de apego jamais compreenderá a ação total, própria da mente religiosa.

Assim, estou empregando a expressão “mente religiosa” para designar um estado de ação que une todas as diferentes ações da vida. Essa mente não se acha dividida em “mundo” e “não mundo”, “exterior” e “interior”. Não há “mundo exterior” e “mundo interior”, Há só um movimento, ora externo, ora interno, qual o da maré, que “sai” e torna a “entrar”. A mente religiosa tem a faculdade de compreender o exterior e, com essa compreensão do exterior, passar, natural e facilmente, ao interior, sem dividir o mundo em “exterior” e “interior”.

Mas, para se compreender a totalidade da mente religiosa, é preciso começar a investigar os vários e complexos problemas do viver. Nosso viver diário é extremamente confuso; é um viver de conflito, da aflições inúmeras, de contradições, luta perene; assim é nossa vida. E é só essa a vida que conhecemos. Nenhuma ação conhecemos que não seja reação. Essa reação é que gera sofrimento; e, em virtude desse sofrimento, mais se acentua a divisão em “exterior” é “interior”, “ilusão” e “realidade”. Só há um mundo, e não “mundo exterior” e “mundo interior”. E, se não compreendeis a ação total da mente religiosa, por mais que vos esforceis, por mais revoluções que façais — econômicas, sociais, de qualquer espécie — por mais que planejeis, a prosperidade daí resultante se tornará apenas um meio de destruir a liberdade; e, embora nos seja necessária, a prosperidade se torna então um meio de segurança psicológica. E a mente que, no sentido psicológico, se acha em segurança, não é uma mente religiosa.

Assim, para podermos investigar a natureza da mente religiosa — aquele estado em que a mente é livre do conflito do “eu” — devemos examinar a questão da simplicidade, descobrir o que é “ser simples”; não a ideia da simplicidade, o ideal da simplicidade, não o símbolo da simplicidade, porém o verdadeiro estado da mente na realidade simples. Com a palavra “simples” quero significar: enfrentar cada fato da vida de cada dia e de cada minuto sem nenhuma complexidade; olhar os fatos sem o complexo mecanismo do pensamento; olhar os fatos sem “ideação”, sem ideal. Essa simplicidade não está meramente no modo de trajar, no andar de tanga, no tomar uma só refeição diária; no usar longas barbas ou a cara toda rapada. Refiro-me à simplicidade que tem precisão no pensar, que nenhum conflito tem, nenhuma ilusão, nenhum futuro, que encara o fato, só o fato, nada mais senão o fato.

Essa mentalidade, essa atitude, perante a vida, traz consigo um sentimento de inefável deleite. Poucos de nós somos felizes, natural, fácil e espontaneamente felizes; tão complexos somos, tão numerosos são os nossos problemas! Tudo o que tocamos com a mão, ou com a mente, se torna feio. E quando qualquer coisa se torna seca, vulgar, não há mais sensibilidade; por conseguinte, não há apreciação das coisas como são. Só no apreciar as coisas como são, no enfrentá-las em sua realidade, só daí, dessa compreensão, pode vir a verdadeira revolução.

Essa revolução não se opera consoante o padrão estabelecido por outrem — pelo economista, pelo reformador, pelo político. A revolução a que me refiro só nasce quando sois capaz de ver o fato e de agir de momento a momento em conformidade com esse fato. Assim, vereis que, dessa simplicidade, não só vem um extraordinário sentimento de desafogo, de alívio, mas também profundo deleite. E, sem essa alegria, sem essa centelha, sem essa canção no coração, a vida se torna extremamente vazia. Podeis ser muito talentoso, possuir muitas casas, ocupar posições importantes, influenciar milhares de pessoas por meio da imprensa; mas, atrás dessa fachada de palavras, aposição, prestígio, tudo é vazio, oco.

E é relevante, para o indivíduo, para cada um de nós, possuir esse sentimento de infinita alegria. Ele vem, não por terdes um bom emprego, por terdes feito um casamento feliz ou infeliz; vem sem nenhuma razão. E essa alegria existe; mas só podeis encontrá-la “no escuro”, sem o saberdes, ao compreenderdes a simplicidade da virtude. À virtude não é uma coisa para se alcançar mediante esforço — porque, então, deixa de ser virtude. Quando um homem vaidoso “pratica” a humildade, essa humildade é a própria essência da vaidade. Mas, a virtude é ordem: ordem na mente. E não podeis ter ordem se essa ordem é apenas um padrão sancionado pela sociedade, se é uma mera prática, um hábito; a mente se torna, então, embotada. E uma mente embotada não é virtuosa; poderá ter hábitos excelentes, nunca irritar-se, mostrar-se “virtuosa” e observar os preceitos da sociedade; mas, essa mente não é sensível e, por conseguinte, não é uma mente virtuosa.

Tende a bondade de prestar atenção; mas isso não significa que, fazendo-o, vos tornareis repentinamente virtuosos. Sereis virtuosos, de repente, no mesmo instante, se não estais seguindo o padrão de uma sociedade feia e corrupta; desse modo, tereis ordem e espaço mental. Essa ordem traz eficiência. A mente eficaz no pensar, isenta de conflito, essa é que é a mente virtuosa, a mente que vive com virtuosidade. Quando a virtude é resultado de conflito, resultado de constante luta, ou seja da batalha dos “opostos”, a mente não só se torna insensível, mas é também incapaz de voo célere. Só a mente eficiente tem presteza para ver as coisas num clarão. Porque a verdade só pode ser percebida num clarão; a verdade não tem continuidade. O que tem continuidade pertence ao tempo; e o que é do tempo não tem espaço. Pois só a mente que tem espaço pode ver, num clarão, o que é verdadeiro. Só a mente virtuosa tem espaço; por conseguinte, somente ela pode, num clarão, ver a Imensidade, o Eterno. A virtude não é produto da memória. Se a virtude é produto da memória é, então, uma reação à memória; “reação” é reflexo da memória. A virtude reconhecida pela sociedade, pelas ordens religiosas, por grupos, gera conflito; sendo assim, a mente não é simples.

Como sabeis, o mundo se está tornando cada vez mais complexo. Vossas atuais relações se estão tornando cada vez mais complexas, e não mais simples. A complexidade da vida só pode ser compreendida quando a considerais de maneira simples, bem simples. A vida não é apenas vossa existência diária — ir para o emprego, discutir com a esposa ou o marido, os aborrecimentos, as angústias, o conflito da existência de cada dia. A vida inclui não só o passado, que se projeta no futuro, mas também morte, felicidade, e algo que se acha além do tempo, além do pensamento, do sentimento. E é preciso compreender essa imensa totalidade da vida — não só o “cantinho” de vossa existência, a pequena porção de terra que chamais vossa pátria, o pequeno templo construído pela mão, e sem nenhum significado. A vida é uma coisa extraordinária, uma coisa total, na qual tudo está contido. E, se não compreenderdes a imensidade da vida, que tudo abarca — cada grito, cada lágrima, cada canção de ave, as angústias e sofrimentos e agitações da existência — se não compreenderdes essa totalidade, nunca tereis um clarão daquela imensidade.

