Krishnamurti: Bem, a pergunta então é: Existirá algo situado além deste caos, algo que não tenha sido jamais tocado pelo pensamento humano, pela mente?
David Bhm: Sim, é um ponto difícil; não tocado pela mente humana, mas a mente poderia ir além do pensamento.
K: Isso é o que eu quero descobrir.
DB: Então o que o senhor quer dizer - por mente o senhor entende apenas o pensamento, o sentimento, o desejo, a vontade, ou muito mais?
K: Não, para nós, até agora, a mente humana, é isto.
DB: A mente agora é considerada como algo limitado.
K: Enquanto a mente humana permanecer presa a isso, continuará limitada.
DB: Sim, mas a mente humana tem potencial.
K: Um grande potencial.
DB: O que no momento ela não percebe, mantendo-se presa ao pensamento, ao sentimento, ao desejo, à vontade, etc.
K: Concordo.
DB: Podemos então afirmar que tudo o que se encontra além disso não é tocado por essa espécie limitada de mente. Agora, o que queremos dizer quando falamos na mente que está além desse limite?
K: Antes de mais nada, senhor, existe essa mente?
DB: Sim, esta é a primeira questão.
K: Existirá uma mente que, de uma forma real, não de uma forma teórica ou romântica, e todas as tolices semelhantes, tenha mesmo dito: "Eu passei por tudo isto?"
DB: O senhor quer dizer, por todo este material limitado.
K: Sim. E ter passado por isso quer dizer ter posto um fim a isso. Existe uma mente assim? Ou será que, por que ela pensa que acabou com isso, ela cria a ilusão de que há algo mais? Não vou aceitar isso. Como um ser humano, uma pessoa, ou " X ", afirma: "Compreendi isso, enxerguei a limitação que há nisso, vivi isso, e cheguei ao fim de tudo isso. " E essa mente, tendo chegado ao fim disso, não é mais a mente limitada. E haverá uma mente que seja totalmente ilimitada?
DB: Sim, e isso levanta outra questão: como pode o cérebro ser capaz de entrar em contato com uma mente assim? Qual a relação entre essa mente ilimitada e o cérebro?
K: Vou chegar lá. Em primeiro lugar, quero deixar claro este ponto - será bastante interessante, se o examinarmos. Essa mente, o seu todo, toda a natureza e estrutura da mente, inclusive as emoções, o cérebro, as reações, as resposta físicas, têm vivido em um turbilhão, no caos, na solidão, e compreendeu, fez uma grande descoberta acerca de tudo isso. E o fato de ter feito essa grande descoberta iluminou o campo. Essa mente não é mais aquela mente.
DB: Sim: não é mais a mente original e limitada com que começou.
K: Sim, não é mais a mente limitada, a mente danificada. Vamos usar a palavra danificada DB: Mente danificada, e também cérebro danificado - o trabalho da mente danificou o cérebro.
K: Sim, perfeito. Mente danificada significa emoções danificadas, cérebro danificado.
DB: As próprias células não estão em perfeita ordem.
K: Correto. Mas quando ocorre a descoberta e, portanto, a ordem, esse dano se desfaz. Não sei se concorda.
DB: Sim, pode-se ver, pelo raciocínio, que isto é bastante possível, porque se pode afirmar que o dano é causado por pensamentos e sentimentos desordenados que sobreexcitam as células e as desintegram. E agora, com a descoberta, isso cessa e tem início um novo processo.
K: Sim, é como uma pessoa que caminha durante cinquenta anos numa direção e que, de repente, descobre que aquela não é a direção certa, e todo o cérebro muda.
DB: Ele muda na essência e, então, a estrutura errada é desmanchada e curada. Como o senhor disse, isso pode levar tempo.
K: É verdade.
DB: Mas a descoberta...
K:... é o fator que irá mudá-lo.
DB: Sim, e a descoberta não leva tempo, mas indica que houve uma mudança na origem de todo o processo.
K: É verdade. Aquela mente, a mente limitada, com toda a sua consciência e conteúdo, afirma que esse papel terminou. Mas, se tiver mesmo ocorrido que aquela mente limitada, pelo fato de ter feito uma descoberta acerca da limitação, ultrapassou esses limites, não será, na verdade, este acontecimento algo de incrível poder revolucionário? Concorda? Logo, não é mais a mente humana. Desculpe-me por essa palavra.
DB: Bem, acho que temos de esclarecer isso: o que entendemos por mente humana.
K: A mente humana com a sua consciência limitada.
DB: Sim, consciência limitada que é condicionada, e não livre.
K: Isso terminou.
DB: Sim, de modo que tudo isso se passou com a consciência geral, isto é, não se restringe a indivíduos, mas ocorreu por toda parte.
K: Sim, é claro, não falo de um indivíduo; isso seria uma grande tolice.
DB: Sim, mas acredito que discutimos isso, que o indivíduo é o resultado da consciência geral, é mais um resultado em particular do que algo independente. O senhor sabe, essa é uma das dificuldades.
K: Sim, é uma das confusões.
DB: A confusão é que tomamos a mente individual como sendo a realidade concreta. Já discutimos antes a necessidade de considerar a mente geral como sendo a realidade da qual se forma a mente individual.
K: Sim, isso é muito claro.
DB: Mas agora o senhor declara que ultrapassamos até mesmo a mente geral; e o que significa isso?
K: Sim, ultrapassamos a mente geral e a particular.
DB: E a mente particular.
K: Bem, mas se alguém na verdade a tiver ultrapassado então, o que é a mente?
DB: Sim, e o que é a pessoa, o que é o ser humano? Certo?
K: O que é um ser humano? E qual é a relação entre essa mente, que não é feita pelo homem, e a mente feita pelo homem? Não sei se fui claro.
