A Incompreensão Familiar
O Espelho Cru do Condicionamento
Desde cedo, somos lançados no
seio de uma estrutura que chamamos de família. Ali se entrelaçam afetos,
necessidades, seguranças ilusórias e um mar subterrâneo de tensões não ditas. Quando
amadurece a observação passiva, facilmente se faz perceptível o fato de que, a
família é, ao mesmo tempo, abrigo e prisão; lugar de ternura, mas também o
primeiro laboratório de condicionamentos. E, muitas vezes, é no centro desse
microcosmo que experimentamos a dor lancinante da incompreensão.
A dor de não ser visto, de não
ser reconhecido, de ser reduzido a papéis pré-definidos. O filho que deve
corresponder ao desejo do pai, a filha que deve reproduzir o ideal materno, o
jovem que não encontra espaço para sua estranheza, para sua sensibilidade. A
incompreensão familiar, longe de ser um acidente, é quase uma regra.
Krishnamurti dizia: “Na
relação, o que buscamos é segurança; mas a segurança mata a liberdade de ver e
compreender o outro.” E dentro da família, a busca de segurança é
avassaladora. Pais esperam continuidade de si nos filhos, filhos esperam
aprovação dos pais, todos exigem reciprocidade segundo moldes inconscientes.
Essa exigência sufoca a escuta.
A Família como Lugar de Condicionamento
O núcleo familiar é onde começa o
círculo vicioso do personagem que encarnamos. É ali que aprendemos a obedecer,
a comparar, a competir, a ser “alguém”. A incompreensão não é apenas falta de
diálogo, mas resultado direto desse condicionamento. Cada membro da família
está aprisionado em sua própria imagem, e as imagens não dialogam.
Na família, aprendemos a não ver
as pessoas, mas sim as imagens que que construímos delas. Essa dinâmica se
aplica a todo o campo familiar. Pais e filhos raramente se encontram em contato
vivo, sem a barreira das expectativas.
Assim, a incompreensão não é uma
falha moral, mas o efeito natural da vida vivida através de imagens. Cada um se
relaciona não com o outro, mas com projeções.
A Dor de Não Ser Compreendido
Há uma dor particular quando a
incompreensão vem dos mais próximos. Um estranho que não nos compreende é
facilmente ignorado. Mas a família carrega o peso do sangue, da memória, da
intimidade. Ser incompreendido ali é como ser negado em sua origem.
O paradoxo é que, a dor da
incompreensão, pode ser um portal de lucidez, porque quando não somos
compreendido, começamos a conhecer a solidão humana e, se não cedemos ao
impulso emotivo escapista, se nos sentamos com ela e com a quentura de um chá,
começamos a descobrir uma liberdade integrativa. Quando a dor da incompreensão
familiar, é vista sem fuga, ela escancara a verdade nua: não somos
compreendidos porque cada qual vive em sua prisão de desejos. E essa percepção,
é libertadora.
A Ilusão da União
Muitos carregam a fantasia de que
a família é sinônimo de união e comunhão. Mas muito do que encontramos nela é
dependência e posse, os quais, são confundidos por amor e união. A
incompreensão nasce justamente dessa ilusão. Esperamos que nossos familiares
nos validem, nos sustentem, nos compreendam integralmente. Mas esse “amor”
esperado é uma troca de imagens e expectativas, não uma verdadeira escuta.
A verdadeira união, só ocorre
quando há liberdade mútua — quando cada um não exige do outro segurança
emocional. Mas isso quase nunca ocorre dentro do círculo familiar, porque a
família é sustentada pelo instinto de continuidade e de apego.
O Choque do Despertar no
Contexto Familiar
Para aquele que, após uma quase
que enlouquecedora crise iniciática, começa a despertar, a incompreensão
familiar pode se tornar um campo de intensificação da crise. O buscador que
percebe a necessidade de questionar, de romper condicionamentos, frequentemente
se vê cercado por olhares de reprovação.
Quando o indivíduo, começa a observar
e a questionar, não raro, é rotulado de rebelde, ingrato ou estranho. Com esse
questionamento, inicialmente imaturo, raivoso e barulhento, o choque, é
inevitável: o despertar de um, dentro da família, desnuda a inconsciência dos
outros. E isso gera tensão, isolamento, afastamento. O despertar não é
socialmente confortável, e menos ainda no núcleo íntimo.
A Solidão Criativa
A incompreensão familiar, longe
de ser apenas sofrimento, pode conduzir a uma solidão fecunda, porque, não
sofrer a expectativa alheia, é profundamente libertador.
Quando não encontramos
compreensão naqueles mais próximos, somos lançados de volta a nós mesmos. Nesse
retorno, se houver observação sem autocomiseração, nasce a percepção de que a
busca pela compreensão externa é uma armadilha.
O paradoxo é claro: é justamente
a incompreensão familiar que pode conduzir o indivíduo à liberdade da solidão
criativa, onde a mente descansa em si mesma sem depender de reconhecimento.
O Perigo da Ressentida Rejeição
Contudo, é preciso estar atento ao
perigo da reação ressentida. Muitos, através do que chamamos de observação
ácida, transformam a incompreensão em rancor, ódio, afastamento amargo. Isso
não é libertação, mas continuidade da nutrição da insegura e calculista
estrutura mental e emocional, responsável por todo tipo de conflito. Se
observarmos bem, quando reagimos, temos a prova viva de que ainda estamos
apegados àquilo a que reagimos.
O desapego não ocorre através do
corte de laços com raiva, mas em observar o movimento da incompreensão dos
familiares, com clareza, sem exigir que seja diferente. Não se trata de resignação,
mas de lucidez. Só nessa lucidez nasce uma relação nova — não baseada em apego,
em dependência, em exigência, mas em liberdade integrativa.
A Família Como Nosso Espelho
Compreender a incompreensão
familiar, diante das mudanças que ocorrem conosco, após o despertar, é
compreender o mundo. O núcleo familiar é apenas uma miniatura do todo. O
conflito em sua família não é diferente do conflito no mundo. Assim como os
países vivem em guerra por causa de imagens, interesses e busca de segurança,
assim também as famílias se fragmentam. Observar a incompreensão no círculo
íntimo — em especial a como reagimos a isso — é observar a raiz da divisão
humana.
A Revolução Interior
Então, o que fazer diante da
incompreensão familiar? Como nos libertar da acidez e do melindre do olhar? A
experiência mostra que a liberdade começa quando não tentamos mudar o outro, não
tentamos mudar o mundo, não esperamos compreensão, mas observamos totalmente o
fato da incompreensão.
Quando, pela observação passiva,
não reativa, deixamos de fugir daquilo que se apresenta em nossas relações
cotidianas, deixamos de ser adulterados, bem como deixamos de adulterar tais
relações. Isso produz uma libertária mutação psíquica.
A incompreensão, vista sem
resistência, revela a verdade de que não há realmente um “outro” a nos
compreender. Há apenas o jogo de imagens, expectativas e memórias. Quando esse
jogo é visto, o peso da incompreensão perde seu veneno.
Conclusão: O Fogo da Incompreensão
A incompreensão familiar é
inevitável, porque cada indivíduo, é um feixe de condicionamentos e cálculos
autocentrados. Querer ser compreendido plenamente, é exigir o impossível. Mas,
ao invés de ser apenas um tormento, a incompreensão pode ser fogo descondicionante.
Ela desmascara nossos apegos, nossas
dependências, revela nossa ausência de autonomia psíquica, nossa solidão, nos
empurra para fora da ilusão de comunhão baseada em posse e controle. Se
suportada sem a imatura identificação que dispara o impulso emotivo reativo
escapista, se não fugimos, se bancamos a observação, então, torna-se portal
para a liberdade e integridade interior.
O processo de descondicionamento,
não nos convida a rejeitar a família, a cortar as relações iniciadas em
períodos de desatenção, mas a vê-la, pela primeira vez, sem o desfoque de
nossos interesses ocultos, sem as imagens distorcidas que criamos ao longo dos
anos, mas sim, tal como é: um espelho cru da mente humana, com seus apegos,
suas incompreensões, suas repetições. Ver isso com clareza é o início de uma
relação verdadeiramente nova — uma relação onde já não exigimos ser
compreendidos, mas nos movemos na liberdade de simplesmente ser.