Para compreenderdes esta coisa extraordinária que se chama a vida — com suas necessidades sexuais, suas ambições, impulsos, frustrações, velhice, declínio, deterioração — deveis considerá-la de maneira bem simples. E aí é que está a nossa dificuldade; porque somos entes humanos tão complexos e tantas ideias temos. Somos muito talentosos, mas somos entes “de segunda mão”; não há nada original em nós; e é a originalidade que leva à simplicidade, e não a excentricidade, a capacidade de inventar. Mas, essa simplicidade é a simplicidade da mente que compreendeu todas ás facetas da vida — não a vida técnica, a vida de conhecimentos acumulados, porque o saber e o conhecimento técnico podem expandir-se indefinidamente. Sabereis mais e cada vez mais a respeito das coisas, a respeito de Vênus, a respeito da Lua; mas sabereis cada vez menos sobre vós, sobre o que sois. O que sois é a totalidade da vida. Porque sois entes lastimáveis, infelizes, por causa das angústias, do “sentimento de culpa”, e das agonias que sofreis, em silêncio ou abertamente, porque sois assim, para compreenderdes a vida, deveis primeiramente compreender a vós mesmos.

Podeis compreender a vós mesmo, que sois uma entidade complexa, observando-vos com toda a simplicidade. E, com essa percepção, esse ver, esse escutar, compreendereis. Deveis escutar a vós mesmo, não a vosso “Eu Superior” — não há nenhum “eu superior”, nenhum Atman; isso é invenção da mente, resultado do pensamento, do pensamento que é reação da mente, das coisas que foram. Assim, quando vos olhais cada dia, em cada palavra que pronunciais, quando buscais o caminho para as profundezas de vosso coração, então, desse olhar, desse ver, desse escutar e ouvir, vem a simplicidade. Se dessa simplicidade vem alegria; e isso é virtude.

A mente religiosa não tem realmente nenhuma experiência. Importa compreender isso, porquanto todos desejamos experiências e mais experiências. E toda experiência, como assinalei outro dia, é “resposta” a um “desafio”, de acordo com vosso fundo, vosso condicionamento; por conseguinte, cada experiência fortalece aquele condicionamento, e não liberta a mente. Mas vós deveis compreender a natureza de vosso próprio pensamento, a maneira como agis, a maneira como olhais o rosto do motorista de ônibus. Alguma vez olhaste para o motorista do ônibus? Alguma vez olhastes para o seu rosto? Observai-o, uma vez ou outra, ao irdes para o escritório. Vede como é macilento, como parece cansado, esgotado! Percorrer o mesmo caminho, “para cima e para baixo”, todo o santo dia, mês após mês — nisso não há alegria, não há nada senão hábito mecânico e, em tais condições, nunca pode um homem observar as coisas que o rodeiam. Isso indica, por certo, uma mente que se tornou calejada, embotada. Entretanto, essa pessoa fala a respeito de Deus, da Verdade, do desejo de compreender, mas não está apercebida das coisas existentes em redor de si, de sua maneira de se vestir, sua maneira de falar, sua maneira de olhar os indivíduos importantes e os não importantes. Se não conhecerdes tudo isso, se não lançardes a base para tudo isso, não podereis ir muito longe. E virtude é o percebimento do presente.

Vede, estamos sempre vivendo no passado e no futuro. Principalmente quando vos tornais mais velho, o passado assume extraordinária significação, e o futuro é o que chamais “morte”. Por essa razão, volveis ao passado e evitais o futuro; pensais na pretérita felicidade, na ditosa juventude ou na lamentável existência que levastes. Vivemos, assim, entre o passado e o futuro. Se ainda sois jovem, tendes ainda o futuro para dele fazerdes alguma coisa, e o moldais conforme o passado. Estais, pois, aprisionado entre o passado e o futuro. Observai vossa própria mente, vossa própria vida. Não vos limiteis a ouvir o que estou dizendo, mas observai efetivamente a vossa existência. Vereis como está dividida entre o passado e o futuro; e, se não está, isso significa que viveis meramente no “imediato”, no dia a dia, e procurando tirar daí o melhor proveito possível. Porque pode vir uma guerra, pode vir uma revolução política, uma revolução econômica, uma comoção social; qualquer coisa pode acontecer amanhã; o amanhã é incerto. Por conseguinte, se não viveis entre o passado e o futuro, viveis apenas para hoje. Há muitos que vivem para hoje e que chamam a si próprios por diversos nomes. E quando, consciente ou inconscientemente, procurais tirar de hoje o melhor proveito possível, estais fadado ao desespero.

Escutai o que estou dizendo. Achais-vos em desespero se viveis no passado ou no futuro; estais também em desespero, se estais vivendo unicamente para hoje — como está fazendo a maioria das pessoas; esse é o mundo político. Este pobre país está sob o controle dos políticos; e os políticos só têm interesse no “imediato”. Esse imediato pode ser prolongado por certo tempo, mas suas fontes estão ainda no “imediato”. A maioria das pessoas deseja ser feliz imediatamente, deseja êxito imediato. Quando só nos interessa o “imediato”, todas as manifestações de nossa existência são em termos do imediato. Forcejando pelo “imediato”, encontrareis, inevitavelmente, infinito desespero; e, por causa desse desespero, inventais filosofias, e o transformais em virtude. E quanto mais intelectuais, quando mais instruí­dos e ilustrados fordes, tanto mais superficial se tornará o “imediato”. Assim, quer vivais no passado, quer no futuro, quer vivais apenas para hoje, todos estais aprisionados numa vida de aflição, de agitação, numa vida extremamente superficial. Por “superficial” não estou entendendo “alimentação, roupa e morada”, pois necessitamos dessas coisas; refiro-me à superficialidade psicológica da existência.

Porém, se compreendeis o tempo passado, o tempo presente e o tempo futuro — causadores de sofrimentos e desespero, de ansiedade e “culpa” — não a pouco e pouco, nem examinando ou analisando o passado, mas vendo a coisa como um todo, podeis, então, ver a totalidade do tempo, que estava dividido em passado, futuro e o agora. Se virdes isso, se o compreenderdes realmente, dessa maneira, como coisa total, vereis que com essa compreensão, a mente se torna livre do passado, do presente e do futuro. E a mente deve ser livre. É dessa liberdade que nasce o indivíduo.

É de imensa importância que sejais um indivíduo, porquanto os governos, a educação, a sociedade e a religião vos estão obrigando a ajustar-vos, estão fazendo de vós uma “máquina de crer” ou de “não crer”. Sempre pensamos em revolução em termos de comoção econômica, social ou estrutural. Mas toda reviravolta é um reflexo do passado e, por conseguinte, institui um padrão semelhante (ao do passado), porém com “outros homens”, com outro sistema de ideias; mas, é sempre o mesmo padrão. Nós estamos falando de uma mente religiosa que compreendeu sua própria e total estrutura, seu próprio estado e, por conseguinte, é capaz de negar. Vós deveis negar; deveis ser indivíduos que dizem “não”, nunca “sim”. Sabeis quanto é difícil dizer “não” — não só a vossa esposa ou vosso marido, pois isso é relativamente fácil; mas dizer “não” à sociedade, dizer “não” a vossa ambição, dizer “não” a vossos temores, dizer “não” à autoridade. Quando dizeis “não”, entendeis “não” — terminantemente “não”! Se disserdes “não”, descobrireis como isso é extraordinariamente complexo.

