O amor deve ser igualmente para
todos.
(...)
O amor não tem incentivos. Posto
que implicitamente seja resultante do motivo, a ação não possui motivo, se for
nascida do amor.
(...)
A verdadeira afeição, o padrão
reto é o amor que é desapegado, pelo fato de ter apego a todas as coisas.
O verdadeiro amor é semelhante à
flor, que dá perfume a todo transeunte e não cuida de quem recebe a sua
deliciosa fragrância.
(...)
O verdadeiro desapego consiste em
discernir o essencial do que não o é, em reter o essencial. Esta seleção se
opõe à ideia que se tem vulgarmente do desapego: crê-se que ele consiste no
eliminar o que é ilusório. Este eliminar é um ato negativo. Se em vez de
eliminar o que não é essencial, esforçar-se em reter o que é essencial, a
pessoa desapega-se de uma forma positiva.
De fato, o descobrimento do que é ilusório, pode levar à conclusão de que tudo não passa de ilusão. Esta conclusão não é exata. Os objetos são reais como são reais as emoções e os pensamentos. É o seu conjunto que constitui um mundo irreal, onde, apesar de tudo, nos é preciso descobrir a verdade.
(...)
Onde o "eu" não existe,
já não há lugar para o medo, e então é quando o homem vem conhecer o desapego.
O temor que o homem tem de sofrer
e de experimentar desilusões não o conduz senão à indiferença. Porém, a
indiferença é um falso desapego. O desapego verdadeiro é o amor em si mesmo,
sem objeto ou sujeito.
O homem liberto das suas
limitações, do medo, do "eu" com todas as qualidades, atinge afinal a
realidade.
(...)
Este estado sem medo é possível,
somente nele pode haver êxtase, realidade, Deus. A não ser que uma pessoa seja
completa, integralmente livre do medo, os problemas apenas se acrescentam e se
tornam sufocantes, sem nenhum sentido ou razão alguma.
É isto o que quero dizer: que só
na liberdade incondicionada há verdade, e sermos completamente nós mesmos,
integrais em todo o nosso ser, é estarmos é incondicionados, o que
revela a realidade.
(...)
Assim, o que é — sermos nós
mesmos? E podemos ser nós mesmos em toda ocasião? Somente o podemos ser em toda
ocasião, quando estamos fazendo alguma coisa que realmente amamos e se amamos
completamente. Quando vocês fazem algo que não podem deixar de fazer com todo o
ser, estão sendo vocês mesmos. Ou quando amam a outrem completamente, neste
estado são vocês mesmos, sem nenhum medo, sem nenhum obstáculo. Nestes dois
estados somos completamente nós mesmos.
Assim, temos de descobrir o que
fazemos com o amor. Estou usando a palavra "amor" deliberadamente. O
que é que vocês fazem com o amor, com todo o ser de vocês? Não o sabem. Não
sabemos o que é sensato e o que é insensato fazer, e a descoberta do que é
sensato e do que é insensato constitui todo o processo de viver. Quando vocês
fazem algo com todo o ser, sem que haja sentimento de frustração ou medo,
nenhuma limitação, neste estado de ação são vocês mesmos, independente de
qualquer condição externa. Digo, se puderem chegar a este estado, quando são
vocês mesmos na ação, então descobrirão o êxtase da realidade, Deus.
Vocês podem se conhecer, somente
quando amarem completamente. Isto, novamente, constitui todo o processo da
vida, não para ser colhido em alguns momentos, de algumas palavras minhas. Não
podem ser vocês mesmos, quando o amor é dependente. Não há amor, quando há
apenas a própria satisfação, ainda que seja mútua. Não há amor, quando há
restrição; não há amor, quando se trata apenas de um meio para atingir a um fim;
quando há apenas sensação. Não podem ser vocês mesmos, quando o amor está sob o
jugo do medo; há então medo, não amor, medo que está se expressando por vários
modos, embora vocês possam disfarçá-lo chamando-lhe de amor. O medo não lhes
permite ser vocês mesmos.
(...)
Não pode haver amor, inteligência
criadora, enquanto o medo existir sob qualquer forma. Se estiverem plenamente
percebidos do medo com suas múltiplas atividades e ilusões, esse mesmo
percebimento se tonará a chama da inteligência.
Quando a mente discerne por si
mesma os obstáculos que impedem o pensamento claro, nenhum impulso artificial é
necessário para o despertar da inteligência.
A mente que busca um método não
está percebida de si própria, de sua ignorância, de seus temores. Espera apenas
que talvez um método, um sistema de disciplina dissipe os seus temores e
tristezas. A disciplina pode somente criar um hábito e, assim, embota a mente.
Estar percebido sem escolha, estar consciente das múltiplas atividades da
mente, de sua riqueza, de suas sutilezas, de suas decepções e de suas ilusões,
é ser inteligente. Este mesmo percebimento dissipa a ignorância, o medo.
Se fizerem um esforço para estarem
percebidos, esse esforço criará um hábito, impelido pela esperança de escapar á
tristeza. Onde há profundo percebimento sem escolha, há a própria revelação, a
única que pode impedir a mente de criar ilusões para si mesma e, por essa forma
de se adormecer. Se houver constante vigilância da mente, sem a dualidade do observador
e do observado, se a mente puder conhecer a si mesma tal qual é, sem que negue,
afirme, aceite ou se resigne, então dessa mesma realidade advirá o amor, a
inteligência criadora.
(...)
Uma ação nascida sem medo,
portanto nascida da inteligência, é visceralmente verdadeira. Se a ação de
vocês for baseada no medo, na autoridade, tal ação tem de criar o caos e a
confusão. No libertar a ação de todo o medo, há amor, inteligência.
(...)
A tendência das pessoas para
cultuarem a outrem, seja esse outrem quem for, destrói a inteligência; porém, o
compreender e amar a outrem não está incluído no culto que nasce de um medo
sutil. Só a mente limitada julga a outrem e uma tal mente não pode compreender
a ardente qualidade da vida.
(...)
Como cristãos, que são, vocês
professam amar o próximo: é este o ideal.
Ora, o que é que acontece na
realidade? O amor não existe, porém, em lugar dele temos o medo, o domínio, a
crueldade, todos os horrores e coisas absurdas do nacionalismo e da guerra. Na
teoria, é uma coisa e, na prática, dá-se, exatamente, o oposto. Se, porém, pelo
momento, deixarem de lado os seus ideais, se realmente fizerem frente à
atualidade; se, ao invés de viverem num romântico futuro, experimentarem sem
ilusões, àquilo que, de contínuo, está tendo lugar, consagrando-lhe,
integralmente, a sua mente e coração, então agirão e conhecerão o movimento da
realidade.
(...)
Presentemente, vocês são de tal
maneira parte do processo intelectual e mecânico de viver que não podem
compreender a sua artificialidade; ou recusam compreende-la, porque estando
percebidos, isso significaria ação. Daí, a pobreza do próprio ser de vocês. Quando
começarem a se perceber do processo do pensamento e se tornarem conscientes de
que ele está criando, para si mesmo, a sua própria vacuidade e insucesso, esse
mesmo percebimento dissipará o medo.
Haverá, então, amor, plenitude de
vida.
(...)
Amem completamente, inteiramente,
sem pensar no eu, e, por esse meio, libertem-se verdadeiramente do medo.
(...)
Na chama do amor todo medo é
consumido.
Krishnamurti - O medo - Coletânea feita pela ICK - 1946