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sexta-feira, 13 de abril de 2018

A percepção do que é verdadeiro


A percepção do que é verdadeiro

[...] Para se descobrir o que é verdadeiro, devem ser postas de parte todas as conclusões, todas as formas de comparação e condenação; e isso se nos afigura dificílimo, porque somos educados, condicionados para condenar, justificar. Quando temos um problema, tentamos achar uma solução em vez de tratarmos de compreender o próprio problema; pois a solução está contida no problema, e não fora dele. Para a maioria de nós, mudança consiste apenas em troca de padrão; e se considerardes isso, vereis que troca de padrão constitui uma verdadeira transformação. Toda mudança operada na esfera do tempo é o mesmo movimento, modificado e continuado.

Ora, eu não estou falando sobre mudança de padrão, porém a respeito de uma profunda revolução psicológica — e isso significa libertar-se completamente da estrutura psicológica da sociedade. Mudança que se opera dentro do padrão social é um movimento do “conhecido” para o “conhecido”, não achais? Sou isto e quero tomar-me aquilo, que é meu ideal, e, assim, luto para mudar. Mas o ideal é uma “projeção” do conhecido, e o cultivo do ideal continua a não ser mudança nenhuma.

A revolução implica, por certo, um percebimento total de toda a estrutura psicológica do “eu”, consciente e inconsciente, e que se esteja totalmente livre dessa estrutura sem pensar em “tornar-se outra coisa”. Quer estejamos apercebidos dela, quer não, a maioria de nós estabeleceu um padrão de pensamento e atividade, um modo de vida padronizado. No esforço para operarmos uma mudança em nossa vida, aceitamos consciente ou inconscientemente um certo padrão, e pensamos ter mudado; mas, na realidade, não houve mudança nenhuma.

Como tenho salientado, se não há compreensão do inconsciente, toda “mudança” psicológica é simples ajustamento a um padrão estabelecido pelo inconsciente. E a crise atual — não apenas a crise externa, mas também a crise existente na consciência — exige uma revolução: não me refiro à revolução social ou econômica, que é muito superficial, porém à revolução no inconsciente — à completa libertação da estrutura psicológica da sociedade, total abandono da ambição, da inveja, da avidez, do desejo de poder, posição, prestígio, etc. Esta é a única revolução, porquanto, sem ela, nada de novo pode existir; sem ela, ficamos apenas acalentando ideias, conceitos e, por conseguinte, há sempre sofrimento. Só tem fim o sofrimento com essa revolução total.

A questão, pois, é: Como operar essa mudança interior, essa revolução total? Se fazemos um esforço deliberado, consciente, para modificar-nos, geramos conflito, luta; e a mudança nascida de conflito, luta, só pode produzir mais sofrimento.

Ora, é possível promover uma revolução na psique, sem esforço consciente? Tenho explicado cuidadosamente que o inconsciente é o depósito do passado. No inconsciente estão armazenadas não só as experiências do indivíduo, mas também as da raça. Ele é o repositório de toda a luta do homem no decurso das idades: sua busca de Deus, sua rejeição de Deus, sua adoração do Estado, sua identificação com a nação, com uma ideia, etc. A totalidade de tudo isso é o passado, é o fundo inconsciente de cada um de nós, em conformidade com o qual reagimos. Podemos tentar compreender o inconsciente por meio de exame e análise, mas isso, é óbvio, não produzirá revolução. Podeis modificar, reformar; mas vossa reforma tornará necessária nova reforma; não é revolução, não é a completa libertação do passado. Necessita-se de uma mente jovem, nova, purificada, e essa mente só pode existir quando nos libertamos psicologicamente do passado.

Mas como poderá operar-se essa revolução, sem esforço, sem se procurar fazer algo nesse sentido? Todo esforço ou luta que visa transformação envolve contradição, e a contradição acentua o conflito já existente; portanto, não há transformação. Só se pode perceber o que é novo num estado de purificação, isto é, quando o passado deixou de ter qualquer significação psicológica.

A inocência, como deveis saber, é uma das exigências da sociedade moderna, mas essa exigência é ainda muito superficial. Para as pessoas que têm passado por muitos sofrimentos, que se veem oprimidas pelo sentimento de culpa, pela ansiedade, pelo medo — para essas pessoas a “inocência” é uma coisa muito importante. Mas a “inocência” de que falam é o oposto da complexidade, o oposto do sofrimento, da angústia, da luta, da confusão. A verdadeira “inocência”, como o amor, não é um oposto. O amor não é o oposto do ódio. Só nasce o amor quando o ódio, em todas as suas formas, desapareceu. Do mesmo modo, a mente deve ser “inocente” (ilesa), embora tenha passado por todas as formas de experiência. Para que a mente realize esse estado de “inocência” devem terminar as acumulações de experiência — as quais são ainda o passado, ainda fazem parte do fundo inconsciente.

Ora, como será isso possível? Dizem as pessoas religiosas que devemos recorrer a Deus, pormo-nos num estado de receptividade para a Graça de Deus. E há práticas religiosas (quase ia dizendo “truques”) de toda espécie, que servem para persuadir, influenciar ou controlar a mente humana, a fim de torná-la capaz de alcançar, de uma ou de outra maneira, aquela “inocência”. Há também os que, com o uso de drogas diversas, procuram “experimentar” um estado exaltado de sensibilidade perceptiva, um maravilhoso estado de bem-aventurança. Mas a inocência não pode ser “produzida” com o uso de nenhuma droga, de nenhum método de ioga, nenhuma crença ou rejeição de crença, ou pelo aguardar a Graça de Deus. Tudo isso implica esforço, busca, ânsia de fugir ao fato — o que é. E a inocência só pode vir à existência com a total libertação do “conhecido” — isto é, com o morrer para o “conhecido”, morrer para o passado, para as lembranças agradáveis, para todas as coisas que temos acalentado, formado, acumulado e que constituem nosso caráter.

Infelizmente, a maioria de nós não deseja morrer para nada, principalmente para aquilo que nos dá prazer, para as lembranças de coisas que temos experimentado e a que ficamos apegados. Preferimos encontrar um refúgio, viver numa ilusão. Mas, precisamos morrer para o “conhecido”, a fim de que se torne existente a “inocência”. Isto não é uma mera declaração verbal ou conclusão. É necessário morrermos realmente para o “conhecido”, para o passado. Mas não podemos morrer para o conhecido, se temos um motivo para morrer; pois todo motivo está enraizado no tempo, no pensamento; e o pensamento é a reação do fundo (background) da consciência, o qual é o “conhecido”.

Todos estamos condicionados — como ingleses, russos, hinduístas, cristãos, budistas, o que quer que seja. Somos moldados pela sociedade, pelo ambiente; nós somos o ambiente. A maioria de vós, sem dúvida, crê em Deus, em Jesus, porque nesta crença fostes educados; ao passo que na Rússia as pessoas foram condicionadas para não aceitarem nada disso. A totalidade do condicionamento da mente é o “conhecido”, e esse condicionamento pode ser quebrado, mas não por meio de análise. Só pode ser quebrado quando considerado de maneira negativa, e essa maneira negativa não é o oposto da positiva. Assim como o amor não é o oposto do ódio, assim também esse “negativo” não é o oposto de “positivo”, que é exame, análise, esforço para alterar o padrão existente ou para ajustar-se a um padrão diferente. Tudo isso consideramos “positivo”; e o “negativo” de que falamos não é o oposto disso. Não é, tampouco, uma síntese. Síntese implica reunião dos opostos, mas isso produz novo conjunto de opostos. O “negativo” de que falamos é a total rejeição dos opostos. Quando rejeitamos totalmente o método (que faz parte de nosso condicionamento) pelo qual se procura modificar a psique por meio de esforço, de análise, então o nosso método é negativo; e só nesse estado de negação a mente pode ser “inocente”. Essa é a mente verdadeiramente religiosa.

A pessoa religiosa não é aquela que crê, que vai à igreja todos os dias ou uma vez por semana; não é a que tem um credo, que está escravizada a dogmas e superstições. A mente religiosa é, deveras, uma mente científica; científica, no sentido de que é capaz de observar os fatos sem desfigurá-los, de ver a si própria tal como é. O libertar-se do condicionamento requer, não uma mente crédula, disposta a aceitar, porém aquela capaz de se observar de maneira racional e sã, e de perceber que, a menos que seja despedaçada a estrutura psicológica da sociedade, ou seja o “eu”, não pode haver “inocência”; e que, sem “inocência”, a mente nunca poderá ser religiosa.

A mente religiosa não é fragmentária, não divide a vida em compartimentos. Ela abarca a totalidade da vida — a vida de aflição e dor, a vida de alegrias e satisfações passageiras. Uma vez que está totalmente livre da estrutura psicológica da ambição, da avidez, da inveja, da competição, de toda exigência de mais, acha-se a mente religiosa num estado de “inocência”, e só assim a mente pode transcender a si própria, e não quando crê, meramente, num além ou nutre uma certa hipótese relativa a Deus.