Mas, dizendo “não”, descobrireis tudo a respeito de vós mesmo, o de que sois feito, como funciona vosso pensamento, os profundos recessos, o profundo e nunca “frequentado” espaço existente em vossa mente, o qual nunca examinastes. Só quando descobris a vós mesmo, podeis “emergir” da sociedade, tornar-vos um indivíduo. Ao dizerdes “não” vereis que daí nasce energia. Vós necessitais de energia. Tendes energia para ir ao escritório todos os dias; achais isso absurdo, mas ides. Quando exerceis vossas ocupações, quando falais, quando viajais de ônibus ou em vosso próprio carro — isso é uma forma de energia. A vida é energia. Cada pensamento, cada sentimento é uma forma de energia. Mas a energia que nós mesmos geramos e cultivamos nasce da resistência — do resistir, contraditar, aquiescer, imitar. Pela resistência, pela repressão, tendes energia; é só essa a energia que conhecemos; se vos empurro, empurrais também, resistindo. Mas essa energia é completamente diferente da energia de que estamos falando.

A energia a que nos referimos não promana de resistência. Resistência implica sempre motivo, ou seja, medo, solidão, sentimento de culpa ou alguma forma de apego, etc. Por favor, examinai vossa própria mente, e vosso coração, e vereis. Vós tendes energia gerada por algum motivo; por conseguinte, essa energia encontra resistência e começa, assim, a batalha em nossa vida. Essa é a única forma de energia que conhecemos. As pessoas chamadas religiosas, aquelas que estão perenemente em busca de Deus, sem nunca encontrarem Deus, cultivam a energia pela negação com motivo; pensam que nascerá energia se se tornarem celibatárias, se negarem a vida, o processo natural da vida, retirando-se para um mosteiro e praticando “boas obras”, pelo controle de si mesmas. Isso, efetivamente, dá energia; mas essa energia nasce da resistência, nasce do conflito, nasce da repressão. A repressão gera extraordinária energia, tal como o vapor sob pressão; mas essa repressão se torna “religiosa”, e fica associada a Jesus, Krishna ou outro. Entretanto, interiormente, essa energia gera infinita aflição.

Se escutardes o que estou dizendo, vereis como é produzida a vossa energia. Quando descobris, desvendais os vossos motivos e deles vos livrais, e, então, dessa liberdade, provém uma energia de espécie diferente. Essa energia nasce sem motivo, porque ela é a verdadeira essência de uma mente de todo vazia — mas não “em branco”. A mente vazia não tem resistência; porque todo pensamento é resistência. É essa a energia que deveis ter, e não a energia produzida por motivo, conflito, contradição, tensão. Porque essa energia, como podeis ver, traz inaudita aflição, sofrimento. Assim é a vida, vossa existência diária. Vós tendes de compreender isso, mas sem tentar achar aquela energia não motivada, pois não podeis achá-la. Deveis ser livre de resistência. E só podeis ser livre de resistência ao serdes capaz de olhar a vida de maneira simples, olhar a vós mesmo sem nenhuma ideia, nenhum conceito, nenhuma fórmula, nenhuma comparação: olhar, simplesmente. Daí surgirá — como vereis, se alcançardes este ponto — a mente livre, que não é resultado de nenhuma busca.

Como sabeis, todos vivemos buscando — cada um de nós. Buscamos a verdade, a felicidade, a finalidade da vida. Que implica esse buscar? Só podeis procurar algo que perdestes ou algo que já conheceis; desejais achá-lo. Quando dizeis que estais em busca da Verdade, isso é puro contrassenso. Se dizeis tal coisa, já deveis ter provado o sabor da verdade, ter compreendido o que é a verdade. E, se estais a buscá-la, deveis então tê-la perdido; mas a verdade não é coisa que se possa perder, e não é possível encontrá-la por meio de busca. Toda busca deve cessar completamente. Esta é a beleza da verdade. No momento em que começais a buscar, vede-vos em conflito; no momento em que começais a buscar, pondes em ação a energia da fuga — fuga ao fato, fuga ao que sois.

Assim, a mente que busca nunca achará, porque aquela Imensidade não é reconhecível. O que podeis reconhecer é coisa já conhecida — reconheceis vossa mulher, vossos filhos, vossa cidade, porque já os conheceis. Mas o que já sabeis a respeito da verdade não é a verdade. A verdade está além do tempo. Toda busca supõe distância — disto até aquilo. Assim se gera o tempo. A mente que busca a verdade nunca a achará. Escutai, por favor! Procurai compreender isto de uma vez por todas! Se o fizerdes, nunca mais procurareis a verdade.

Quando vos pondes a buscar, a busca se torna um problema. Não deveis ter problemas na vida, não deveis ter um único problema, nem sequer o problema de Deus, ou o problema da verdade, ou o problema da felicidade. Não deveis ter problema nenhum, porque todo problema implica luta, conflito. E a mente em conflito nunca será capaz de compreender o que é a verdade. Tratai de resolver o problema pela compreensão daquilo que o problema implica, da raiz do problema. Não tenteis resolvê-lo, não tenteis analisá-lo, não tenteis dar-lhe solução. Mas estudai-o, penetrai-o, e olhai-o, com todo o vosso ser. A mente que tem problemas nunca será capaz de compreensão e, por conseguinte, nunca será livre. Não vou mostrar-vos como evitar os problemas, porque cada dia é um problema. Mas, se estais atento, verdadeiramente atento, em cada minuto, nada se tornará um problema. Há uma constante observação, uma constante atenção, que é a “resposta”, não da memória, mas de algo muito mais significativo, muito mais amplo e profundo.

A mente religiosa, pois, não é uma mente que busca. A mente religiosa está livre de todos os problemas e, por conseguinte, pode enfrentar os problemas livremente, nunca oferecendo solo propício a um problema, para arraigar-se na mente. Tudo isso poderá parecer dificílimo. Mas vossa vida é difícil. É dificílima a vida que levais: o incessante ir e vir, o morrer, o viver dia por dia, sem nenhuma certeza, nenhuma segurança, em desespero. É dificílima a vida que levais.

Mas, há uma vida que não é difícil, em absoluto. É isto mesmo que quero dizer: essa vida não é difícil, absolutamente, ó que tendes de fazer é só prestar atenção, prestar atenção ao que estais fazendo. A atenção é virtude, a atenção é ordem, a atenção dá eficiência. Podeis ser cozinheiro, ou burocrata, ou funcionário do governo, isto ou aquilo; quando prestais atenção, completamente, com todo o vosso ser, há virtude. Virtude não é essa coisa insípida que a sociedade vos estimula a cultivar.