DB: Bem, já concordamos em chamar isso de mente universal, ou o senhor prefere não fazê-lo?
K: Não gosto da expressão mente universal; inúmeras pessoas já a utilizaram. Vamos usar palavras mais simples.
DB: Bem, é a mente que não foi feita pelo homem.
K: Acho que isso é mais simples; vamos manter assim, uma mente que não foi feita pelo homem.
DB: Nem individualmente nem em geral.
K: Geral ou individualmente, ela não é feita pelo homem. Mas, senhor, eu lhe pergunto, pode alguém na verdade observar, em profundidade, sem nenhum tipo de preconceito, ou algo parecido? Será que existe uma mente assim? Compreende o que estou tentando dizer?
DB: Sim, vejamos o que significa observar. Acho que temos aqui alguns problemas de linguagem, porque, veja, dizemos que é preciso observar, e coisas desse tipo, ao passo que...
K: Eu observo isto, eu observo.
DB: Quem observa? O senhor vê, este é um dos problemas que surgem.
K: Já abordamos isso. Não existe divisão na observação. Não existe o eu que observa; existe apenas a observação.
DB: A observação acontece.
K: Sim.
DB: O senhor diria que ela ocorre num cérebro particular, por exemplo, ou que um cérebro particular toma parte na observação?
K: Percebo a armadilha que há nisso. Não, senhor, ela não ocorre em um cérebro particular
DB: Sim, mas parece que um cérebro particular pode responder.
K: É claro, mas não é o cérebro de Krishnamurti.
DB: Não, não quero dizer isso. O que quero dizer com as palavras cérebro particular é que, devido às particularidades da localização de determinado ser humano no espaço e no tempo, ou qualquer que seja a sua forma, mesmo sem lhe dar um nome, podemos afirmar que ele se distingue de qualquer outro que pudesse estar ali.
K: Veja, senhor, vamos deixar bem claro este ponto. Vivemos em um mundo feito pelo homem; a mente foi feita pelo homem; nós somos o resultado de mentes feitas pelo homem, bem como nossos cérebros, com todas as suas respostas e tudo o mais.
DB: Bem, o cérebro, propriamente dito, não é feito pelo homem, mas foi condicionado, pelo condicionamento feito pelo homem.
K: Condicionado pelo homem; certo, é isto que quero dizer. Agora, pode esta mente descondicionar-se de forma tão completa que chega ao ponto de não ser mais feita pelo homem? Eis a questão - vamos mantê-la neste nível simples. Pode esta mente, mente feita pelo homem - tal como é agora - pode ela ir até este ponto, libertar-se por si mesma de si mesma, e de forma tão completa?
DB: Sim, é claro, trata-se de uma afirmação um tanto paradoxal.
K: Exato. Paradoxal, mas é real, é assim. Vamos começar de novo. É possível observar que a consciência da humanidade é o seu conteúdo. E seu conteúdo é todo ele de coisas feitas pelo homem - ansiedade, medo, e tudo o mais. E isto não é apenas particular; isso ocorre em geral. E, tendo feito uma descoberta acerca disso, ela se livrou desse conteúdo.
DB: Isso significa que, potencialmente, a consciência da humanidade sempre foi maior do que isso e que a descoberta permitiu que ela se liberasse disso. Foi esta a sua afirmação?
K: Esta descoberta - eu não diria que é potencial.
DB: Bem, há uma certa dificuldade de linguagem. Se o senhor diz que o cérebro, ou a mente, fez uma descoberta acerca do seu próprio condicionamento, então o senhor praticamente afirma que ela se transformou, que não é mais a mesma.
K: Sim, eu afirmo isso; afirmo. A descoberta transforma a mente feita pelo homem.
DB: Certo. E então ela deixa de ser a mente feita pelo homem.
K: Não é mais a mente feita pelo homem. Fazer essa descoberta significa varrer todo o conteúdo da consciência. Correto? Não um pedaço de cada vez, mas a totalidade dele. E a descoberta não é resultado do esforço do homem.
DB: Sim; mas então surge outra questão: de onde vem essa descoberta?
K: Perfeito. De onde ela vem? Sim, do próprio cérebro, da própria mente.
DB: De qual: do cérebro ou da mente?
K: Da mente; refiro-me à totalidade dela. Espere um minuto, senhor. Vamos devagar - isto é muito interessante, mas vamos devagar. A consciência, geral e particular, é feita pelo homem. E, através da lógica e da razão, podemos ver as limitações. A mente, então, terá avançado muito. E, então, ela chega a um ponto em que diz " Tudo isto pode ser varrido de uma só vez, de um só golpe, com um movimento? " E esse movimento é a descoberta, o movimento da descoberta. Está ainda na mente. Mas não é mais fruto daquela consciência. Não sei se me faço entender.
DB: Sim. Então o senhor afirma que a mente tem a possibilidade, o potencial de ir além da consciência.
K: Sim.
DB: Mas nós, na verdade, não achamos isso importante.
K: É claro. Este tem de ser um papel do cérebro, um papel da mente.
DB: O cérebro, a mente pode fazer isso, mas em geral não o tem feito.
K: Sim. Mas agora, tendo feito isso, existirá uma mente que não seja feita pelo homem, que o homem não pode conceber, não pode criar, e que não é uma ilusão? Existe uma mente assim? Não sei se fui claro.
DB: Bem, acho que o que o senhor está dizendo é que, tendo-se libertado, a mente...
K: Do geral e do particular...
DB:... se libertou da estrutura geral e particular da consciência da humanidade, de seus limites, e a mente agora está muito maior. Agora o senhor diz que a mente levanta uma questão.