A palavra “deus” não é Deus; o conceito que tendes de Deus não é Deus. Para se descobrir se existe isso que se pode chamar “Deus”, devem desaparecer totalmente todos os conceitos verbais e formulações, todas as ideias, todo pensamento que seja reação da memória. Só então existe aquele estado de “inocência” em que não há automistificação, nem o querer ou desejar resultado; e então podereis descobrir por vós mesmo o que é verdadeiro.

Assim, a mente já não está em busca de experiência. Se ela busca experiência, é imatura. À mente “inocente” já não interessa a experiência. Está livre da palavra, ou seja da capacidade de reconhecer com seu fundo de conhecimento (background). O reconhecimento implica associação, que pode ser verbal ou empírica e sem essa associação nada se pode reconhecer. A mente religiosa, ou “inocente”, está livre da palavra, livre de conceitos, padrões, formulações, e só assim pode uma mente descobrir por si própria se há, ou não há, o Imensurável.

Krishnamurti, Londres, 19 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


A questão da percepção do que somos


A questão da percepção do que somos

[...] Estamos tratando de ver-nos como somos, conhecer a nós mesmos, se possível, totalmente. Estamos tratando de compreender essa entidade sobremodo complexa que é cada um de nós, com todas as suas sutis variações, conflitos, ânsias, compulsões.

Disse eu que, para nos compreendermos completamente, torna-se necessário um certo percebimento, o percebimento individual de como somos; e não podemos ter essa percepção, se condenamos ou justificamos o que vemos em nós. Ora, isso é bastante simples. Se condeno a mim próprio, não há compreensão. Não percebo o significado daquilo que vejo; condeno-o, apenas. Se condeno uma pessoa ou a comparo com outra, não a compreendo.

Assim, para compreendermos a nós mesmos — por nobres ou ignóbeis, sensíveis ou insensíveis que sejamos — requer-se percebimento. Esse percebimento implica que não deve haver justificação, nem condenação, nem comparação. Justificação, condenação e comparação estão dentro da esfera do tempo; são ditadas pelo nosso condicionamento. Olhamos as coisas como ingleses, hindus, cristãos ou comunistas. Nossa observação e nosso pensar estão condicionados pelas influências culturais e educativas de nosso ambiente, e se não estamos apercebidos desse condicionamento, não podemos ver o que é, não podemos ver o fato. Isto, em si, é bastante simples, não achais? Não é algo que estais tentando aprender de mim. Para verdes e compreenderdes a entidade sobremodo complexa que sois, deveis olhar-vos sem esse fundo de condenação, justificação e comparação. E quando vos olhardes desse modo sabereis ver-vos de maneira total.

Considero importante compreender esta questão do percebimento, e não torná-la algo misterioso. Não há mistério nenhum no percebimento. Ele é infinitamente praticável e aplicável à existência diária. Se uma pessoa percebe que está comparando, julgando, avaliando, se está inteirada de seus gostos, versões, contradições, sem condenar ou procurar livrar-se delas, — se percebe tudo isso, se está crente do fato, que acontece? Que acontece se não ignoro que sou mentiroso — se percebo o fato sem condená-lo, sem dizer quanto isso é terrível, maléfico, desvirtuoso, etc.? Se sabeis que realmente mentis, que acontece?

Vede, por favor, que não estais aprendendo nada de mim. Eu não quero ser vosso instrutor, não quero ser seguidor. Isso é prejudicial, um obstáculo, destrói toda a vossa capacidade de vós mesmo o descobrirdes. Mas, se observardes, vereis que, quando estais simplesmente apercebido do fato, vós o examinais sem terdes nenhuma opinião a seu respeito. Olhais para ele como coisa nova, e não com todas as lembranças e associações ligadas ao fato.

Espero estar-me explicando com clareza.

A dificuldade é que nunca encarais a realidade diretamente, olhais apenas para os “valores” e opiniões a ela associadas, e isso vos impede de ver o fato.

Ora, que acontece quando vejo que estou mentindo, que sou ambicioso, ou invejoso, ou ávido? Quando olho para o fato, sem nenhuma opinião, nenhuma lembrança a ele relativa, já não há então nenhum obstáculo a percebê-lo. Posso olhá-lo, sem desvio nem desfiguração; e, então, esse próprio fato gera a energia de que preciso para tratar dele. Posso descobrir porque minto, e o que a esse respeito devo fazer. Compreendeis? Se não tenho nenhuma opinião, juízo ou avaliação concernente ao fato, então ele próprio gera a energia necessária para enfrentá-lo.

Tudo isso faz parte da percepção, faz parte do tempo. Por favor, não especuleis a respeito do atemporal. Para descobrirdes o que existe além do tempo, não deveis “fabricar” uma porção de palavras, e tampouco podeis aprendê-lo de minha boca. Tendes de trabalhar aplicadamente, para chegardes a esse descobrimento.

Perceber significa estar consciente de vossas reações ao vos defrontardes com um fato. Significa observar todas as vossas reações aos “desafios” — não algum desafio “supremo”, mas os desafios de cada dia, os pequenos desafios ocorrentes quando viajais num ônibus, quando falais com o patrão, etc. Deveis dar-vos conta, não apenas de vossas reações conscientes, educadas, “modernas”, mas também dos motivos, compulsões e ânsias inconscientes; porque tanto o consciente como o inconsciente estão dentro do campo do condicionamento e, por conseguinte, do tempo. O inconsciente é o passado, a herança racial acumulada, e é preciso que se perceba tudo isso.

Ora, para se poder estar ciente, sem escolha, desse processo total do inconsciente e do consciente, necessita-se de um estado mental negativo; e acho que agora já deve estar bastante claro o que eu entendo por “ estado mental negativo” . O estado positivo é aquele em que a mente condena, julga, avalia, aprova, nega, concorda ou discorda, e ele resulta de vosso particular condicionamento. Mas o processo negativo não é o oposto do positivo.

Se desejais compreender o que está dizendo este orador, deveis escutar negativamente, não? “Escutar negativamente” significa não aceitar nem rejeitar o que se diz, nem compará-lo com o que está escrito na Bíblia, ou com o que diz o vosso analista. Escuta-se, simplesmente. Nesse “escutar negativo” percebeis vossas próprias reações sem julgá-las; por conseguinte, começais a compreender-vos, e não simplesmente o que o orador está dizendo. O que o orador diz é apenas um espelho em que vos mirais.

Ora, esse percebimento implica atenção, não achais? E, no estado de atenção, não há esforço de concentração. No momento em que dizeis: “Preciso concentrar-me”, criastes o conflito, porque concentração envolve contradição. Desejais concentrar-vos em alguma coisa, vosso pensamento foge, procurais fazê-lo voltar, e ficais continuamente empenhado nessa batalha. E, enquanto se desenrola a batalha, não estais escutando. Se aprofundardes isso, acho que descobrireis que os dizeres do orador exprimem a verdade. Não é uma coisa aplicável a vós mesmo só porque ouviste alguém dizer algo sobre ela.

A compreensão, pois, é um estado de atenção sem escolha. E, sem esse percebimento, essa atenção, nenhum significado tem o falar acerca do que está além, o atemporal, etc. Isso é pura especulação. É o mesmo que ficar sentado ao pé do monte a perguntar o que há do outro lado dele. Para descobrirdes o que há, tereis de galgar o monte. Mas ninguém deseja galgar o monte, pelo menos poucos o desejam. Em geral nos satisfazemos com explicações, conceitos, ideias, símbolos. Procuramos compreender apenas verbalmente o que é atenção, o que é percebimento. Mas essa compreensão de si mesmo é tarefa verdadeiramente penosa. Não estou empregando a palavra “penosa” no sentido de conflito ou esforço para alcançar algo. É preciso estar verdadeiramente interessado em tudo isso. Se não estais interessado, muito bem, não precisais tocar nisso. Mas, se estais interessado, vereis quanto é difícil compreender a si próprio totalmente. Todos os problemas humanos originam-se desse centro extraordinariamente complexo e vivo que é o “eu”, e o homem que deseja descobrir os sutis movimentos desse “eu”, tem de estar negativamente apercebidos, observando sem escolher. Todo esforço para ver, toda espécie de compulsão, desfigura o que se vê, e, por conseguinte, nada vemos.

Krishnamurti, Londres, 17 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito



quinta-feira, 12 de abril de 2018

Que se entende por “estar apercebido sem escolha”?


PERGUNTA: Que se entende por “estar apercebido sem escolha”?

KRISHNAMURTI: Não devemos atribuir exagerada significação à palavra “apercebido”. “Estar apercebido” não é nada misterioso em que devais exercitar-vos; não é uma coisa que só pode ser aprendida deste orador ou de um certo senhor de longas barbas. Tais coisas são por demais fantásticas e absurdas. “Estar simplesmente apercebido” que significa isso? Cientificar-vos de que estais sentados aí e eu estou sentado aqui; de que eu vos estou falando, e vós me estais escutando; conscientizar-vos deste salão, sua forma, sua iluminação, sua acústica; observar as variadas cores dos traços das pessoas, as atitudes dessas pessoas, seu esforço para prestar atenção, o coçar-se, o bocejar, o enfado, a insatisfação de não poderem extrair do que estão ouvindo algo que possam “levar para casa”; o seu concordar ou discordar do que se está dizendo. Tudo isso é parte do “estar perceptivo” — parte muito superficial, aliás.