Como disse, para a mente religiosa é o amor que integra toda ação. Porque vê cada verdade, momento por momento, a mente religiosa possui aquela qualidade de amor que integra a ação. Não sei se alguma vez já amastes alguém, se amastes com todo o vosso ser, com vosso coração, vossa mente, vosso corpo, vosso pensamento, vosso sentimento, com tudo o que tendes. Se já amastes tão completa e totalmente, sabereis, então, em virtude desse estado, que em cada ação — qualquer que ela seja, nenhum conflito há, nenhum problema. Cada ação é integral, não provém de ideia alguma, não se adapta a nenhum princípio vosso. Porque só a mente religiosa compreende a totalidade da existência, que tão terrivelmente temos fracionado. Só a mente religiosa possui essa qualidade de amor e, por conseguinte, pode viver neste mundo.

E o amor é que é capaz de destruição. Vós deveis destruir — destruir a sociedade; mas isso não significa destruir edifícios, jogar bombas sobre governantes e políticos; estes têm seu próprio destino: deixai-os nas mãos dele. Mas a destruição, a destruição psicológica de tudo o que a sociedade fez de vós, essa é necessária. E só podeis destruir completamente quando existe a qualidade da compaixão. Só se torna existente a compaixão com a total compreensão da vida. Sem essa compreensão, podeis ser muito atenciosos, muito bondosos, muito delicados; mas, delicadeza, gentileza, bondade, não é amor; faz parte do amor, mas não é o amor. Não tem amor a mente que não é atenta, que não olha para si mesma e para o meio em que vive. O amor não é uma palavra, porém um estado real. Se não há amor, não podeis destruir; só podeis tornar-vos um reformador.

O amor e a destruição estão sempre unidos, e essa união é criação. Estas três coisas — criação, findar ou morrer, e amor — estão sempre unidas, são inseparáveis. Essa criação — que não significa pintar quadros ou gerar filhos — é energia sem motivo. Essa morte está fora do tempo. E com ela vem o amor. — Só então se pode ver o que existe além do tempo, além de todo o pensamento. Só então é a mente capaz de ver, “num relâmpago”, aquilo a que se não pode dar nome. E há, então, o Eterno que não é invenção da mente, invenção do Gita, da Bíblia. Tendes de pôr de parte todos os livros, todas as ideias, todos os ideais, todas as tradições; ficar completamente nu, vazio, sozinho. Só então se pode ver aquela Realidade.

Krishnamurti, Bombaim, 13 de março de 1962, A mutação Interior

terça-feira, 10 de abril de 2018

O sofrimento e a mente religiosa


O sofrimento e a mente religiosa

Esta é a última palestra. Discorrerei sobre o sofrimento e a mente religiosa. Há sofrimento em toda a parte, exterior e interiormente. Vemo-lo tanto nas altas como nas baixas camadas sociais. Ele existe há milhares de anos, diversas teorias já se conceberam a seu respeito e as religiões dele já falaram muito; entretanto, ele continua. É possível extinguir o penar, ficar realmente, interiormente, de todo livre dele? Não existe só o sofrimento da velhice e da morte, mas também o sofrimento do insucesso, da ansiedade, da culpa, do medo, o sofrimento causado pela contínua brutalidade, pela crueldade do homem para com o homem. Pode-se extirpar a causa desse sofrimento — não em outrem, mas em nós mesmos? Ora, por certo, se desejamos efetuar qualquer transformação, ela deve começar em nós mesmos. Afinal, não há separação entre o indivíduo e a sociedade. Nós somos a sociedade, o “coletivo”. Como franceses, russos, ingleses, hindus, somos o resultado de reações coletivas, desafios e influências coletivas. E no transformar esse centro individual, talvez se possa alterar a consciência coletiva.

A meu ver, a presente crise não é tanto uma crise do mundo exterior, mas uma crise existente na consciência, no pensamento, em nosso ser inteiro. E acho que só a mente religiosa pode resolver esse sofrimento, pode dissipar inteira e completamente todo o mecanismo do pensamento e o resultado que o pensamento produz, na forma de sofrimento, medo, ansiedade e culpa.

Já tentamos tantas maneiras de nos livrarmos do sofrimento: frequentar a igreja, refugiar-nos em crenças e dogmas, aderir a várias atividades sociais e políticas — e inumeráveis outras maneiras de fugir a essa perpétua corrosão do medo e do sofrimento. Só a mente religiosa pode resolver o problema. E por “mente religiosa” entendo algo completamente diferente da mente, do intelecto que crê na religião. Não há religião onde há crença. Não há religião se existe dogma, perpétua repetição de palavras, palavras, palavras, sejam em sânscrito, sejam em latim, sejam noutra língua qualquer. “Ir à missa” é uma forma de entretenimento como outra qualquer; não é religião. Religião não é propaganda. Quer vosso intelecto seja condicionado pela “gente da igreja”, quer pelos comunistas, é a mesma coisa. Religião é algo inteiramente diferente de crença e não crença; e desejo penetrar bem na questão relativa à mente religiosa. Fique, portanto, bem claro para nós que religião não é a fé que professais: isso é muito infantil. E onde não há madureza, não pode deixar de haver sofrimento. Requer-se muita madureza para se descobrir o que é uma mente verdadeiramente religiosa. Esta não é, por certo, a mente que crê, nem aquela que segue qualquer espécie de autoridade, seja a do maior dos instrutores, seja a do chefe de determinada seita. Assim, evidentemente, a mente religiosa está livre de todo sectarismo e, por conseguinte, de toda autoridade.

Posso digressionar agora um pouco, para dizer umas breves palavras a respeito de outra coisa? Alguns de vós vindes escutando estas palestras com bastante assiduidade, nestas últimas semanas. E se vos fordes daqui com uma grande coleção de conclusões, com um novo conjunto de ideias e frases, ir-vos-eis de mão vazias, ou com as mãos cheias de cinzas. Conclusões e ideias, de qualquer espécie que sejam, não resolvem o sofrimento. Assim, espero sinceramente que não fiqueis apegados às palavras mas viajeis junto comigo, a fim de podermos ultrapassar as palavras e descobrir, por nós mesmos, o que é real e, daí, empreender viagem para mais longe. O descobrimento do que existe em nós mesmos, como fato e realidade, faz nascer uma reação e ação de natureza completamente diferente. Espero, pois, não leveis convosco as cinzas das palavras, da memória.

Como dizia, a mente religiosa está livre de toda autoridade. E é muito difícil estar livre da autoridade — não só da autoridade imposta por outrem, mas também da autoridade da experiência que acumulamos, que é do passado, que é tradição. E a mente religiosa não tem crenças, não tem dogmas; ela se move de fato para fato e é, portanto, uma mente científica. Mas a mente científica não é a mente religiosa. A mente religiosa inclui a mente científica; mas a mente treinada no saber científico não é mente religiosa.

A mente religiosa se interessa pela totalidade — não por uma determinada função mas, sim, pelo total funcionamento da existência humana. O intelecto se interessa por determinada função; especializa-se. Ele funciona especializadamente, como cientista, médico, engenheiro, músico, artista, escritor. São estas técnicas especializadas, limitadas, que criam a divisão, não só exterior, mas também interiormente. O cientista, provavelmente, é considerado como a pessoa mais importante de que necessita a sociedade hoje em dia, tal como o é o médico. A função, portanto, se torna de suma importância; e a ela está ligada a posição, e posição é prestígio. Assim, onde há especialização tem de haver contradição e uma limitação, e esta é a função do intelecto.

Cada um de nós, por certo, funciona dentro de uma estreita rotina de reações autoprotetórias. É aí que tem nascença o “eu”, o “ego” — no intelecto, com suas defesas, agressões, ambições, frustrações e sofrimentos.

Há, pois, uma diferença entre o intelecto e a mente. O intelecto é “separativo”, “funcional”, não pode ver o todo; ele funciona dentro de um padrão. E a mente é a totalidade que pode ver o todo. O intelecto está contido na mente; mas o intelecto não contém a mente. E por mais que o pensamento se purifique, se requinte e se controle, ele de modo nenhum pode conceber, formular ou compreender o todo. É a capacidade da mente que percebe o todo, e não o intelecto.

Mas nós desenvolvemos o intelecto num grau espantoso. Toda nossa educação se restringe ao cultivo do intelecto, porque há vantagem no cultivo de uma técnica, na aquisição de conhecimento. A capacidade de perceber o todo, a totalidade da existência — esta percepção não tem o móvel da vantagem; por esse motivo a desprezamos. Para nós, função importa mais que a compreensão. E só há compreensão quando há o percebimento do todo. Ainda que o intelecto seja capaz de discernir a razão, o efeito, a causa das coisas, o sofrimento não pode ser resolvido pelo pensamento. É só quando a mente percebe a causa, o efeito, o mecanismo total, e passa além, é só então que tem fim o sofrimento.

Para a maioria de nós, a função se tomou muito importante porque a ela está ligada a posição, a situação, a classe. E quando a posição se torna existente em virtude da função, há contradição e conflito. Como respeitamos o cientista e desprezamos o cozinheiro! Como veneramos o Primeiro Ministro, o General, e desconsideramos o soldado! Vemos, pois, que há contradição quando a posição está aliada à função; há distinção de classes, lutas de classes. Uma sociedade poderá procurar extirpar as classes, mas enquanto a posição acompanhar a função, tem de haver classes. E é isso o que todos desejamos. Todos desejamos posição, que significa poder.

Como sabeis, o poder é uma coisa extraordinária. Todos o ambicionam: o eremita, o general, o cientista, a dona-de-casa, o marido. Todos desejamos o poder: o poder que o dinheiro confere, poder para dominar, o poder do saber, o poder da capacidade. Ele nos dá posição, prestígio, e é isso que desejamos. E o poder é coisa má, seja o poder do ditador, seja o poder da esposa sobre o marido ou do marido sobre a esposa. É mau, porque força outrem a submeter-se, a ajustar-se; e nesse processo não há liberdade. Mas nós o ambicionamos, muito sutilmente ou muito cruelmente; e é por isso que buscamos o saber. O conhecimento é importantíssimo para a maioria de nós, e temos na mais alta consideração o homem ilustrado, com suas sutilezas intelectuais, porque ao saber se associa o poder.

Tende a bondade de escutar, não apenas a mim, mas à vossa mente, vosso intelecto e coração. Observai-os, para verdes com que avidez a maioria de nós deseja esse poder. E, quando há busca de poder, não há aprender. Só a mente “inocente” pode aprender; só a mente jovem, fresca, se deleita em aprender, e não a mente, o intelecto pejado de saber, de experiência. A mente religiosa, pois, está sempre aprendendo, e não há fim ao aprender. Aprender não é acumulação de conhecimentos. No conservar e aumentar o saber, deixamos de aprender. Segui isto até o fim.

Quando se observam todas essas coisas, pode-se ficar apercebido de um extraordinário sentimento de isolamento, solidão. Em geral, temos experimentado ocasionalmente esse sentimento de estar completamente só, fechado, sem relação com nenhuma coisa ou pessoa. E ao se perceber isso, sente-se medo; quando existe medo, apresenta-se imediatamente o impulso, a ânsia de fugir-lhe. Segui tudo isso interiormente, porque não estou aqui pronunciando uma conferência; estamos, realmente, jornadeando juntos. E se puderdes fazer essa viagem, saireis daqui com uma mente bem diversa, um diferente intelecto.

Temos de passar por esse sentimento de solidão, mas não o podeis fazer se tendes medo. Essa solidão é, em verdade, criada pela mente, com suas reações autoprotetórias, suas atividades egocêntricas. Se observardes vosso próprio intelecto, vereis como vos estais isolando em tudo o que fazeis e pensais. Tudo isso que se relaciona com “meu nome, minha família, minha posição, minhas qualidades, minhas aptidões, minha propriedade, meu trabalho” — vos está isolando. Assim, tendes a solidão, e não a podeis evitar. Vós tendes de passar por ela de maneira tão real como passais por uma porta. E para passardes por ela, tendes de “viver com ela”. E “viver com a solidão”, “passar pela solidão”, significa alcançar uma coisa muito superior, um estado muito mais profundo, que é o “estar só” — completamente só, sem conhecimento. Com isso não quero dizer que nos privemos do conhecimento mecânico superficial, necessário à existência diária; o intelecto não precisa ser completamente drenado, mas o que quero dizer é que o conhecimento que adquirimos e armazenamos não deve ser usado para nossa própria expansão e segurança psicológica. Com a palavra “solidão” me refiro a um estado não atingível por nenhuma espécie de influência. Já não é um estado de isolamento, porque o isolamento foi compreendido; compreendeu-se todo o processo mecânico do pensar, da experiência, do desafio e reação.

Não sei se já refletistes alguma vez sobre este problema do desafio e reação. O intelecto está sempre reagindo a toda espécie de desafio, consciente ou inconsciente. Toda influência se imprime no intelecto, e o intelecto reage. Tende a bondade de seguir isto, porque, se penetrardes mais profundamente, vereis que não há mais desafio nem reação — mas isso não significa que a mente se acha adormecida. Pelo contrário, está completamente desperta, tão desperta que já não necessita de nenhum desafio e nem há necessidade de nenhuma reação. Esse estado, em que não há na mente desafio ou reação, porque ela compreendeu todo o mecanismo — esse estado é “solidão”. Assim, a mente religiosa compreende tudo isso, passa por tudo isso, não através do tempo, mas pelo imediato percebimento.

O tempo traz compreensão? Tereis compreensão amanhã? Ou só há compreensão no presente ativo, agora? Compreensão é ver uma dada coisa totalmente, imediatamente. Mas essa compreensão é impedida pela avaliação, sob qualquer, forma. Todo verbalizar, condenar, justificar, etc., impede o percebimento. Dizeis: “Precisa-se de tempo para compreender. Preciso de muitos dias para isso”. E durante “estes muitos dias” o problema vai lançando raízes mais profundas na mente, e se torna muito mais difícil erradicado, seja qual por esse problema. A compreensão, pois, está no presente imediato e não em prazos de tempo. Quando percebo uma coisa com toda a clareza, imediatamente, há compreensão. O “imediato” é que importa, e não o adiamento. Se bem percebo o fato de que sou colérico, ciumento, ambicioso, etc., se o percebo sem emitir opinião, avaliação, ou juízo, então o próprio fato começa a operar imediatamente.

Assim, a qualidade da “solidão” é o estado próprio de uma mente de todo desperta. Ela não está pensando em termos de tempo. E isso é verdadeiramente extraordinário, como vereis se o investigardes. A mente religiosa, pois, não é uma mente “evolucionária”; porque à Realidade está fora do tempo. Importa realmente compreender isso, se chegastes até aí em vossa viagem de descobrimento.

Notai que o tempo cronológico e o tempo psicológico são duas coisas diferentes. Nós estamos falando sobre o tempo psicológico, a exigência interior de mais dias, mais tempo para realizar algo — e isso sugere o ideal, o herói, o intervalo entre o que sois e o que deveríeis ser. Dizeis que para transpor esse intervalo, lançar uma ponte sobre ele, necessita-se de tempo; mas tal atitude é uma forma de indolência, porque podereis ver essa coisa imediatamente, se lhe derdes toda a vossa atenção.

À mente religiosa, portanto, não interessa o progresso, o tempo; ela se acha num estado de constante atividade, mas não no sentido de “vir a ser” ou “ser”. Podeis verificar isso agora, embora provavelmente não o desejeis fazer. Porque, se o fizerdes, vereis que a mente religiosa é destrutiva; pois sem destruição não há criação. Há destruição, quando a totalidade da mente aplicou sua atenção ao que é. O perceber o falso como falso, percebê-lo completamente, é a destruição do falso. Não é a ação destrutiva dos comunistas, dos capitalistas — nenhuma dessas infantilidades. A mente religiosa é destrutiva e, por ser destrutiva, é criadora. Criação é destruição.

E não há criação quando não há amor. Para nós, o amor é uma coisa estranha. Vós dividistes o amor em paixão, concupiscência, amor carnal e amor divino, amor da família, amor da pátria, e continuais por aí além a dividi-lo e tomar a dividir. E na divisão, há contradição, conflito e sofrimento.

O amor, para a maioria de nós, é paixão, concupiscência; e neste próprio mecanismo de identificação com outro há contradição, conflito, e o começo do sofrimento. E, para nós, o amor se extingue. O fumo (criado por esse processo) — o ciúme, o ódio, a inveja, a avidez — destrói a chama. Mas onde está o amor, aí está a beleza e a paixão. Deveis ter paixão, mas não traduzais prontamente esta palavra em “paixão sexual”. Por “paixão” entendo a “paixão da intensidade”, essa energia que de pronto percebe as coisas, claramente, ardentemente. Sem paixão, não há austeridade. A austeridade não é mera renúncia, nem o possuir restrito, ou autocontrole, pois tudo isso é sem importância, insignificante. A austeridade vem com o desprendimento, e no desprendimento, há paixão e, por conseguinte, beleza. Não a beleza criada pelo homem; não a beleza artística, embora eu não queira dizer que aí não haja beleza. Mas refiro-me a uma beleza que transcende o pensamento e o sentimento. E esta só pode surgir quando há alta sensibilidade intelectual, bem como corpórea e mental. E não pode haver sensibilidade dessa natureza e qualidade quando não há completo desprendimento, quando o intelecto não se está abandonando inteiramente à totalidade daquilo que a mente percebe. Porque só com esse abandono há paixão.

A mente religiosa, pois, é a mente destrutiva. E é a mente religiosa que é mente criadora, porque o que a interessa é a totalidade da existência. O seu criar não é como a ação criadora do artista, porque a este só interessa um certo segmento da existência e ele procura expressar o que aí sente, assim como o homem mundano procura expressar-se nas atividades de seus negócios — embora o artista se considere superior a qualquer outro. A criação, pois, se verifica quando há compreensão da totalidade da vida, e não de uma única parte dela.

Agora, se o intelecto alcançou este ponto e compreendeu todo o mecanismo da existência, descartando-se de todos os deuses que o homem fabricou, de seus salvadores, seus símbolos, seu céu, seu inferno, então, como há completa solidão, poder-se-á empreender uma jornada de todo diferente. Mas é necessário chegar até aí, antes de se poder negar ou afirmar a existência de Deus. Daí por diante, há o verdadeiro descobrimento, porque o intelecto, a mente destruiu completamente tudo o que conhecia. Só então é possível penetrar no “desconhecido”; só então se apresenta o Incognoscível. Ele não é o Deus das igrejas, dos templos, das mesquitas; não é o Deus de vossos temores e crenças. Existe uma realidade que só pode ser encontrada na compreensão total do mecanismo integral da existência, e não de apenas uma parte dela.

Então a mente, como vereis, se torna sobremodo quieta e tranquila, e o intelecto também. Não sei se já alguma vez notastes o vosso intelecto em funcionamento, se vosso intelecto já alguma vez percebeu a si mesmo em ação! Se estivestes assim atento, sem escolha, negativamente, deveis ver que o intelecto está perenemente “tagarelando”, “falando sozinho” ou sobre alguma coisa, acumulando e armazenando conhecimentos. Está em ação a todas as horas, conscientemente, nos níveis superficiais, e também profundamente, em sonhos, sugestões, comunicações de ideias, etc. Ele está sempre em movimento, mudando, atuando; jamais tranquilo. E é necessário que a mente, o intelecto se mantenha sereno, quieto, sem nenhuma contradição, nenhum conflito. Do contrário, é inevitável a “projeção” da ilusão. Mas, quando a mente e o intelecto estão completamente tranquilos, sem movimento algum — após terem-se apagado todas as formas de visão, influência e ilusão — então, nessa tranquilidade, a totalidade irá mais longe, em sua jornada, para receber aquilo que não é mensurável pelo tempo, o Indenominável, o Eterno, o Imperecível.

Krishnamurti, Paris, 24 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

segunda-feira, 9 de abril de 2018

A percepção total que é livre de hesitação

A percepção total que é livre de hesitação

Desejo apreciar junto convosco a questão da autoridade e da liberdade. E pretendo penetrá-la muito profundamente, pois considero bem importante compreender toda a anatomia da autoridade.

Assim, em primeiro lugar, preciso assinalar que não estou discursando academicamente, superficialmente, verbalmente; mas, se estamos real e seriamente interessados, então, penso eu, pelo simples ato de escutar corretamente, ocorre não só a compreensão, mas também a libertação imediata da autoridade. Por certo, o tempo não liberta a mente de coisa alguma. Só é possível a libertação quando há percepção direta, compreensão completa, sem esforço, sem contradição, sem conflito. Essa compreensão liberta a mente, de pronto, de qualquer problema que a acabrunha. Se seguirmos o problema e a mente for capaz de penetrá-lo de modo completo, por inteiro, ver-nos-emos então livres desse peso.

Não sei se já refletistes com profundeza sobre a questão da autoridade. Se o fizestes, deveis saber que a autoridade destrói a liberdade, impede a criação, gera medo e, de fato, entrava o pensamento. Autoridade implica submissão, imitação, não achais? Existe não apenas a autoridade exterior da polícia, da Lei — a qual até certo ponto é compreensível — mas também a autoridade interior do saber, da experiência, da tradição, da observância de um padrão estabelecido pela sociedade, por um instrutor, determinando como devemos proceder, comportar-nos, etc.