K: Sim, a mente levanta uma questão.
DB: Qual é?
K: Em primeiro lugar, estará essa mente livre da mente feita pelo homem?
Eis a primeira questão.
DB: Isso pode ser uma ilusão.
K: Ilusão - é a isso que quero chegar; precisamos ser muito claros. Não, não se trata de uma ilusão, porque ela enxerga a mensuração como ilusão; ela conhece a natureza das ilusões e sabe que onde há desejo deve haver ilusões. E que as ilusões devem criar limitação, e assim por diante. Ela não só compreendeu; ela já ultrapassou isso.
DB: Ela se libertou do desejo.
K: Está livre do desejo. Essa é a natureza. Eu não quero afirmar isso de forma tão brutal. Livre do desejo.
DB: Mas está repleta de energia.
K: Sim, e então essa mente, que não é mais geral ou particular e, portanto, não é mais limitada - a limitação foi quebrada com a descoberta - não é mais a mente condicionada. Então, o que é esta mente? Estando consciente de que ela não continua mais presa a uma ilusão.
DB: Sim, mas, segundo o senhor, ela perguntava se existe ou não algo muito maior.
K: Sim, e é por isso que eu faço essa pergunta.
DB: O que quer que aquilo possa ser.
K: Sim. Existirá uma mente que não seja feita pelo homem? E, se existir, qual a sua relação com a mente feita pelo homem? Isso é muito difícil.
O senhor vê, todo tipo de afirmação, todo tipo de declaração verbal não pode ser a mente não feita pelo homem certo? Daí perguntamos se existe uma mente que não seja feita pelo homem. E acredito que só há sentido em se fazer esta pergunta quando a outra mente, quando as limitações estiverem varridas; caso contrário, seria apenas uma pergunta tola.
DB: Dá no mesmo...
K: Seria uma perda de tempo. Quero dizer: isso se tornaria teórico, sem sentido.
DB: Seria parte da estrutura feita pelo homem.
K: Claro, claro. Então precisamos estar absolutamente, a pessoa deve estar...
DB: Eu acho que a palavra absoluto só pode ser usada nesse contexto se tivermos bastante cuidado.
K: Muito cuidado, sim. Absolutamente livre de tudo isso. Só então o senhor pode fazer essa pergunta: existirá uma mente não feita pelo homem e, se existir, qual a sua relação com a mente feita pelo homem?
Bem, mas, em primeiro lugar, existe uma mente assim? É claro que existe. É claro, senhor. Sem ser dogmático ou pessoal, afirmo que existe.
Mas não é Deus.
DB: Certo, bom.
K: Porque Deus - já falamos a respeito.
DB: É parte da estrutura feita pelo homem.
K: Que produziu o caos no mundo. Então, ela existe. A próxima pergunta, portanto, é: se existe essa mente, e alguém afirma que existe, qual a relação dela com a mente feita pelo homem?
DB: Sim, a geral.
K: A particular e a geral. Haverá alguma conexão aí?
DB: Bem, trata-se de uma questão difícil; poderíamos dizer que a mente feita pelo homem vive permeada de ilusão; a maior parte do seu conteúdo não é real.
K: Não, e isso é real.
DB: Verdadeira, ou o que quer que seja.
K: Usaremos a palavra real no sentido de verdadeira, isto é, mensurável, confusa - terá esta alguma relação com aquela? É evidente que não.
DB: Bem, eu diria que tem uma relação superficial, no sentido de que a mente feita pelo homem tem algum conteúdo verdadeiro num certo nível, num nível técnico, digamos, o sistema da televisão, e assim por diante.
K: Bem...
DB: Nesse sentido poderia haver uma relação nesta área; mas, como o senhor dizia, esta é uma área bastante pequena. Porém, fundamentalmente...
K: A mente feita pelo homem não tem relação com a mente não feita pelo homem; mas aquela [ a mente não feita pelo homem ] tem uma relação com esta [ a mente feita pelo homem ].
DB: Sim, mas não com as ilusões da mente feita pelo homem.
K: Espere um pouco, vamos ser claros: minha mente é a mente feita pelo homem. Ela tem ilusões, desejos e tudo o mais. E existe aquela outra mente que não tem, que está além de todas as limitações. Essa mente ilusória, a mente feita pelo homem, está sempre buscando a mente não feita pelo homem.
DB: Sim, este é o seu principal problema.
K: Este é o seu principal problema. É medir, é avançar, chegar mais perto, mais, e todo o resto. E essa mente, a mente feita pelo homem, está sempre em busca da mente não feita pelo homem, e, portanto, cria mais e mais logros, confusão. Esta mente feita pelo homem não tem relação com a mente não feita pelo homem.
DB: Sim, porque qualquer tentativa de alcançar a mente não feita pelo homem é uma fonte de ilusão.
K: Claro, claro, evidente. Bem, mas terá a mente não feita pelo homem alguma relação com a mente feita pelo homem?
DB: Bem, o que eu estava sugerindo é que deve haver uma relação pois, se tomarmos todas as ilusões que se encontram na mente feita pelo homem, tais como os desejos, o medo, e assim por diante, a mente feita pelo homem não tem nenhuma relação com a mente não feita pelo homem porque, de qualquer forma, essas ilusões são invenções.
K: Sim, está entendido.
DB: Mas a mente não foi feita pelo pode ter uma relação com a mente feita pelo homem na compreensão de sua verdadeira estrutura.
K: Está dizendo, senhor, que a mente não foi feita pelo homem tem uma relação com a mente humana no momento em que supera suas limitações?
DB: Sim, ao compreender essas limitações, ela as supera.
K: Sim, ela as supera. Então, existe uma relação.