Por trás dessa observação superficial, está a reação de nosso condicionamento; eu gosto e não gosto, sou inglês e vós não sois, sou católico e vós sois protestante. E nosso condicionamento, com efeito, é bem profundo. Ele requer investigação, compreensão. Perceber nossas reações, nossos secretos motivos e reações condicionadas — isso também faz parte da conscientização.

Não podeis “estar plenamente consciente” se estais a escolher. Se dizeis “isto é certo e aquilo é errado”, o “certo” e o “errado” dependem do condicionamento pessoal. O que para vós é “certo”, no Extremo-Oriente pode ser “errado”. Credes num Salvador, no Cristo, e eles não creem; e vós pensais que eles irão para o inferno, porque não creem como vós. Tendes recursos para construir maravilhosas catedrais, enquanto eles talvez adorem uma imagem de pedra, uma árvore, uma ave, ou uma pedra, e vós dizeis: “Como são estúpidos esses pagãos!”. “Estar ciente” é perceber tudo isso sem discriminar; é dar-vos conta de vossas reações conscientes e inconscientes. E não podeis estar totalmente conscientes se estais condenando, se estais justificando, ou se dizeis “Conservarei minhas crenças, minhas experiências, meus conhecimentos”. Nesse caso, só percebeis parcialmente; e percepção parcial é, em verdade, cegueira.

Ver e compreender não é questão de tempo, não é questão de gradação. Ou vedes, ou não vedes. E não podeis ver, se não estais bem a par de vossas reações, de vosso próprio condicionamento. Estando ciente de vosso condicionamento, deveis observá-lo objetivamente; deveis ver o fato sem emitir opinião ou juízo a respeito dele. Por outras palavras, cumpre olhar o fato sem pensamento. Há então um percebimento, um estado de atenção, sem centro, sem fronteiras, no qual o conhecido não pode interferir; e é nesse estado de atenção total que a mente pode compreender o incognoscível. Uma mente vulgar, uma mente entravada por ideias neuróticas, pelo medo, pela avidez, pela inveja, poderá pensar a respeito do incognoscível, a respeito de Deus, a respeito disto ou daquilo, mas o que pensar terá pouca significação. Essa mente não é, em absoluto, uma mente religiosa.

Krishnamurti, Londres, 12 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


terça-feira, 10 de abril de 2018

O sofrimento e a mente religiosa


O sofrimento e a mente religiosa

Esta é a última palestra. Discorrerei sobre o sofrimento e a mente religiosa. Há sofrimento em toda a parte, exterior e interiormente. Vemo-lo tanto nas altas como nas baixas camadas sociais. Ele existe há milhares de anos, diversas teorias já se conceberam a seu respeito e as religiões dele já falaram muito; entretanto, ele continua. É possível extinguir o penar, ficar realmente, interiormente, de todo livre dele? Não existe só o sofrimento da velhice e da morte, mas também o sofrimento do insucesso, da ansiedade, da culpa, do medo, o sofrimento causado pela contínua brutalidade, pela crueldade do homem para com o homem. Pode-se extirpar a causa desse sofrimento — não em outrem, mas em nós mesmos? Ora, por certo, se desejamos efetuar qualquer transformação, ela deve começar em nós mesmos. Afinal, não há separação entre o indivíduo e a sociedade. Nós somos a sociedade, o “coletivo”. Como franceses, russos, ingleses, hindus, somos o resultado de reações coletivas, desafios e influências coletivas. E no transformar esse centro individual, talvez se possa alterar a consciência coletiva.

A meu ver, a presente crise não é tanto uma crise do mundo exterior, mas uma crise existente na consciência, no pensamento, em nosso ser inteiro. E acho que só a mente religiosa pode resolver esse sofrimento, pode dissipar inteira e completamente todo o mecanismo do pensamento e o resultado que o pensamento produz, na forma de sofrimento, medo, ansiedade e culpa.

Já tentamos tantas maneiras de nos livrarmos do sofrimento: frequentar a igreja, refugiar-nos em crenças e dogmas, aderir a várias atividades sociais e políticas — e inumeráveis outras maneiras de fugir a essa perpétua corrosão do medo e do sofrimento. Só a mente religiosa pode resolver o problema. E por “mente religiosa” entendo algo completamente diferente da mente, do intelecto que crê na religião. Não há religião onde há crença. Não há religião se existe dogma, perpétua repetição de palavras, palavras, palavras, sejam em sânscrito, sejam em latim, sejam noutra língua qualquer. “Ir à missa” é uma forma de entretenimento como outra qualquer; não é religião. Religião não é propaganda. Quer vosso intelecto seja condicionado pela “gente da igreja”, quer pelos comunistas, é a mesma coisa. Religião é algo inteiramente diferente de crença e não crença; e desejo penetrar bem na questão relativa à mente religiosa. Fique, portanto, bem claro para nós que religião não é a fé que professais: isso é muito infantil. E onde não há madureza, não pode deixar de haver sofrimento. Requer-se muita madureza para se descobrir o que é uma mente verdadeiramente religiosa. Esta não é, por certo, a mente que crê, nem aquela que segue qualquer espécie de autoridade, seja a do maior dos instrutores, seja a do chefe de determinada seita. Assim, evidentemente, a mente religiosa está livre de todo sectarismo e, por conseguinte, de toda autoridade.

Posso digressionar agora um pouco, para dizer umas breves palavras a respeito de outra coisa? Alguns de vós vindes escutando estas palestras com bastante assiduidade, nestas últimas semanas. E se vos fordes daqui com uma grande coleção de conclusões, com um novo conjunto de ideias e frases, ir-vos-eis de mão vazias, ou com as mãos cheias de cinzas. Conclusões e ideias, de qualquer espécie que sejam, não resolvem o sofrimento. Assim, espero sinceramente que não fiqueis apegados às palavras mas viajeis junto comigo, a fim de podermos ultrapassar as palavras e descobrir, por nós mesmos, o que é real e, daí, empreender viagem para mais longe. O descobrimento do que existe em nós mesmos, como fato e realidade, faz nascer uma reação e ação de natureza completamente diferente. Espero, pois, não leveis convosco as cinzas das palavras, da memória.

Como dizia, a mente religiosa está livre de toda autoridade. E é muito difícil estar livre da autoridade — não só da autoridade imposta por outrem, mas também da autoridade da experiência que acumulamos, que é do passado, que é tradição. E a mente religiosa não tem crenças, não tem dogmas; ela se move de fato para fato e é, portanto, uma mente científica. Mas a mente científica não é a mente religiosa. A mente religiosa inclui a mente científica; mas a mente treinada no saber científico não é mente religiosa.

A mente religiosa se interessa pela totalidade — não por uma determinada função mas, sim, pelo total funcionamento da existência humana. O intelecto se interessa por determinada função; especializa-se. Ele funciona especializadamente, como cientista, médico, engenheiro, músico, artista, escritor. São estas técnicas especializadas, limitadas, que criam a divisão, não só exterior, mas também interiormente. O cientista, provavelmente, é considerado como a pessoa mais importante de que necessita a sociedade hoje em dia, tal como o é o médico. A função, portanto, se torna de suma importância; e a ela está ligada a posição, e posição é prestígio. Assim, onde há especialização tem de haver contradição e uma limitação, e esta é a função do intelecto.

Cada um de nós, por certo, funciona dentro de uma estreita rotina de reações autoprotetórias. É aí que tem nascença o “eu”, o “ego” — no intelecto, com suas defesas, agressões, ambições, frustrações e sofrimentos.

Há, pois, uma diferença entre o intelecto e a mente. O intelecto é “separativo”, “funcional”, não pode ver o todo; ele funciona dentro de um padrão. E a mente é a totalidade que pode ver o todo. O intelecto está contido na mente; mas o intelecto não contém a mente. E por mais que o pensamento se purifique, se requinte e se controle, ele de modo nenhum pode conceber, formular ou compreender o todo. É a capacidade da mente que percebe o todo, e não o intelecto.

Mas nós desenvolvemos o intelecto num grau espantoso. Toda nossa educação se restringe ao cultivo do intelecto, porque há vantagem no cultivo de uma técnica, na aquisição de conhecimento. A capacidade de perceber o todo, a totalidade da existência — esta percepção não tem o móvel da vantagem; por esse motivo a desprezamos. Para nós, função importa mais que a compreensão. E só há compreensão quando há o percebimento do todo. Ainda que o intelecto seja capaz de discernir a razão, o efeito, a causa das coisas, o sofrimento não pode ser resolvido pelo pensamento. É só quando a mente percebe a causa, o efeito, o mecanismo total, e passa além, é só então que tem fim o sofrimento.