Vamos tratar inteiramente da compreensão da autoridade interior, psicológica; da psique, que estabelece um padrão de autoridade para sua própria segurança.

Já vos perguntastes alguma vez por quê, através das idades, os entes humanos sempre confiaram a outros o estabelecer seus padrões de conduta? Queremos — não é verdade? — que nos digam o que devemos fazer, como devemos portar-nos, o que devemos pensar, como devemos agir em certas circunstâncias. Esta busca de autoridade é constante, porque a maioria de nós teme o erro, o malogro. Vós adorais o êxito, e a autoridade oferece o êxito. Se seguis uma determinada linha de conduta, se vos disciplinais consoante certas ideias, dizem-vos que, no fim, encontrareis a salvação, a perfeição, a liberdade. Para mim, a ideia de que a disciplina, o controle, a repressão, a imitação e o ajustamento podem conduzir à liberdade, é totalmente absurda. Decerto não podemos cercear a mente, moldá-la, pervertê-la e, graças a esse mecanismo, encontrar a liberdade. As duas coisas são incompatíveis, mutuamente se repelem.

Ora, por que é que a mente e o intelecto humano buscam sempre um padrão ao qual ajustar-se? E permiti-me dizer aqui que minha explicação não tem valor nem significado se não estais, cada um de vós, apercebidos de vossa própria inclinação para seguir — seguir uma ideia ou um instrutor. Mas, se a explicação vos está realmente despertando o percebimento do estado de vossa própria mente, então as palavras têm significação. Assim, por que existe esse impulso para seguir? Não resulta ele do desejo de certeza, de segurança? Sem dúvida, o desejo de segurança é o motivo, a razão fundamental dessa ânsia de seguir. E isso subentende não é verdade? — o sentimento de que pelo bom êxito, pelo ajustamento, evitaremos completamente o medo. Mas, existe segurança interior? Ora, a própria busca de segurança é medo, não? Exteriormente, talvez seja necessário um certo grau de segurança — teto, três refeições por dia, roupas, etc.; mas, interiormente, existe segurança? Estais seguro em vossa família, em vossas relações? Não ousais duvidar disso, não é verdade? Achais que sim, pois isso se tornou tradição, costume. Entretanto, no momento em que pondes em dúvida vossas relações com vosso marido, vossa esposa, vosso filho, vossos vizinhos, esse próprio duvidar se torna perigoso.

Todos nós buscamos segurança, nesta ou naquela forma; e, portanto, necessitamos da autoridade. Assim, dizemos que existe Deus e que Ele, quando tudo mais falhar, nos dará a segurança final. Vivemos apegados a certos ideais, esperanças, crenças, que nos garantirão a permanência, neste mundo e no outro. Mas, existe segurança? E eu acho que cada um de nós precisa descobrir, precisa lutar para compreender claramente se há, ou não, tal coisa — segurança.

Exteriormente, pouca segurança existe hoje em dia. As coisas estão mudando com rapidez; mecanicamente, temos novas invenções, bombas atômicas; e, socialmente, temos revoluções externas, principalmente na Ásia, a ameaça de guerra, o comunismo, etc. Mas as ameaças à nossa segurança interior criam em nós uma resistência muito maior. Quando credes em Deus ou numa certa espécie de permanência interior, é quase impossível quebrar tal crença, porque nessa esperança estais firmemente enraizado. Já aderimos, cada um de nós, a uma certa maneira de pensar e, se ela é verdadeira ou falsa, se tem alguma realidade ou racionalidade, isso parece não nos importar; aceitamo-la e a ela nos atemos.

Abrir caminho através de tudo isso, descobrir sua verdade intrínseca, implica uma revolução muito mais importante do que qualquer revolução comunista, socialista ou capitalista. Isso significa o começo da libertação da autoridade, e o descobrimento de que positivamente não existe permanência ou segurança interior. Significa, por conseguinte, descobrir que a mente deve estar a todas as horas num estado de incerteza. E nós tememos a incerteza, não é verdade? Pensamos que, se se visse num estado de incerteza, o intelecto se despedaçaria, se tornaria doente. Infelizmente, existem tantos casos de insanidade mental por causa dessa impossibilidade de encontrar a segurança. Arrancadas de suas amarras, suas crenças, ideais, fantasias, mitos, as pessoas se tornam mentalmente doentes. A mente que está realmente incerta não conhece medo. Só a mente medrosa segue, exige a autoridade. E é possível perceber bem isso e lançar fora, completa e totalmente, a autoridade e o medo?

E que se entende por ver? Ver é uma simples questão de explicação intelectual? As explicações, os raciocínios, a lógica sutil, vos ajudarão a perceber o fato de que a autoridade, a obediência, a aceitação, o conformismo entravam a mente? Considero muito importante esta pergunta. Ver nenhuma relação tem com palavras nem com explicações. Estou certo de que se pode ver qualquer coisa diretamente, independente de persuasão verbal, argumentação ou raciocínio intelectual. Se rejeitais a persuasão, a influência — que são coisas elementares, infantis — que poderá impedir-vos de ver e, portanto, de ser livre imediatamente? Para mim, ver é uma ação de caráter imediato, independente do tempo. E, portanto, a libertação da autoridade não depende do tempo; não é dizer: “Serei livre”. Mas, enquanto a autoridade vos dá prazer, enquanto o mecanismo de seguir vos parece atraente, não estais permitindo que o problema se vos mostre diretamente e, por conseguinte, se torne urgente, de vital importância.

O fato é que a maioria de nós gosta do poder — o poder da mulher sobre o marido ou deste sobre a mulher, o poder que a capacidade dá, o sentimento de se ser talentoso, o poder que dão a austeridade e o controle do corpo. Qualquer forma de poder representa autoridade — seja o poder do ditador, o poder político, o poder religioso, seja o domínio de um indivíduo sobre outro. O poder é extremamente nocivo, e porque não podemos ver isso, simples e diretamente? Com ver, refiro-me a um percebimento total, livre de hesitação: uma “correspondência” total. Que é que impede essa correspondência total?

Isso suscita a questão da autoridade da experiência, do saber, não é verdade? Está visto que, para se ir à Lua, para se construir um foguete, necessita-se de conhecimentos científicos; e à acumulação de saber chamamos experiência. Externamente, necessita-se do saber. Precisamos saber onde moramos, precisamos saber construir, juntar coisas e separar coisas. Esse conhecimento externo é superficial, mecânico, puramente adicional, um contínuo descobrir de coisas e mais coisas. Mas acontece que o saber e a experiência se tornam nossa interna autoridade. Podemos rejeitar a autoridade externa como infantil; podemos deixar de pertencer a determinada nação, grupo ou família, de estar apegados a uma dada sociedade com seus peculiares costumes, códigos, etc.; mas, renunciar às experiências que acumulamos, à autoridade do saber que acumulamos, isso é extremamente difícil.