DB: Então ela tem uma relação genuína com aquilo que a mente limitada é de fato, não com as ilusões do que ela pensa que é.
K: Vamos ser mais claros.
DB: Bem, precisamos usar as palavras com exatidão - a mente que não é limitada, certo, a mente que não é feita pelo homem, não pode ter relação com as ilusões que se encontram na mente feita pelo homem.
K: Perfeito. Concordo.
DB: Mas ela tem que ter uma relação com a fonte, por assim dizer, com a verdadeira natureza da mente feita pelo homem, que está por trás da ilusão.
K: Ou seja, em que se baseia a mente feita pelo homem?
DB: Bem, em tudo isso sobre o que falamos.
K: Sim, que é a sua natureza. Portanto, como pode a mente não feita pelo homem ter um relacionamento com a mente feita pelo homem, mesmo em termos básicos?
DB: A única relação consiste em compreendê-la, de maneira que alguma comunicação se torne possível, o que poderia terminar em... poderia comunicar-se para a outra pessoa...
K: Não, eu estou questionando isso.
DB: Mas o senhor disse que a mente que não é feita pelo homem pode se relacionar com a mente limitada, e não o inverso.
K: Eu questiono até mesmo isso.
DB: Isso pode ou não ser assim, isso é o que o senhor está dizendo ao questioná-lo.
K: Sim, eu questiono isso.
DB: Muito bem.
K: Qual é então a relação entre o amor e o ciúme? Existe alguma?
DB: Não com o ciúme, propriamente, que é uma ilusão, mas pode haver com o ser humano ciumento.
K: Não, estou considerando o amor e o ódio - duas palavras; amor e ódio; ódio e amor não têm relação alguma um com o outro.
DB: Não, na verdade não.
K: Nenhuma, nenhuma mesmo.
DB: Eu acho que o amor é capaz de compreender a origem do ódio.
K: Ah, poderia - sem dúvida, poderia.
DB: Nesse sentido, eu acho que pode haver alguma relação.
K: Percebo, compreendo. O senhor afirma que o amor pode compreender a origem do ódio, como surge o ódio, e tudo o mais. Será que o amor compreende isso?
DB: Bem, eu acho que, num certo sentido, ele compreende a sua origem na mente feita pelo homem, que tendo enxergado a mente feita pelo homem e toda a sua estrutura, e tendo se afastado dela...
K: Estamos dizendo, senhor, que o amor - usaremos esta palavra por enquanto - que o amor tem uma relação com o não-amor?
DB: Apenas no sentido de dissolvê-lo.
K: Não tenho certeza, não tenho certeza; precisamos ter muito cuidado aqui. Ou será ele o fim do próprio ódio...?
DB: Não entendi.
K: O fim do ódio; o outro existe; o outro não tem relação com a compreensão do ódio.
DB: Sim, bem, precisamos então perguntar como ele começa.
K: Isso é muito simples.
DB: Não, mas eu quero dizer: suponhamos que tenhamos ódio.
K: Eu tenho ódio. Suponha que eu tenho ódio. Posso ver a sua origem.
Porque você me ofendeu.
DB: Bem, esta é uma noção superficial da origem; refiro-me à origem mais profunda, ou seja, o que leva alguém a se comportar de modo tão irracional.
Veja, não há nada real - se você apenas diz " você me ofendeu ", pergunto: por que o senhor responderia ao insulto?
K: Porque todo o meu condicionamento é nesse sentido.
DB: Sim, é isso o que entendo por compreensão da origem...
K: Compreendo isso, mas será que o amor me ajuda a compreender a origem do ódio?
DB: Não, mas eu acho que alguém tomado de ódio, ao compreender sua origem e ultrapassá-la...
K:... aí, então, o outro existe. O outro não pode ajudar este movimento de afastamento.
DB: Não, mas a pergunta é: suponha que uma pessoa, se o senhor prefere assim, tem esse amor e o outro não o tem, pode o primeiro comunicar algo que irá dar início ao movimento do segundo?
K: Isso significa: A pode influenciar B?
DB: Influenciar não, mas talvez pudesse provocar uma pergunta do tipo, por exemplo: por que falar disso?
K: Isso é outra coisa - o problema é outro. Não, senhor; a questão é: poderá o ódio ser dispersado pelo amor?
DB: Não, não é isso, não.
K: Ou será que, havendo a compreensão do ódio e o fim dele, o outro existe?
DB: Certo, mas, se dissermos que em A o amor agora está presente - certo? A alcançou aquela mente.
K: Sim.
DB: A ama, e ele vê B...
K: B atingiu o outro.
DB: Bem, mas dizíamos, o que ele irá fazer, percebe? Essa é a questão.
K: Qual a relação entre os dois?
DB: É a mesma pergunta.
K: Sim, a mesma pergunta.
DB: O que ele irá fazer é uma outra forma de fazer a pergunta.
K: Eu acho que - espere um momento, senhor. Eu tenho ódio, o outro tem amor. Minha mulher ama e eu odeio. Ela pode falar comigo, pode me mostrar isso, a irracionalidade disso, e assim por diante, mas o amor dela não irá modificar a fonte do meu ódio.
DB: Está muito claro, sim, mas o amor dela é a energia que está por trás do diálogo.
K: Por trás do diálogo, sim.
DB: Não é como se o próprio amor aparecesse por ali e dissolvesse o ódio.
K: É claro que não - esta é uma afirmação romântica. Então o homem que odeia e tem uma idéia clara acerca da origem desse ódio, acerca da causa disso, do seu movimento, e acaba com ele, tem o outro.
DB: Sim, eu acho que podemos dizer que A é o homem que enxergou tudo isso e que agora tem energia para passar isso para B - mas depende só de B o que venha a acontecer.
K: É claro. Eu acho que deveríamos explorar mais este assunto.
David Bhm: Sim, é um ponto difícil; não tocado pela mente humana, mas a mente poderia ir além do pensamento.
K: Isso é o que eu quero descobrir.
DB: Então o que o senhor quer dizer - por mente o senhor entende apenas o pensamento, o sentimento, o desejo, a vontade, ou muito mais?
K: Não, para nós, até agora, a mente humana, é isto.
DB: A mente agora é considerada como algo limitado.
K: Enquanto a mente humana permanecer presa a isso, continuará limitada.
DB: Sim, mas a mente humana tem potencial.
K: Um grande potencial.
DB: O que no momento ela não percebe, mantendo-se presa ao pensamento, ao sentimento, ao desejo, à vontade, etc.
K: Concordo.
DB: Podemos então afirmar que tudo o que se encontra além disso não é tocado por essa espécie limitada de mente. Agora, o que queremos dizer quando falamos na mente que está além desse limite?
K: Antes de mais nada, senhor, existe essa mente?
DB: Sim, esta é a primeira questão.
K: Existirá uma mente que, de uma forma real, não de uma forma teórica ou romântica, e todas as tolices semelhantes, tenha mesmo dito: "Eu passei por tudo isto?"
DB: O senhor quer dizer, por todo este material limitado.
K: Sim. E ter passado por isso quer dizer ter posto um fim a isso. Existe uma mente assim? Ou será que, por que ela pensa que acabou com isso, ela cria a ilusão de que há algo mais? Não vou aceitar isso. Como um ser humano, uma pessoa, ou " X ", afirma: "Compreendi isso, enxerguei a limitação que há nisso, vivi isso, e cheguei ao fim de tudo isso. " E essa mente, tendo chegado ao fim disso, não é mais a mente limitada. E haverá uma mente que seja totalmente ilimitada?
DB: Sim, e isso levanta outra questão: como pode o cérebro ser capaz de entrar em contato com uma mente assim? Qual a relação entre essa mente ilimitada e o cérebro?
K: Vou chegar lá. Em primeiro lugar, quero deixar claro este ponto - será bastante interessante, se o examinarmos. Essa mente, o seu todo, toda a natureza e estrutura da mente, inclusive as emoções, o cérebro, as reações, as resposta físicas, têm vivido em um turbilhão, no caos, na solidão, e compreendeu, fez uma grande descoberta acerca de tudo isso. E o fato de ter feito essa grande descoberta iluminou o campo. Essa mente não é mais aquela mente.
DB: Sim: não é mais a mente original e limitada com que começou.
K: Sim, não é mais a mente limitada, a mente danificada. Vamos usar a palavra danificada DB: Mente danificada, e também cérebro danificado - o trabalho da mente danificou o cérebro.
K: Sim, perfeito. Mente danificada significa emoções danificadas, cérebro danificado.
DB: As próprias células não estão em perfeita ordem.
K: Correto. Mas quando ocorre a descoberta e, portanto, a ordem, esse dano se desfaz. Não sei se concorda.
DB: Sim, pode-se ver, pelo raciocínio, que isto é bastante possível, porque se pode afirmar que o dano é causado por pensamentos e sentimentos desordenados que sobreexcitam as células e as desintegram. E agora, com a descoberta, isso cessa e tem início um novo processo.
K: Sim, é como uma pessoa que caminha durante cinquenta anos numa direção e que, de repente, descobre que aquela não é a direção certa, e todo o cérebro muda.
DB: Ele muda na essência e, então, a estrutura errada é desmanchada e curada. Como o senhor disse, isso pode levar tempo.
K: É verdade.
DB: Mas a descoberta...
K:... é o fator que irá mudá-lo.
DB: Sim, e a descoberta não leva tempo, mas indica que houve uma mudança na origem de todo o processo.
K: É verdade. Aquela mente, a mente limitada, com toda a sua consciência e conteúdo, afirma que esse papel terminou. Mas, se tiver mesmo ocorrido que aquela mente limitada, pelo fato de ter feito uma descoberta acerca da limitação, ultrapassou esses limites, não será, na verdade, este acontecimento algo de incrível poder revolucionário? Concorda? Logo, não é mais a mente humana. Desculpe-me por essa palavra.
DB: Bem, acho que temos de esclarecer isso: o que entendemos por mente humana.
K: A mente humana com a sua consciência limitada.
DB: Sim, consciência limitada que é condicionada, e não livre.
K: Isso terminou.
DB: Sim, de modo que tudo isso se passou com a consciência geral, isto é, não se restringe a indivíduos, mas ocorreu por toda parte.
K: Sim, é claro, não falo de um indivíduo; isso seria uma grande tolice.
DB: Sim, mas acredito que discutimos isso, que o indivíduo é o resultado da consciência geral, é mais um resultado em particular do que algo independente. O senhor sabe, essa é uma das dificuldades.
K: Sim, é uma das confusões.
DB: A confusão é que tomamos a mente individual como sendo a realidade concreta. Já discutimos antes a necessidade de considerar a mente geral como sendo a realidade da qual se forma a mente individual.
K: Sim, isso é muito claro.
DB: Mas agora o senhor declara que ultrapassamos até mesmo a mente geral; e o que significa isso?
K: Sim, ultrapassamos a mente geral e a particular.
DB: E a mente particular.
K: Bem, mas se alguém na verdade a tiver ultrapassado então, o que é a mente?
DB: Sim, e o que é a pessoa, o que é o ser humano? Certo?
K: O que é um ser humano? E qual é a relação entre essa mente, que não é feita pelo homem, e a mente feita pelo homem? Não sei se fui claro.