Para a maioria de nós, a função se tomou muito importante porque a ela está ligada a posição, a situação, a classe. E quando a posição se torna existente em virtude da função, há contradição e conflito. Como respeitamos o cientista e desprezamos o cozinheiro! Como veneramos o Primeiro Ministro, o General, e desconsideramos o soldado! Vemos, pois, que há contradição quando a posição está aliada à função; há distinção de classes, lutas de classes. Uma sociedade poderá procurar extirpar as classes, mas enquanto a posição acompanhar a função, tem de haver classes. E é isso o que todos desejamos. Todos desejamos posição, que significa poder.

Como sabeis, o poder é uma coisa extraordinária. Todos o ambicionam: o eremita, o general, o cientista, a dona-de-casa, o marido. Todos desejamos o poder: o poder que o dinheiro confere, poder para dominar, o poder do saber, o poder da capacidade. Ele nos dá posição, prestígio, e é isso que desejamos. E o poder é coisa má, seja o poder do ditador, seja o poder da esposa sobre o marido ou do marido sobre a esposa. É mau, porque força outrem a submeter-se, a ajustar-se; e nesse processo não há liberdade. Mas nós o ambicionamos, muito sutilmente ou muito cruelmente; e é por isso que buscamos o saber. O conhecimento é importantíssimo para a maioria de nós, e temos na mais alta consideração o homem ilustrado, com suas sutilezas intelectuais, porque ao saber se associa o poder.

Tende a bondade de escutar, não apenas a mim, mas à vossa mente, vosso intelecto e coração. Observai-os, para verdes com que avidez a maioria de nós deseja esse poder. E, quando há busca de poder, não há aprender. Só a mente “inocente” pode aprender; só a mente jovem, fresca, se deleita em aprender, e não a mente, o intelecto pejado de saber, de experiência. A mente religiosa, pois, está sempre aprendendo, e não há fim ao aprender. Aprender não é acumulação de conhecimentos. No conservar e aumentar o saber, deixamos de aprender. Segui isto até o fim.

Quando se observam todas essas coisas, pode-se ficar apercebido de um extraordinário sentimento de isolamento, solidão. Em geral, temos experimentado ocasionalmente esse sentimento de estar completamente só, fechado, sem relação com nenhuma coisa ou pessoa. E ao se perceber isso, sente-se medo; quando existe medo, apresenta-se imediatamente o impulso, a ânsia de fugir-lhe. Segui tudo isso interiormente, porque não estou aqui pronunciando uma conferência; estamos, realmente, jornadeando juntos. E se puderdes fazer essa viagem, saireis daqui com uma mente bem diversa, um diferente intelecto.

Temos de passar por esse sentimento de solidão, mas não o podeis fazer se tendes medo. Essa solidão é, em verdade, criada pela mente, com suas reações autoprotetórias, suas atividades egocêntricas. Se observardes vosso próprio intelecto, vereis como vos estais isolando em tudo o que fazeis e pensais. Tudo isso que se relaciona com “meu nome, minha família, minha posição, minhas qualidades, minhas aptidões, minha propriedade, meu trabalho” — vos está isolando. Assim, tendes a solidão, e não a podeis evitar. Vós tendes de passar por ela de maneira tão real como passais por uma porta. E para passardes por ela, tendes de “viver com ela”. E “viver com a solidão”, “passar pela solidão”, significa alcançar uma coisa muito superior, um estado muito mais profundo, que é o “estar só” — completamente só, sem conhecimento. Com isso não quero dizer que nos privemos do conhecimento mecânico superficial, necessário à existência diária; o intelecto não precisa ser completamente drenado, mas o que quero dizer é que o conhecimento que adquirimos e armazenamos não deve ser usado para nossa própria expansão e segurança psicológica. Com a palavra “solidão” me refiro a um estado não atingível por nenhuma espécie de influência. Já não é um estado de isolamento, porque o isolamento foi compreendido; compreendeu-se todo o processo mecânico do pensar, da experiência, do desafio e reação.

Não sei se já refletistes alguma vez sobre este problema do desafio e reação. O intelecto está sempre reagindo a toda espécie de desafio, consciente ou inconsciente. Toda influência se imprime no intelecto, e o intelecto reage. Tende a bondade de seguir isto, porque, se penetrardes mais profundamente, vereis que não há mais desafio nem reação — mas isso não significa que a mente se acha adormecida. Pelo contrário, está completamente desperta, tão desperta que já não necessita de nenhum desafio e nem há necessidade de nenhuma reação. Esse estado, em que não há na mente desafio ou reação, porque ela compreendeu todo o mecanismo — esse estado é “solidão”. Assim, a mente religiosa compreende tudo isso, passa por tudo isso, não através do tempo, mas pelo imediato percebimento.

O tempo traz compreensão? Tereis compreensão amanhã? Ou só há compreensão no presente ativo, agora? Compreensão é ver uma dada coisa totalmente, imediatamente. Mas essa compreensão é impedida pela avaliação, sob qualquer, forma. Todo verbalizar, condenar, justificar, etc., impede o percebimento. Dizeis: “Precisa-se de tempo para compreender. Preciso de muitos dias para isso”. E durante “estes muitos dias” o problema vai lançando raízes mais profundas na mente, e se torna muito mais difícil erradicado, seja qual por esse problema. A compreensão, pois, está no presente imediato e não em prazos de tempo. Quando percebo uma coisa com toda a clareza, imediatamente, há compreensão. O “imediato” é que importa, e não o adiamento. Se bem percebo o fato de que sou colérico, ciumento, ambicioso, etc., se o percebo sem emitir opinião, avaliação, ou juízo, então o próprio fato começa a operar imediatamente.

Assim, a qualidade da “solidão” é o estado próprio de uma mente de todo desperta. Ela não está pensando em termos de tempo. E isso é verdadeiramente extraordinário, como vereis se o investigardes. A mente religiosa, pois, não é uma mente “evolucionária”; porque à Realidade está fora do tempo. Importa realmente compreender isso, se chegastes até aí em vossa viagem de descobrimento.

Notai que o tempo cronológico e o tempo psicológico são duas coisas diferentes. Nós estamos falando sobre o tempo psicológico, a exigência interior de mais dias, mais tempo para realizar algo — e isso sugere o ideal, o herói, o intervalo entre o que sois e o que deveríeis ser. Dizeis que para transpor esse intervalo, lançar uma ponte sobre ele, necessita-se de tempo; mas tal atitude é uma forma de indolência, porque podereis ver essa coisa imediatamente, se lhe derdes toda a vossa atenção.

À mente religiosa, portanto, não interessa o progresso, o tempo; ela se acha num estado de constante atividade, mas não no sentido de “vir a ser” ou “ser”. Podeis verificar isso agora, embora provavelmente não o desejeis fazer. Porque, se o fizerdes, vereis que a mente religiosa é destrutiva; pois sem destruição não há criação. Há destruição, quando a totalidade da mente aplicou sua atenção ao que é. O perceber o falso como falso, percebê-lo completamente, é a destruição do falso. Não é a ação destrutiva dos comunistas, dos capitalistas — nenhuma dessas infantilidades. A mente religiosa é destrutiva e, por ser destrutiva, é criadora. Criação é destruição.

E não há criação quando não há amor. Para nós, o amor é uma coisa estranha. Vós dividistes o amor em paixão, concupiscência, amor carnal e amor divino, amor da família, amor da pátria, e continuais por aí além a dividi-lo e tomar a dividir. E na divisão, há contradição, conflito e sofrimento.

O amor, para a maioria de nós, é paixão, concupiscência; e neste próprio mecanismo de identificação com outro há contradição, conflito, e o começo do sofrimento. E, para nós, o amor se extingue. O fumo (criado por esse processo) — o ciúme, o ódio, a inveja, a avidez — destrói a chama. Mas onde está o amor, aí está a beleza e a paixão. Deveis ter paixão, mas não traduzais prontamente esta palavra em “paixão sexual”. Por “paixão” entendo a “paixão da intensidade”, essa energia que de pronto percebe as coisas, claramente, ardentemente. Sem paixão, não há austeridade. A austeridade não é mera renúncia, nem o possuir restrito, ou autocontrole, pois tudo isso é sem importância, insignificante. A austeridade vem com o desprendimento, e no desprendimento, há paixão e, por conseguinte, beleza. Não a beleza criada pelo homem; não a beleza artística, embora eu não queira dizer que aí não haja beleza. Mas refiro-me a uma beleza que transcende o pensamento e o sentimento. E esta só pode surgir quando há alta sensibilidade intelectual, bem como corpórea e mental. E não pode haver sensibilidade dessa natureza e qualidade quando não há completo desprendimento, quando o intelecto não se está abandonando inteiramente à totalidade daquilo que a mente percebe. Porque só com esse abandono há paixão.

A mente religiosa, pois, é a mente destrutiva. E é a mente religiosa que é mente criadora, porque o que a interessa é a totalidade da existência. O seu criar não é como a ação criadora do artista, porque a este só interessa um certo segmento da existência e ele procura expressar o que aí sente, assim como o homem mundano procura expressar-se nas atividades de seus negócios — embora o artista se considere superior a qualquer outro. A criação, pois, se verifica quando há compreensão da totalidade da vida, e não de uma única parte dela.

Agora, se o intelecto alcançou este ponto e compreendeu todo o mecanismo da existência, descartando-se de todos os deuses que o homem fabricou, de seus salvadores, seus símbolos, seu céu, seu inferno, então, como há completa solidão, poder-se-á empreender uma jornada de todo diferente. Mas é necessário chegar até aí, antes de se poder negar ou afirmar a existência de Deus. Daí por diante, há o verdadeiro descobrimento, porque o intelecto, a mente destruiu completamente tudo o que conhecia. Só então é possível penetrar no “desconhecido”; só então se apresenta o Incognoscível. Ele não é o Deus das igrejas, dos templos, das mesquitas; não é o Deus de vossos temores e crenças. Existe uma realidade que só pode ser encontrada na compreensão total do mecanismo integral da existência, e não de apenas uma parte dela.

Então a mente, como vereis, se torna sobremodo quieta e tranquila, e o intelecto também. Não sei se já alguma vez notastes o vosso intelecto em funcionamento, se vosso intelecto já alguma vez percebeu a si mesmo em ação! Se estivestes assim atento, sem escolha, negativamente, deveis ver que o intelecto está perenemente “tagarelando”, “falando sozinho” ou sobre alguma coisa, acumulando e armazenando conhecimentos. Está em ação a todas as horas, conscientemente, nos níveis superficiais, e também profundamente, em sonhos, sugestões, comunicações de ideias, etc. Ele está sempre em movimento, mudando, atuando; jamais tranquilo. E é necessário que a mente, o intelecto se mantenha sereno, quieto, sem nenhuma contradição, nenhum conflito. Do contrário, é inevitável a “projeção” da ilusão. Mas, quando a mente e o intelecto estão completamente tranquilos, sem movimento algum — após terem-se apagado todas as formas de visão, influência e ilusão — então, nessa tranquilidade, a totalidade irá mais longe, em sua jornada, para receber aquilo que não é mensurável pelo tempo, o Indenominável, o Eterno, o Imperecível.

Krishnamurti, Paris, 24 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

segunda-feira, 9 de abril de 2018

A percepção total que é livre de hesitação

A percepção total que é livre de hesitação

Desejo apreciar junto convosco a questão da autoridade e da liberdade. E pretendo penetrá-la muito profundamente, pois considero bem importante compreender toda a anatomia da autoridade.

Assim, em primeiro lugar, preciso assinalar que não estou discursando academicamente, superficialmente, verbalmente; mas, se estamos real e seriamente interessados, então, penso eu, pelo simples ato de escutar corretamente, ocorre não só a compreensão, mas também a libertação imediata da autoridade. Por certo, o tempo não liberta a mente de coisa alguma. Só é possível a libertação quando há percepção direta, compreensão completa, sem esforço, sem contradição, sem conflito. Essa compreensão liberta a mente, de pronto, de qualquer problema que a acabrunha. Se seguirmos o problema e a mente for capaz de penetrá-lo de modo completo, por inteiro, ver-nos-emos então livres desse peso.

Não sei se já refletistes com profundeza sobre a questão da autoridade. Se o fizestes, deveis saber que a autoridade destrói a liberdade, impede a criação, gera medo e, de fato, entrava o pensamento. Autoridade implica submissão, imitação, não achais? Existe não apenas a autoridade exterior da polícia, da Lei — a qual até certo ponto é compreensível — mas também a autoridade interior do saber, da experiência, da tradição, da observância de um padrão estabelecido pela sociedade, por um instrutor, determinando como devemos proceder, comportar-nos, etc.

Vamos tratar inteiramente da compreensão da autoridade interior, psicológica; da psique, que estabelece um padrão de autoridade para sua própria segurança.

Já vos perguntastes alguma vez por quê, através das idades, os entes humanos sempre confiaram a outros o estabelecer seus padrões de conduta? Queremos — não é verdade? — que nos digam o que devemos fazer, como devemos portar-nos, o que devemos pensar, como devemos agir em certas circunstâncias. Esta busca de autoridade é constante, porque a maioria de nós teme o erro, o malogro. Vós adorais o êxito, e a autoridade oferece o êxito. Se seguis uma determinada linha de conduta, se vos disciplinais consoante certas ideias, dizem-vos que, no fim, encontrareis a salvação, a perfeição, a liberdade. Para mim, a ideia de que a disciplina, o controle, a repressão, a imitação e o ajustamento podem conduzir à liberdade, é totalmente absurda. Decerto não podemos cercear a mente, moldá-la, pervertê-la e, graças a esse mecanismo, encontrar a liberdade. As duas coisas são incompatíveis, mutuamente se repelem.

Ora, por que é que a mente e o intelecto humano buscam sempre um padrão ao qual ajustar-se? E permiti-me dizer aqui que minha explicação não tem valor nem significado se não estais, cada um de vós, apercebidos de vossa própria inclinação para seguir — seguir uma ideia ou um instrutor. Mas, se a explicação vos está realmente despertando o percebimento do estado de vossa própria mente, então as palavras têm significação. Assim, por que existe esse impulso para seguir? Não resulta ele do desejo de certeza, de segurança? Sem dúvida, o desejo de segurança é o motivo, a razão fundamental dessa ânsia de seguir. E isso subentende não é verdade? — o sentimento de que pelo bom êxito, pelo ajustamento, evitaremos completamente o medo. Mas, existe segurança interior? Ora, a própria busca de segurança é medo, não? Exteriormente, talvez seja necessário um certo grau de segurança — teto, três refeições por dia, roupas, etc.; mas, interiormente, existe segurança? Estais seguro em vossa família, em vossas relações? Não ousais duvidar disso, não é verdade? Achais que sim, pois isso se tornou tradição, costume. Entretanto, no momento em que pondes em dúvida vossas relações com vosso marido, vossa esposa, vosso filho, vossos vizinhos, esse próprio duvidar se torna perigoso.

Todos nós buscamos segurança, nesta ou naquela forma; e, portanto, necessitamos da autoridade. Assim, dizemos que existe Deus e que Ele, quando tudo mais falhar, nos dará a segurança final. Vivemos apegados a certos ideais, esperanças, crenças, que nos garantirão a permanência, neste mundo e no outro. Mas, existe segurança? E eu acho que cada um de nós precisa descobrir, precisa lutar para compreender claramente se há, ou não, tal coisa — segurança.

Exteriormente, pouca segurança existe hoje em dia. As coisas estão mudando com rapidez; mecanicamente, temos novas invenções, bombas atômicas; e, socialmente, temos revoluções externas, principalmente na Ásia, a ameaça de guerra, o comunismo, etc. Mas as ameaças à nossa segurança interior criam em nós uma resistência muito maior. Quando credes em Deus ou numa certa espécie de permanência interior, é quase impossível quebrar tal crença, porque nessa esperança estais firmemente enraizado. Já aderimos, cada um de nós, a uma certa maneira de pensar e, se ela é verdadeira ou falsa, se tem alguma realidade ou racionalidade, isso parece não nos importar; aceitamo-la e a ela nos atemos.

Abrir caminho através de tudo isso, descobrir sua verdade intrínseca, implica uma revolução muito mais importante do que qualquer revolução comunista, socialista ou capitalista. Isso significa o começo da libertação da autoridade, e o descobrimento de que positivamente não existe permanência ou segurança interior. Significa, por conseguinte, descobrir que a mente deve estar a todas as horas num estado de incerteza. E nós tememos a incerteza, não é verdade? Pensamos que, se se visse num estado de incerteza, o intelecto se despedaçaria, se tornaria doente. Infelizmente, existem tantos casos de insanidade mental por causa dessa impossibilidade de encontrar a segurança. Arrancadas de suas amarras, suas crenças, ideais, fantasias, mitos, as pessoas se tornam mentalmente doentes. A mente que está realmente incerta não conhece medo. Só a mente medrosa segue, exige a autoridade. E é possível perceber bem isso e lançar fora, completa e totalmente, a autoridade e o medo?

E que se entende por ver? Ver é uma simples questão de explicação intelectual? As explicações, os raciocínios, a lógica sutil, vos ajudarão a perceber o fato de que a autoridade, a obediência, a aceitação, o conformismo entravam a mente? Considero muito importante esta pergunta. Ver nenhuma relação tem com palavras nem com explicações. Estou certo de que se pode ver qualquer coisa diretamente, independente de persuasão verbal, argumentação ou raciocínio intelectual. Se rejeitais a persuasão, a influência — que são coisas elementares, infantis — que poderá impedir-vos de ver e, portanto, de ser livre imediatamente? Para mim, ver é uma ação de caráter imediato, independente do tempo. E, portanto, a libertação da autoridade não depende do tempo; não é dizer: “Serei livre”. Mas, enquanto a autoridade vos dá prazer, enquanto o mecanismo de seguir vos parece atraente, não estais permitindo que o problema se vos mostre diretamente e, por conseguinte, se torne urgente, de vital importância.

O fato é que a maioria de nós gosta do poder — o poder da mulher sobre o marido ou deste sobre a mulher, o poder que a capacidade dá, o sentimento de se ser talentoso, o poder que dão a austeridade e o controle do corpo. Qualquer forma de poder representa autoridade — seja o poder do ditador, o poder político, o poder religioso, seja o domínio de um indivíduo sobre outro. O poder é extremamente nocivo, e porque não podemos ver isso, simples e diretamente? Com ver, refiro-me a um percebimento total, livre de hesitação: uma “correspondência” total. Que é que impede essa correspondência total?

Isso suscita a questão da autoridade da experiência, do saber, não é verdade? Está visto que, para se ir à Lua, para se construir um foguete, necessita-se de conhecimentos científicos; e à acumulação de saber chamamos experiência. Externamente, necessita-se do saber. Precisamos saber onde moramos, precisamos saber construir, juntar coisas e separar coisas. Esse conhecimento externo é superficial, mecânico, puramente adicional, um contínuo descobrir de coisas e mais coisas. Mas acontece que o saber e a experiência se tornam nossa interna autoridade. Podemos rejeitar a autoridade externa como infantil; podemos deixar de pertencer a determinada nação, grupo ou família, de estar apegados a uma dada sociedade com seus peculiares costumes, códigos, etc.; mas, renunciar às experiências que acumulamos, à autoridade do saber que acumulamos, isso é extremamente difícil.

Não sei se já tendes considerado este problema; mas, se o fizerdes, vereis que a mente que está carregada, pejada de saber e de experiência, não é uma mente “inocente”, uma mente
nova; é uma mente velha, decadente, que nunca será capaz de entrar em contato — livremente, plenamente, totalmente — com uma coisa viva. E no mundo atual, tanto interior como exteriormente, urge que tenhamos uma mente nova, fresca, uma mente jovem, para podermos resolver todos os nossos problemas — não um dado problema específico da ciência, da medicina, da política, etc., mas o problema humano total. A mente velha é uma mente cansada, entravada; mas a mente nova vê prontamente, sem distorção, sem ilusão: é penetrante, precisa, livre das limitações do conhecimento acumulado e da passada experiência.

Afinal, que é essa experiência que nos proporciona um tão forte sentimento de nobreza, de sabedoria, de superioridade? “Experiência”, sem dúvida, é a reação de nosso “fundo mental” (background) a um “desafio”. A reação é condicionada por esse “fundo” e, portanto, cada experiência torna mais forte o “fundo”. Se sois membro de alguma igreja, devoto de determinada seita, tendes experiências e visões de acordo com esse fundo — e essas experiências e visões, por sua vez, reforçam o fundo. Não é verdade isso? E esse condicionamento, essa propaganda religiosa — seja velha de dois mil anos, seja moderna — nos está moldando a mente, influenciando a reação de nosso intelecto. São inegáveis essas influências; elas prevalecem sempre. A influência comunista, socialista, católica, protestante, hinduísta e dúzias e centenas de influências outras invadem-nos a mente a todas as horas, consciente ou inconscientemente, moldando-a, controlando-a. A experiência, pois, não liberta a mente, não a torna jovem, fresca, “inocente”. O que se faz necessário é a destruição total do fundo.

A compreensão, disso não é questão de tempo. Se empreenderdes a tarefa de compreender cada influência separadamente, estareis morto antes de terdes compreendido todas elas. Mas, se compreenderdes plenamente, completamente, uma só influência, destroçareis todas as formas de influência. Todavia, para compreenderdes uma influência deveis examiná-la totalmente, completamente. Limitar-se a dizer que ela é boa ou má, é insuficiente. E para podermos penetrá-la completamente, não devemos ter medo. Penetrar inteiramente esta questão da autoridade é muito perigoso, não achais? Estar livre da autoridade é atrair o perigo, pois ninguém deseja viver na incerteza. Porém, a mente que está certa é uma mente morta; só a mente incerta é nova, fresca.

Para se compreender a autoridade, tanto interior como exterior, não se necessita do tempo. Um dos piores erros, um dos maiores empecilhos, é depender do tempo. Tempo, na realidade, significa adiamento. Significa que estamos gostando da segurança, da imitação, do seguir, e só dizemos isto: “Não me perturbeis. Ainda não estou disposto a ser perturbado”. Não vejo razão para não sermos perturbados; que há de errado em estar perturbado? Na realidade, quando uma pessoa não deseja ser perturbada, está justamente atraindo perturbações. Mas o homem que quer descobrir, não lhe importando se isso será perturbador ou não, esse homem está livre do medo à perturbação. Sei que isso fará sorrir a alguns de vós, mas a questão é muito grave, não é para rir. É fato que nenhum de nós deseja ser perturbado. Mas caímos numa rotina, num estreito canal — intelectual, emocional ou ideológico — e não desejamos ser perturbados. Em nossas relações e tudo mais, só queremos viver vida confortável, não perturbada, respeitável, burguesa. E desejar ser o contrário de burguês, o contrário de respeitável, é a mesma coisa.

Agora, se enquanto escutais estais atentos a vós mesmos, podeis ver que estar livre da autoridade não é uma coisa temível. É como aliviar-se de um pesado fardo. A mente experimenta de imediato uma extraordinária revolução. Para o homem que não busca a segurança em forma nenhuma, não há perturbações; há um contínuo movimento de compreensão. Se isso não se está passando convosco, neste caso não estais escutando, não estais vendo; estai-vos unicamente comprazendo em aceitar ou em rejeitar um certo conjunto de explicações. Assim, seria muito interessante descobrirdes por vós mesmo qual é vossa verdadeira reação.

PERGUNTA: A mente traz em si mesma os elementos de sua pró­pria compreensão?
KRISHNAMURTI: Acho que sim; não achais também? Que é que impede a compreensão? Os obstáculos não são criados pela própria mente? Por conseguinte tanto a compreensão como as próprias barreiras são elementos mentais.

Vede, senhor, para se viver numa base de incerteza, sem se tornar mentalmente doente, requer-se grande dose de compreensão. Não achais que uma das barreiras é o insistente desejo de segurança interior? Exteriormente, vejo que não existe segurança; assim, a mente cria, interiormente, a sua própria segurança, numa crença, num deus, numa ideia. A mente, portanto, cria sua própria escravidão, mas tem, também, os elementos de sua própria libertação.

PERGUNTA: Por que não pode ser perturbado um homem livre?

KRISHNAMURTI: É correta esta pergunta? Como nada sabeis acerca do homem livre, vossa pergunta se reduz a simples especulação; não tem — perdoai-me dizê-lo — significação nem para mim nem para vós. Mas, se inverterdes a pergunta, formulando-a assim: “Por que sou perturbado?” — então ela tem validade e pode ter resposta correta. Por que é perturbada uma pessoa — se meu marido me repudia, se me morre um ente querido, se experimento um fracasso, se sinto que não estou tendo êxito na vida? Se realmente investigásseis isto até o fim, podereis ver toda a sua essência.

PERGUNTA: A crença em Deus se baseia sempre no medo?

KRISHNAMURTI: Por que credes em Deus? Qual a necessidade? Interessa-vos a crença em Deus quando sois muito feliz ou só quando se vos apresentam tribulações? Vós credes, porque fostes condicionado para crer? Como bem sabemos, há dois mil anos que nos dizem que existe Deus; e no mundo comunista estão condicionando a mente para não crer em Deus. É a mesma coisa; tanto num como noutro caso a mente está sendo influenciada. A palavra “Deus” não é Deus; e o descobrirdes verdadeiramente, por vós mesmo, se tal coisa — Deus — existe, é muito mais significativo do que vos apegardes a uma crença ou descrença. E o descobrir por si mesmo requer enorme energia — energia para libertar-se de todas as crenças; porém isto não importa um estado de ateísmo ou de dúvida. Mas a crença é uma coisa muito confortante, e poucos estão dispostos a despedaçar-se interiormente. A crença não vos conduz a Deus. Nenhum templo, nem igreja, nem dogma, nem ritual pode conduzir-vos à Realidade. Essa Realidade existe; mas para descobri-la precisais de uma mente imensurável. A mente pequena, limitada, só pode encontrar os deuses pequeninos e limitados que ela mesma cria. Portanto, devemos estar prontos a perder toda a nossa respeitabilidade, todas as nossas crenças, para podermos descobrir o que é real.

Acho que não podeis continuar escutando. Se estivestes escutando indolentemente, ouvindo puramente as palavras, neste caso, sem dú­vida, poderíeis continuar ouvindo por mais algumas horas. Mas, se escutastes corretamente, atentamente, com o propósito de aprofundar, então dez minutos bastariam, porque neste espaço poderíeis destroçar as barreiras que a mente criou para si própria e descobrir o que é Verdade.

Krishnamurti, Paris, 7 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

Para ver o real, o pensar e a reação devem cessar

Para ver o real, o pensar e a reação devem cessar

[...] Ora, quando escutamos — e isso é uma verdadeira arte — é necessária uma certa tranquilidade do intelecto. Como acontece com a maioria de nós, o intelecto está incessantemente ativo, sempre a reagir ao desafio de uma palavra, ideia ou imagem; e esse constante mecanismo de reação e desafio não produz compreensão. O que produz compreensão é estar com o intelecto muito tranquilo. O intelecto, afinal, é o instrumento que pensa, que reage; é o reservatório da memória, resultado do tempo e da experiência; e a compreensão é impossível se esse instrumento está sempre agitado, reagindo, comparando o que se diz com o que antes acumulou. Escutar, se posso dizê-lo, não é mecanismo de concordar, de condenar, interpretar, mas, sim, de olhar cada fato totalmente, globalmente. Para isso, o intelecto deve estar quieto, porém muito vivo, capaz de seguir (o que se diz) correta e racionalmente, não sentimental ou emocionalmente. Só então é possível considerar os problemas da existência humana como um mecanismo total e, não, fragmentariamente.

Como quase todos sabemos, os políticos de todo o mundo, na atualidade, são infelizmente os senhores de nossos destinos. Nossa própria vida, talvez, depende de uns poucos políticos — franceses, ingleses, russos, americanos ou hindus; e isto é muito triste. Mas é um fato. E ao político só interessam as realidades imediatas — seu país, sua posição, seu programa de ação, seus ideais nacionalistas. E, por conseguinte, existem os problemas imediatos da guerra, do conflito entre o Oriente e o Ocidente, da luta do comunismo contra o capitalismo, da oposição do socialismo a qualquer outra forma de autocracia; e, assim, o problema imediato é um problema de guerra e de paz, e de como manejarem as nossas vidas de modo que não sejamos esmagados por esse descomunal processo histórico.

Mas parece-me que seria muito lamentável nos preocuparmos unicamente com a realidade imediata — a posição da França na Argélia, o que está para suceder em Berlim, se irá haver guerra e como sobreviveremos a ela. São estes os problemas que nos estão sendo impostos pela imprensa e pela propaganda; mas acho muito mais importante considerarmos o que irá suceder ao intelecto humano, à mente humana. Se cuidamos unicamente dos acontecimentos atuais e não do desenvolvimento total da mente e do intelecto humanos, nossos problemas só haverão de crescer e multiplicar-se.

Pode-se ver — não achais? — que nossa mente, nosso intelecto se tornou mecânico. Somos influenciados em todos os sentidos. Tudo o que lemos deixa-nos sua impressão e toda propaganda sua marca; o pensamento é sempre convencional e, assim, o intelecto e a mente se tornaram mecânicos, tal qual uma máquina. Exercemos mecanicamente nossas ocupações, mecânicas são nossas mútuas relações, e nossos valores meramente tradicionais. Os computadores eletrônicos são muito semelhantes à mente humana, só que nós somos um pouco mais engenhosos — pois somos seus criadores; mas eles funcionam exatamente como nós funcionamos, por meio de reação, repetição, memória. E parece que só desejamos saber como fazer esse mecanismo radicado no hábito e na tradição funcionar mais suavemente, sem perturbações; e isso, talvez, virá a ser a extinção da vida humana. Tudo isso implica — não achais? — não, liberdade, porém busca de segurança. Os ricos exigem segurança; e os pobres da Ásia, que mal conseguem uma refeição diária, esses também desejam segurança. E a reação da mente humana, diante de tanta desdita, é puramente mecânica, “habitual”, indiferente. Por conseguinte, o problema urgente é este: Como libertar o intelecto e a mente? Porque, se não há liberdade, não pode haver ação criadora. Temos invenções mecânicas, viagens à Lua, descobrimento de novos meios de locomoção, etc.; mas isso não é criação, é invenção. Só há criação quando há liberdade. A liberdade não é uma simples palavra; a palavra é bem diferente do estado real. Tampouco a liberdade não pode ser convertida em ideal, porque todo ideal não passa de simples adiamento. Assim, o que desejo examinar durante estas reuniões é se há possibilidade de libertar a mente e o intelecto. Dizer apenas que é ou que não é possível, é ocioso; mas o que podemos fazer é descobrir, nós mesmos, diretamente, pelo experimentar, pelo autoconhecimento, pela investigação, pela busca intensa. E isso exige capacidade de raciocinar, de sentir, para quebrarmos a tradição e destroçarmos todas as muralhas que erguemos para nossa segurança. Se não estais dispostos a isso, da primeira à última destas nossas palestras, penso então que estais perdendo tempo em vir aqui. Os problemas que se nos apresentam são muito graves; são os problemas do medo, da morte, da ambição, da autoridade, da meditação, etc. Todo problema deve ser atendido realisticamente — não emocional, intelectual ou sentimentalmente. E isso requer um pensar preciso, uma grande energia, a fim de podermos levar inteiramente a cabo cada investigação e descobrirmos a essência das coisas. Isso me parece indispensável.

Se observamos, não apenas os fatos mundanos externos, mas também o que está sucedendo interiormente, em nós mesmos, descobrimos — não é verdade? — que somos escravos de certas ideias, escravos da autoridade. Há séculos que somos moldados pela propaganda para sermos cristãos, budistas, comunistas ou o que mais seja. Mas, certamente, para descobrirmos a verdade, não devemos pertencer a religião alguma. É muito difícil não nos deixarmos comprometer com um dado padrão de ação ou de pensamento. Não sei se já alguma vez tentastes não pertencer a coisa alguma, rejeitar completamente a tradicional aceitação de Deus — o que não significa tornar-se ateísta, coisa tão estúpida quanto crer, porém rejeitar a influência da Igreja, com toda a sua bimilenar propaganda.

Tampouco é fácil negardes que sois francês, hindu, russo ou americano; isso talvez seja até mais difícil. É relativamente fácil rejeitarmos uma coisa quando sabemos aonde nos levará a rejeição; mas isso é meramente trocar de prisão. Mas se rejeitais todas as prisões, e não sabeis aonde a rejeição vos levará, então vos vedes só. E parece-me absolutamente essencial que nos vejamos completamente sós, livres de influências; porque só então seremos capazes de descobrir por nós mesmos o que é verdadeiro — não só neste mundo em que decorre nossa existência diária, mas também além dos valores mundanos, além do pensamento e do sentimento, além de todas as medidas. Só então saberemos se existe um realidade transcendente ao espaço e ao tempo; e este descobrimento é criação. Mas, para se descobrir o que é verdadeiro, necessita-se desse sentimento de solidão, de liberdade. Não podemos viajar com rapidez se estamos ligados a alguma coisa — nossa pátria, nossas tradições, nossas habituais tendências de pensamento. Isso é o mesmo que estar preso a uma estaca.

Assim, se desejais descobrir o que é verdadeiro, deveis quebrar todos os elos que vos prendem, para investigardes não só o exterior, vossas relações com coisas e pessoas, mas também o interior, i.e., conhecer a vós mesmo — tanto superficialmente, na consciência desperta, como no inconsciente, nos ocultos recessos do intelecto e da mente. Requer isso observação constante; e se observardes dessa maneira, vereis que não existe uma separação real entre o exterior e o interior; porque o pensamento, como a maré, tanto flui para fora como para dentro. Tudo constitui um só processo de autoconhecimento. Não podeis rejeitar o exterior, porquanto não sois uma entidade separada do mundo. O problema do mundo vos concerne, e o “exterior” e o “ interior” são as duas faces da mesma moeda. Os eremitas, os monges, e os chamados religiosos que renunciam ao mundo estão apenas, com todas as suas disciplinas e superstições, fugindo para suas próprias ilusões.

Pode-se ver que exteriormente não somos livres. Em nossos empregos, nossas religiões, nossas pátrias, em nossas relações com esposa, marido, filhos, em nossas ideias, crenças e atividades políticas, não somos livres, Interiormente, também, não somos livres, porque não conhecemos nossos “motivos”, nossos impulsos, compulsões, exigências inconscientes. Assim, não há liberdade, nem interior nem exteriormente, e este é que é o fato. Mas, em primeiro lugar, cumpre-nos perceber esse fato, pois em geral recusamo-nos a percebê-lo; sofismamos a respeito dele, encobrimo-lo com palavras, com ideias, etc. O fato é que, tanto na esfera psicológica, como na exterior, desejamos segurança. Exteriormente, desejamos estar seguros em nosso emprego, nossa posição, nosso prestígio, nossas relações; e quando um reduto é destruído, passamos a outro.

Assim, reconhecendo as condições extremamente complexas em que o intelecto e a mente funcionam, que possibilidade temos de romper essas muralhas? Espero estejais vendo o impasse a que chegamos. A questão é esta: Tratamos alguma vez de enfrentar realmente o fato? O fato é que o intelecto e a mente buscam a segurança numa dada forma, e quando existe essa ânsia de segurança, existe medo. Nunca encaramos realmente esse fato; ou dizemos que ele é inevitável ou, ainda, perguntamos como nos libertarmos do temor. Já se pudermos encarar o fato, sem tentar fugir-lhe, interpretá-lo ou transformá-lo, então o fato atua por si mesmo.

Não sei se, psicologicamente, chegastes até este ponto, experimentastes até este ponto, pois me parece que a maioria de nós não percebe o quanto a nossa mente, o nosso intelecto, se mecanizou; e não perguntamos a nós mesmos se é possível encarar esse fato completamente, com intensidade. Desejo fique bem claro que não estou procurando convencer-vos de coisa alguma; isso seria muito infantil. Não estamos aqui fazendo propaganda — deixemos isso aos políticos, às Igrejas e a todos aqueles que “oferecem” coisas. Não estamos a oferecer-vos novas ideias, porquanto as ideias nada significam; podemos entreter-nos com elas intelectualmente, porém elas não nos levam a parte alguma. O que é significativo, o que tem vitalidade, é enfrentar um fato; e o fato é que a mente, todo o nosso ser está sendo mecanizado há séculos. Todo pensamento é mecânico; e para compreendermos esse fato e transcendê-lo, precisamos primeiramente vê-lo.

Pois bem; como podemos entrar em contato, emocionalmente, com um fato? Intelectualmente eu posso dizer que tenho o hábito de beber e que é muito nocivo beber — física, emocional e psicologicamente — e, no entanto, continuar a beber. Mas entrar em contato com o fato emocionalmente é coisa bem diferente. Pois o contato emocional com o fato tem ação própria. Sabeis como — quando guiais um carro por muito tempo — começais a cochilar e, então, dizeis: “Preciso despertar” — mas continuais a guiar. Depois, ao passardes perigosamente próximo a outro carro, dá-se então, repentinamente, um contato emocional direto e despertais imediatamente, e levais o carro para a margem da estrada, a fim de descansardes um pouco. Já alguma vez vistes um fato repentinamente, da mesma maneira, entrando em contato com ele totalmente, completamente? Já apreciastes realmente uma flor? Duvido, porque nunca olhamos realmente para uma flor; o que fazemos é classificá-la imediatamente, dar-lhe um nome, chamá-la “rosa”, cheirá-la, dizer “como é bela!” e pô-la de lado, como coisa já conhecida. A denominação, a classificação, a opinião, o julgamento, a escolha — tudo isso vos impede de efetivamente olhá-la.

Da mesma maneira, para entrarmos emocionalmente em contato com um fato não deve haver denominação, nem classificação, nem julgamento; todo pensar e toda reação devem cessar. Só então podeis olhar. Experimentai, de vez em quando, olhar para uma flor, uma criança, uma estrela, uma árvore ou o que quer que seja, livre de todo o mecanismo do pensar, pois, se o fizerdes, vereis muito mais. Não haverá então nenhuma cortina de palavras entre vós e o fato e, portanto, estareis em contato direto com ele. Há séculos que somos educados para avaliar, condenar, aprovar, classificar; e tornar-se apercebido de todo esse mecanismo é começar a ver o fato.

Atualmente, a totalidade de nossa vida está confinada no tempo e no espaço, e os problemas imediatos nos absorvem. Nossos empregos, nossas relações, os problemas do ciúme, do medo, da morte, da velhice, etc. tudo isso nos enche a vida. A mente, o intelecto, é capaz de libertar-se de todos esses problemas? Digo que sim, pois já o experimentei, já desci até suas últimas profundezas e deles me libertei. Mas de modo nenhum deveis aceitar o que vos diz este orador, porquanto a simples aceitação nenhum valor tem. A única coisa valiosa é empreenderdes também a jornada; mas, para a empreenderdes, necessitais de liberdade desde o começo, necessitais do impulso para descobrir — não, aceitar, não, duvidar, mas, sim, descobrir. Vereis, então, ao aprofundardes a questão, que a mente pode ser livre; e só essa mente livre pode descobrir o que é verdadeiro. [...]

PERGUNTA: Como podemos entrar em contato com um fato emocionalmente?

KRISHNAMURTI: Para se entrar em direto contato com uma coisa, requer-se que dela nos abeiremos de maneira total, isto é, não apenas intelectual, emocional ou sentimentalmente. Requer-se compreensão total.

PERGUNTA: Não devemos manter-nos atentos ao mecanismo dual, sempre em ação dentro em nós, e isso não é autoconhecimento?

KRISHNAMURTI: Foram empregadas as palavras “atento”, “dualidade” e “autoconhecimento”. Consideremos estas três palavras, uma a uma, pois se não as compreendermos, não haverá possibilidade de comunicação entre nós.

Ora, que significa estar “atento”? Prestai atenção, por favor, pois não desejo parecer-vos pedante; só quero certificar-me de que nós dois compreendemos as palavras que estamos empregando. Para vós elas podem ter um significado e para mim outro. Para mim, quando prestamos atenção total, não há concentração, nem exclusão, nem nada. Sabeis como um colegial que deseja olhar pela janela é forçado a olhar para seu livro; mas isso não é atenção. Atenção é ver o que se está passando do lado de fora e também o que se acha à nossa frente. Observar sem exclusão de nada é muito difícil.

E, agora, que entendemos por “mecanismo dual”? Sabemos que existe um mecanismo dual, o bom e o mau, o ódio e o amor, etc.; e manter-se atento para essas coisas é muito difícil, não achais? E por que criamos esse mecanismo dual? Ele existe realmente ou é uma invenção do intelecto, a fim de fugir ao fato? Sou violento, digamos, ou ciumento, e isso me incomoda. Não gosto desse estado; digo, portanto, que não devo ser ciumento, violento — e isso é uma fuga ao fato, não achais? O ideal é uma invenção do intelecto, que quer fugir ao que é; por isso, existe dualidade. Mas, se enfrento integralmente o fato de que sou ciumento, então já não há dualidade. Enfrentar o fato significa penetrar completamente o problema da violência e do ciúme; e, então, ou descubro que isso me agrada (ser violento, ciumento) e neste caso o conflito continua necessariamente, ou, ainda, percebo tudo o que o problema implica e fico livre do conflito.

E, agora, que entendemos por “autoconhecimento”? Que significa “conhecer a si mesmo”? Conheceis a vós mesmo? O “eu” é uma coisa estática, ou uma coisa em constante mutação? Posso conhecer-me? Conheço minha mulher, meu marido, meu filho, ou conheço apenas o retrato feito pela minha mente? É bem de ver que não posso conhecer uma coisa viva, não posso reduzir uma coisa viva a uma fórmula; o que posso fazer é, tão somente, segui-la, aonde quer que leve; e se a sigo, nunca poderei dizer que a conheço. Assim, o conhecimento do “eu” significa seguir o “eu”, seguir todos os pensamentos, sentimentos, motivos, sem nunca dizer “conheço”. Só se pode conhecer o que é estático, morto.

Estais vendo, pois, a dificuldade relativa às três palavras contidas nesta pergunta: “atenção”, “dualidade” e “autoconhecimento”. Se puderdes compreender todas estas palavras e passar adiante, transcendê-las, conhecereis então o inteiro significado de enfrentar um fato.

PERGUNTA: Existe algum meio de aquietar a mente?

KRISHNAMURTI: Em primeiro lugar, ao formulardes esta pergunta, estais percebendo que vossa mente está agitada? Estais apercebido de que vossa mente nunca está quieta, que está constantemente a “tagarelar”? Eis um fato. A mente fala incessantemente, seja a respeito de alguma coisa, seja para si própria; está constantemente ativa. Por que fazeis esta pergunta? Pensai até o fim junto comigo. Se a fazeis porque estais parcialmente apercebido da “tagarelice” e desejais livrar-vos dela, neste caso podeis também tomar uma droga, uma pílula que faça a mente dormir. Mas, se estais investigando e desejais realmente descobrir porque tagarela a mente, o problema se torna então muito diferente. No primeiro caso trata-se de uma fuga, no segundo de seguir a tagarelice até o fim.

Pois bem; por que tagarela a mente? Com “tagarelar” queremos dizer que ela está sempre ocupada com alguma coisa — o rádio, seus problemas, seu emprego, suas visões, suas emoções, seu mitos. Ora, por que está ela ocupada e que aconteceria se não estivesse ocupada? Já tentastes alguma vez não estar ocupado? Se já o fizestes, tereis visto que no mesmo instante em que o intelecto deixa de estar ocupado, manifesta-se o medo. Porque isso significa “estar só”. Se vos vedes sem ocupação alguma, esta é uma experiência muito dolorosa, não? Já estivestes só, alguma vez? Duvido. Podeis passear a sós, sentar-vos sozinho num ônibus ou em vosso quarto, mas vossa mente está sempre ocupada, vossos pensamentos sempre a fazer-vos companhia. O cessar da ocupação faz-vos descobrir que estais completamente só, isolado, e isso gera medo; eis por que a mente prossegue tagarelando, tagarelando...

Krishnamurti, Paris, 5 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill