A raiva tem essa qualidade
peculiar de isolamento; como a tristeza, ela isola o indivíduo, e durante esse
tempo, pelo menos, todo o relacionamento acaba. A raiva tem a força e a
vitalidade temporária do isolado. Há um estranho desespero na raiva; pois isolamento
é desespero. A raiva da decepção, do ciúme, da ânsia de ferir, dá um alívio
violento cujo prazer é a auto-justificação. Nós censuramos os outros e essa
mesma censura é a justificação de nós mesmos. Sem algum tipo de postura, seja
de auto-virtuosismo ou auto-degradação, o que somos? Usamos de todos os meios
para nos apoiar; e a raiva, assim como o ódio, é um dos modos mais fáceis. A raiva
simples, um acesso repentino que é rapidamente esquecido, é uma coisa; mas a
raiva que é deliberadamente construída, que foi fermentada e que busca machucar
e destruir, é algo inteiramente diferente. A raiva simples pode ter uma causa
psicológica passível de ser percebida e remediada; mas a raiva como resultado
inerente a uma causa psicológica é muito sutil e difícil de lidar. A maioria de
nós não se importa de sentir raiva, nós encontramos uma desculpa para isso. Por
que não devemos ficar zangados quando há maus-tratos a terceiros ou a nós
mesmos? Desse modo, nos tornamos justificadamente zangados. Nunca dizemos
apenas que estamos zangados e paramos aí; entramos em elaboradas explicações
para sua causa. Jamais dizemos que estamos com ciúme ou amargos, mas o
justificamos ou explicamos. Perguntamos como pode existir amor sem ciúme, ou
dizemos que as ações de outra pessoa nos fizeram amargos e assim por diante.
É a explicação, a verbalização,
silenciosa ou falada, que sustenta a raiva, que dá a ela escopo e profundidade.
A explicação, silenciosa ou falada, age como um escudo contra a descoberta de nós
mesmos como somos. Queremos ser elogiados ou adulados, esperamos algo; e quando
essas coisas não acontecem, ficamos decepcionados, tornamo-nos amargos e
ciumentos. Então,violenta ou delicadamente, culpamos outras pessoas; dizemos
que o outro é responsável por nossa amargura. Você é de enorme importância,
pois eu dependo de você para minha felicidade, para minha posição e prestígio. Eu
me realizo através de você, então você é importante par mim; eu devo vigiá-lo,
devo possuí-lo. Através de você, fujo de mim; e quando sou lançado de volta a
mim mesmo, tendo medo de meu próprio estado, fico irritado. A raiva assume
muitas formas: decepção, ressentimento, amargura, ciúme, etc.
O armazenamento da raiva, que é
ressentimento, exige o antídoto do perdão; mas o armazenamento da raiva é muito
mais relevante do que o perdão. O perdão é desnecessário quando não existe a
acumulação da raiva. O perdão é essencial se existe ressentimento; mas estar
livre da adulação e do sentimento de mágoa, sem a dureza da indiferença, leva à
misericórdia, à caridade. Não é possível livrar-se da raiva pela ação da
vontade, pois a vontade é parte da violência. A vontade é o resultado do
desejo, o anseio de ser; e o desejo, em sua própria natureza, é agressivo, dominador.
Reprimir a raiva pela ação vigorosa da vontade é transferir a raiva para um
nível diferente, dando a ela outro nome; mas é ainda parte da violência. Para estar
livre da violência, e não se trata do cultivo da não-violência, deve haver o
entendimento do desejo. Não existe um substituto espiritual para o desejo; ele não
pode ser reprimido ou sublimado. Deve ser dada atenção ao desejo, silenciosa e
desprovida de escolha; e essa atenção passiva é a experienciação direta do
desejo sem que o experienciador lhe dê um nome.
Krishnamurti – Comentários sobre
o viver