DB: Bem, já concordamos em chamar isso de mente universal, ou o senhor prefere não fazê-lo?
K: Não gosto da expressão mente universal; inúmeras pessoas já a utilizaram. Vamos usar palavras mais simples.
DB: Bem, é a mente que não foi feita pelo homem.
K: Acho que isso é mais simples; vamos manter assim, uma mente que não foi feita pelo homem.
DB: Nem individualmente nem em geral.
K: Geral ou individualmente, ela não é feita pelo homem. Mas, senhor, eu lhe pergunto, pode alguém na verdade observar, em profundidade, sem nenhum tipo de preconceito, ou algo parecido? Será que existe uma mente assim? Compreende o que estou tentando dizer?
DB: Sim, vejamos o que significa observar. Acho que temos aqui alguns problemas de linguagem, porque, veja, dizemos que é preciso observar, e coisas desse tipo, ao passo que...
K: Eu observo isto, eu observo.
DB: Quem observa? O senhor vê, este é um dos problemas que surgem.
K: Já abordamos isso. Não existe divisão na observação. Não existe o eu que observa; existe apenas a observação.
DB: A observação acontece.
K: Sim.
DB: O senhor diria que ela ocorre num cérebro particular, por exemplo, ou que um cérebro particular toma parte na observação?
K: Percebo a armadilha que há nisso. Não, senhor, ela não ocorre em um cérebro particular
DB: Sim, mas parece que um cérebro particular pode responder.
K: É claro, mas não é o cérebro de Krishnamurti.
DB: Não, não quero dizer isso. O que quero dizer com as palavras cérebro particular é que, devido às particularidades da localização de determinado ser humano no espaço e no tempo, ou qualquer que seja a sua forma, mesmo sem lhe dar um nome, podemos afirmar que ele se distingue de qualquer outro que pudesse estar ali.
K: Veja, senhor, vamos deixar bem claro este ponto. Vivemos em um mundo feito pelo homem; a mente foi feita pelo homem; nós somos o resultado de mentes feitas pelo homem, bem como nossos cérebros, com todas as suas respostas e tudo o mais.
DB: Bem, o cérebro, propriamente dito, não é feito pelo homem, mas foi condicionado, pelo condicionamento feito pelo homem.
K: Condicionado pelo homem; certo, é isto que quero dizer. Agora, pode esta mente descondicionar-se de forma tão completa que chega ao ponto de não ser mais feita pelo homem? Eis a questão - vamos mantê-la neste nível simples. Pode esta mente, mente feita pelo homem - tal como é agora - pode ela ir até este ponto, libertar-se por si mesma de si mesma, e de forma tão completa?
DB: Sim, é claro, trata-se de uma afirmação um tanto paradoxal.
K: Exato. Paradoxal, mas é real, é assim. Vamos começar de novo. É possível observar que a consciência da humanidade é o seu conteúdo. E seu conteúdo é todo ele de coisas feitas pelo homem - ansiedade, medo, e tudo o mais. E isto não é apenas particular; isso ocorre em geral. E, tendo feito uma descoberta acerca disso, ela se livrou desse conteúdo.
DB: Isso significa que, potencialmente, a consciência da humanidade sempre foi maior do que isso e que a descoberta permitiu que ela se liberasse disso. Foi esta a sua afirmação?
K: Esta descoberta - eu não diria que é potencial.
DB: Bem, há uma certa dificuldade de linguagem. Se o senhor diz que o cérebro, ou a mente, fez uma descoberta acerca do seu próprio condicionamento, então o senhor praticamente afirma que ela se transformou, que não é mais a mesma.
K: Sim, eu afirmo isso; afirmo. A descoberta transforma a mente feita pelo homem.
DB: Certo. E então ela deixa de ser a mente feita pelo homem.
K: Não é mais a mente feita pelo homem. Fazer essa descoberta significa varrer todo o conteúdo da consciência. Correto? Não um pedaço de cada vez, mas a totalidade dele. E a descoberta não é resultado do esforço do homem.
DB: Sim; mas então surge outra questão: de onde vem essa descoberta?
K: Perfeito. De onde ela vem? Sim, do próprio cérebro, da própria mente.
DB: De qual: do cérebro ou da mente?
K: Da mente; refiro-me à totalidade dela. Espere um minuto, senhor. Vamos devagar - isto é muito interessante, mas vamos devagar. A consciência, geral e particular, é feita pelo homem. E, através da lógica e da razão, podemos ver as limitações. A mente, então, terá avançado muito. E, então, ela chega a um ponto em que diz " Tudo isto pode ser varrido de uma só vez, de um só golpe, com um movimento? " E esse movimento é a descoberta, o movimento da descoberta. Está ainda na mente. Mas não é mais fruto daquela consciência. Não sei se me faço entender.
DB: Sim. Então o senhor afirma que a mente tem a possibilidade, o potencial de ir além da consciência.
K: Sim.
DB: Mas nós, na verdade, não achamos isso importante.
K: É claro. Este tem de ser um papel do cérebro, um papel da mente.
DB: O cérebro, a mente pode fazer isso, mas em geral não o tem feito.
K: Sim. Mas agora, tendo feito isso, existirá uma mente que não seja feita pelo homem, que o homem não pode conceber, não pode criar, e que não é uma ilusão? Existe uma mente assim? Não sei se fui claro.
DB: Bem, acho que o que o senhor está dizendo é que, tendo-se libertado, a mente...
K: Do geral e do particular...
DB:... se libertou da estrutura geral e particular da consciência da humanidade, de seus limites, e a mente agora está muito maior. Agora o senhor diz que a mente levanta uma questão.
K: Sim, a mente levanta uma questão.
DB: Qual é?
K: Em primeiro lugar, estará essa mente livre da mente feita pelo homem?
Eis a primeira questão.
DB: Isso pode ser uma ilusão.
K: Ilusão - é a isso que quero chegar; precisamos ser muito claros. Não, não se trata de uma ilusão, porque ela enxerga a mensuração como ilusão; ela conhece a natureza das ilusões e sabe que onde há desejo deve haver ilusões. E que as ilusões devem criar limitação, e assim por diante. Ela não só compreendeu; ela já ultrapassou isso.
DB: Ela se libertou do desejo.
K: Está livre do desejo. Essa é a natureza. Eu não quero afirmar isso de forma tão brutal. Livre do desejo.
DB: Mas está repleta de energia.
K: Sim, e então essa mente, que não é mais geral ou particular e, portanto, não é mais limitada - a limitação foi quebrada com a descoberta - não é mais a mente condicionada. Então, o que é esta mente? Estando consciente de que ela não continua mais presa a uma ilusão.
DB: Sim, mas, segundo o senhor, ela perguntava se existe ou não algo muito maior.
K: Sim, e é por isso que eu faço essa pergunta.
DB: O que quer que aquilo possa ser.
K: Sim. Existirá uma mente que não seja feita pelo homem? E, se existir, qual a sua relação com a mente feita pelo homem? Isso é muito difícil.
O senhor vê, todo tipo de afirmação, todo tipo de declaração verbal não pode ser a mente não feita pelo homem certo? Daí perguntamos se existe uma mente que não seja feita pelo homem. E acredito que só há sentido em se fazer esta pergunta quando a outra mente, quando as limitações estiverem varridas; caso contrário, seria apenas uma pergunta tola.
DB: Dá no mesmo...
K: Seria uma perda de tempo. Quero dizer: isso se tornaria teórico, sem sentido.
DB: Seria parte da estrutura feita pelo homem.
K: Claro, claro. Então precisamos estar absolutamente, a pessoa deve estar...
DB: Eu acho que a palavra absoluto só pode ser usada nesse contexto se tivermos bastante cuidado.
K: Muito cuidado, sim. Absolutamente livre de tudo isso. Só então o senhor pode fazer essa pergunta: existirá uma mente não feita pelo homem e, se existir, qual a sua relação com a mente feita pelo homem?
Bem, mas, em primeiro lugar, existe uma mente assim? É claro que existe. É claro, senhor. Sem ser dogmático ou pessoal, afirmo que existe.
Mas não é Deus.
DB: Certo, bom.
K: Porque Deus - já falamos a respeito.
DB: É parte da estrutura feita pelo homem.
K: Que produziu o caos no mundo. Então, ela existe. A próxima pergunta, portanto, é: se existe essa mente, e alguém afirma que existe, qual a relação dela com a mente feita pelo homem?
DB: Sim, a geral.
K: A particular e a geral. Haverá alguma conexão aí?
DB: Bem, trata-se de uma questão difícil; poderíamos dizer que a mente feita pelo homem vive permeada de ilusão; a maior parte do seu conteúdo não é real.
K: Não, e isso é real.
DB: Verdadeira, ou o que quer que seja.
K: Usaremos a palavra real no sentido de verdadeira, isto é, mensurável, confusa - terá esta alguma relação com aquela? É evidente que não.
DB: Bem, eu diria que tem uma relação superficial, no sentido de que a mente feita pelo homem tem algum conteúdo verdadeiro num certo nível, num nível técnico, digamos, o sistema da televisão, e assim por diante.
K: Bem...
DB: Nesse sentido poderia haver uma relação nesta área; mas, como o senhor dizia, esta é uma área bastante pequena. Porém, fundamentalmente...
K: A mente feita pelo homem não tem relação com a mente não feita pelo homem; mas aquela [ a mente não feita pelo homem ] tem uma relação com esta [ a mente feita pelo homem ].
DB: Sim, mas não com as ilusões da mente feita pelo homem.
K: Espere um pouco, vamos ser claros: minha mente é a mente feita pelo homem. Ela tem ilusões, desejos e tudo o mais. E existe aquela outra mente que não tem, que está além de todas as limitações. Essa mente ilusória, a mente feita pelo homem, está sempre buscando a mente não feita pelo homem.
DB: Sim, este é o seu principal problema.
K: Este é o seu principal problema. É medir, é avançar, chegar mais perto, mais, e todo o resto. E essa mente, a mente feita pelo homem, está sempre em busca da mente não feita pelo homem, e, portanto, cria mais e mais logros, confusão. Esta mente feita pelo homem não tem relação com a mente não feita pelo homem.
DB: Sim, porque qualquer tentativa de alcançar a mente não feita pelo homem é uma fonte de ilusão.
K: Claro, claro, evidente. Bem, mas terá a mente não feita pelo homem alguma relação com a mente feita pelo homem?
DB: Bem, o que eu estava sugerindo é que deve haver uma relação pois, se tomarmos todas as ilusões que se encontram na mente feita pelo homem, tais como os desejos, o medo, e assim por diante, a mente feita pelo homem não tem nenhuma relação com a mente não feita pelo homem porque, de qualquer forma, essas ilusões são invenções.
K: Sim, está entendido.
DB: Mas a mente não foi feita pelo pode ter uma relação com a mente feita pelo homem na compreensão de sua verdadeira estrutura.
K: Está dizendo, senhor, que a mente não foi feita pelo homem tem uma relação com a mente humana no momento em que supera suas limitações?
DB: Sim, ao compreender essas limitações, ela as supera.
K: Sim, ela as supera. Então, existe uma relação.
DB: Então ela tem uma relação genuína com aquilo que a mente limitada é de fato, não com as ilusões do que ela pensa que é.
K: Vamos ser mais claros.
DB: Bem, precisamos usar as palavras com exatidão - a mente que não é limitada, certo, a mente que não é feita pelo homem, não pode ter relação com as ilusões que se encontram na mente feita pelo homem.
K: Perfeito. Concordo.
DB: Mas ela tem que ter uma relação com a fonte, por assim dizer, com a verdadeira natureza da mente feita pelo homem, que está por trás da ilusão.
K: Ou seja, em que se baseia a mente feita pelo homem?
DB: Bem, em tudo isso sobre o que falamos.
K: Sim, que é a sua natureza. Portanto, como pode a mente não feita pelo homem ter um relacionamento com a mente feita pelo homem, mesmo em termos básicos?
DB: A única relação consiste em compreendê-la, de maneira que alguma comunicação se torne possível, o que poderia terminar em... poderia comunicar-se para a outra pessoa...
K: Não, eu estou questionando isso.
DB: Mas o senhor disse que a mente que não é feita pelo homem pode se relacionar com a mente limitada, e não o inverso.
K: Eu questiono até mesmo isso.
DB: Isso pode ou não ser assim, isso é o que o senhor está dizendo ao questioná-lo.
K: Sim, eu questiono isso.
DB: Muito bem.
K: Qual é então a relação entre o amor e o ciúme? Existe alguma?
DB: Não com o ciúme, propriamente, que é uma ilusão, mas pode haver com o ser humano ciumento.
K: Não, estou considerando o amor e o ódio - duas palavras; amor e ódio; ódio e amor não têm relação alguma um com o outro.
DB: Não, na verdade não.
K: Nenhuma, nenhuma mesmo.
DB: Eu acho que o amor é capaz de compreender a origem do ódio.
K: Ah, poderia - sem dúvida, poderia.
DB: Nesse sentido, eu acho que pode haver alguma relação.
K: Percebo, compreendo. O senhor afirma que o amor pode compreender a origem do ódio, como surge o ódio, e tudo o mais. Será que o amor compreende isso?
DB: Bem, eu acho que, num certo sentido, ele compreende a sua origem na mente feita pelo homem, que tendo enxergado a mente feita pelo homem e toda a sua estrutura, e tendo se afastado dela...
K: Estamos dizendo, senhor, que o amor - usaremos esta palavra por enquanto - que o amor tem uma relação com o não-amor?
DB: Apenas no sentido de dissolvê-lo.
K: Não tenho certeza, não tenho certeza; precisamos ter muito cuidado aqui. Ou será ele o fim do próprio ódio...?
DB: Não entendi.
K: O fim do ódio; o outro existe; o outro não tem relação com a compreensão do ódio.
DB: Sim, bem, precisamos então perguntar como ele começa.
K: Isso é muito simples.
DB: Não, mas eu quero dizer: suponhamos que tenhamos ódio.
K: Eu tenho ódio. Suponha que eu tenho ódio. Posso ver a sua origem.
Porque você me ofendeu.
DB: Bem, esta é uma noção superficial da origem; refiro-me à origem mais profunda, ou seja, o que leva alguém a se comportar de modo tão irracional.
Veja, não há nada real - se você apenas diz " você me ofendeu ", pergunto: por que o senhor responderia ao insulto?
K: Porque todo o meu condicionamento é nesse sentido.
DB: Sim, é isso o que entendo por compreensão da origem...
K: Compreendo isso, mas será que o amor me ajuda a compreender a origem do ódio?
DB: Não, mas eu acho que alguém tomado de ódio, ao compreender sua origem e ultrapassá-la...
K:... aí, então, o outro existe. O outro não pode ajudar este movimento de afastamento.
DB: Não, mas a pergunta é: suponha que uma pessoa, se o senhor prefere assim, tem esse amor e o outro não o tem, pode o primeiro comunicar algo que irá dar início ao movimento do segundo?
K: Isso significa: A pode influenciar B?
DB: Influenciar não, mas talvez pudesse provocar uma pergunta do tipo, por exemplo: por que falar disso?
K: Isso é outra coisa - o problema é outro. Não, senhor; a questão é: poderá o ódio ser dispersado pelo amor?
DB: Não, não é isso, não.
K: Ou será que, havendo a compreensão do ódio e o fim dele, o outro existe?
DB: Certo, mas, se dissermos que em A o amor agora está presente - certo? A alcançou aquela mente.
K: Sim.
DB: A ama, e ele vê B...
K: B atingiu o outro.
DB: Bem, mas dizíamos, o que ele irá fazer, percebe? Essa é a questão.
K: Qual a relação entre os dois?
DB: É a mesma pergunta.
K: Sim, a mesma pergunta.
DB: O que ele irá fazer é uma outra forma de fazer a pergunta.
K: Eu acho que - espere um momento, senhor. Eu tenho ódio, o outro tem amor. Minha mulher ama e eu odeio. Ela pode falar comigo, pode me mostrar isso, a irracionalidade disso, e assim por diante, mas o amor dela não irá modificar a fonte do meu ódio.
DB: Está muito claro, sim, mas o amor dela é a energia que está por trás do diálogo.
K: Por trás do diálogo, sim.
DB: Não é como se o próprio amor aparecesse por ali e dissolvesse o ódio.
K: É claro que não - esta é uma afirmação romântica. Então o homem que odeia e tem uma idéia clara acerca da origem desse ódio, acerca da causa disso, do seu movimento, e acaba com ele, tem o outro.
DB: Sim, eu acho que podemos dizer que A é o homem que enxergou tudo isso e que agora tem energia para passar isso para B - mas depende só de B o que venha a acontecer.
K: É claro. Eu acho que deveríamos explorar mais este assunto.