Não sei se já tendes considerado este problema; mas, se o fizerdes, vereis que a mente que está carregada, pejada de saber e de experiência, não é uma mente “inocente”, uma mente
nova; é uma mente velha, decadente, que nunca será capaz de entrar em contato — livremente, plenamente, totalmente — com uma coisa viva. E no mundo atual, tanto interior como exteriormente, urge que tenhamos uma mente nova, fresca, uma mente jovem, para podermos resolver todos os nossos problemas — não um dado problema específico da ciência, da medicina, da política, etc., mas o problema humano total. A mente velha é uma mente cansada, entravada; mas a mente nova vê prontamente, sem distorção, sem ilusão: é penetrante, precisa, livre das limitações do conhecimento acumulado e da passada experiência.

Afinal, que é essa experiência que nos proporciona um tão forte sentimento de nobreza, de sabedoria, de superioridade? “Experiência”, sem dúvida, é a reação de nosso “fundo mental” (background) a um “desafio”. A reação é condicionada por esse “fundo” e, portanto, cada experiência torna mais forte o “fundo”. Se sois membro de alguma igreja, devoto de determinada seita, tendes experiências e visões de acordo com esse fundo — e essas experiências e visões, por sua vez, reforçam o fundo. Não é verdade isso? E esse condicionamento, essa propaganda religiosa — seja velha de dois mil anos, seja moderna — nos está moldando a mente, influenciando a reação de nosso intelecto. São inegáveis essas influências; elas prevalecem sempre. A influência comunista, socialista, católica, protestante, hinduísta e dúzias e centenas de influências outras invadem-nos a mente a todas as horas, consciente ou inconscientemente, moldando-a, controlando-a. A experiência, pois, não liberta a mente, não a torna jovem, fresca, “inocente”. O que se faz necessário é a destruição total do fundo.

A compreensão, disso não é questão de tempo. Se empreenderdes a tarefa de compreender cada influência separadamente, estareis morto antes de terdes compreendido todas elas. Mas, se compreenderdes plenamente, completamente, uma só influência, destroçareis todas as formas de influência. Todavia, para compreenderdes uma influência deveis examiná-la totalmente, completamente. Limitar-se a dizer que ela é boa ou má, é insuficiente. E para podermos penetrá-la completamente, não devemos ter medo. Penetrar inteiramente esta questão da autoridade é muito perigoso, não achais? Estar livre da autoridade é atrair o perigo, pois ninguém deseja viver na incerteza. Porém, a mente que está certa é uma mente morta; só a mente incerta é nova, fresca.

Para se compreender a autoridade, tanto interior como exterior, não se necessita do tempo. Um dos piores erros, um dos maiores empecilhos, é depender do tempo. Tempo, na realidade, significa adiamento. Significa que estamos gostando da segurança, da imitação, do seguir, e só dizemos isto: “Não me perturbeis. Ainda não estou disposto a ser perturbado”. Não vejo razão para não sermos perturbados; que há de errado em estar perturbado? Na realidade, quando uma pessoa não deseja ser perturbada, está justamente atraindo perturbações. Mas o homem que quer descobrir, não lhe importando se isso será perturbador ou não, esse homem está livre do medo à perturbação. Sei que isso fará sorrir a alguns de vós, mas a questão é muito grave, não é para rir. É fato que nenhum de nós deseja ser perturbado. Mas caímos numa rotina, num estreito canal — intelectual, emocional ou ideológico — e não desejamos ser perturbados. Em nossas relações e tudo mais, só queremos viver vida confortável, não perturbada, respeitável, burguesa. E desejar ser o contrário de burguês, o contrário de respeitável, é a mesma coisa.

Agora, se enquanto escutais estais atentos a vós mesmos, podeis ver que estar livre da autoridade não é uma coisa temível. É como aliviar-se de um pesado fardo. A mente experimenta de imediato uma extraordinária revolução. Para o homem que não busca a segurança em forma nenhuma, não há perturbações; há um contínuo movimento de compreensão. Se isso não se está passando convosco, neste caso não estais escutando, não estais vendo; estai-vos unicamente comprazendo em aceitar ou em rejeitar um certo conjunto de explicações. Assim, seria muito interessante descobrirdes por vós mesmo qual é vossa verdadeira reação.

PERGUNTA: A mente traz em si mesma os elementos de sua pró­pria compreensão?
KRISHNAMURTI: Acho que sim; não achais também? Que é que impede a compreensão? Os obstáculos não são criados pela própria mente? Por conseguinte tanto a compreensão como as próprias barreiras são elementos mentais.

Vede, senhor, para se viver numa base de incerteza, sem se tornar mentalmente doente, requer-se grande dose de compreensão. Não achais que uma das barreiras é o insistente desejo de segurança interior? Exteriormente, vejo que não existe segurança; assim, a mente cria, interiormente, a sua própria segurança, numa crença, num deus, numa ideia. A mente, portanto, cria sua própria escravidão, mas tem, também, os elementos de sua própria libertação.

PERGUNTA: Por que não pode ser perturbado um homem livre?

KRISHNAMURTI: É correta esta pergunta? Como nada sabeis acerca do homem livre, vossa pergunta se reduz a simples especulação; não tem — perdoai-me dizê-lo — significação nem para mim nem para vós. Mas, se inverterdes a pergunta, formulando-a assim: “Por que sou perturbado?” — então ela tem validade e pode ter resposta correta. Por que é perturbada uma pessoa — se meu marido me repudia, se me morre um ente querido, se experimento um fracasso, se sinto que não estou tendo êxito na vida? Se realmente investigásseis isto até o fim, podereis ver toda a sua essência.

PERGUNTA: A crença em Deus se baseia sempre no medo?

KRISHNAMURTI: Por que credes em Deus? Qual a necessidade? Interessa-vos a crença em Deus quando sois muito feliz ou só quando se vos apresentam tribulações? Vós credes, porque fostes condicionado para crer? Como bem sabemos, há dois mil anos que nos dizem que existe Deus; e no mundo comunista estão condicionando a mente para não crer em Deus. É a mesma coisa; tanto num como noutro caso a mente está sendo influenciada. A palavra “Deus” não é Deus; e o descobrirdes verdadeiramente, por vós mesmo, se tal coisa — Deus — existe, é muito mais significativo do que vos apegardes a uma crença ou descrença. E o descobrir por si mesmo requer enorme energia — energia para libertar-se de todas as crenças; porém isto não importa um estado de ateísmo ou de dúvida. Mas a crença é uma coisa muito confortante, e poucos estão dispostos a despedaçar-se interiormente. A crença não vos conduz a Deus. Nenhum templo, nem igreja, nem dogma, nem ritual pode conduzir-vos à Realidade. Essa Realidade existe; mas para descobri-la precisais de uma mente imensurável. A mente pequena, limitada, só pode encontrar os deuses pequeninos e limitados que ela mesma cria. Portanto, devemos estar prontos a perder toda a nossa respeitabilidade, todas as nossas crenças, para podermos descobrir o que é real.

Acho que não podeis continuar escutando. Se estivestes escutando indolentemente, ouvindo puramente as palavras, neste caso, sem dú­vida, poderíeis continuar ouvindo por mais algumas horas. Mas, se escutastes corretamente, atentamente, com o propósito de aprofundar, então dez minutos bastariam, porque neste espaço poderíeis destroçar as barreiras que a mente criou para si própria e descobrir o que é Verdade.

Krishnamurti, Paris, 7 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill