No terreno espiritual contemporâneo, são vários os jargões que imperam. Entre tantos, um dos mais recorrente é a "Prática da Presença".
Bora, desmontar juntos a noção
“mercantilizada” da chamada prática da presença e a recolher
de volta ao seu significado mais radical: não como uma técnica a ser executada,
mas como uma qualidade de ser — enraizada no estar na vida sem medo, sem
cálculo autocentrado, com base numa observação silenciosa, passiva e não
reativa.
Então vamos lá, juntos com profundidade,
observação cortante, sem verniz espiritualista, preservando a lucidez e a
precisão necessária.
Presença: Além da Prática e do Mercado Pop Espíritual
A expressão Prática da
Presença tornou-se uma moeda corrente no vocabulário espiritual
contemporâneo. Multiplicam-se livros, cursos, workshops e retiros prometendo
ensinar “como estar presente” — como se presença fosse uma habilidade a ser
treinada por etapas, adquirida como se adquire fluência em um idioma ou técnica
de respiração.
No entanto, este uso da
palavra presença carrega uma distorção sutil e profunda: a de
transformar algo que é da ordem do ser em algo que se enquadra na lógica do
fazer.
Presença, no seu sentido mais nu,
não é um exercício que se aplica, não é um protocolo que se segue, não é um
método que se repete até se “atingir” um estado especial. Presença é um estado
não-fabricado. É a ausência de interferência da mente no instante vivo. É a
qualidade de estar aqui, não como conceito, mas como fato irredutível, onde o
corpo, a percepção e o mundo se encontram sem uma ponte de controle e
manipulação.
E justamente por não ser
fabricada, presença não pode ser praticada no sentido usual do
termo. Você pode praticar ioga, piano, artes marciais. Nessas práticas, existe
um objetivo definido, um ponto de chegada. Mas na presença, não há ponto a
atingir, porque ela já é o pano de fundo do qual a experiência surge. Qualquer
tentativa de produzi-la já parte do equívoco de que ela não
está aqui, de que é algo ausente que precisa ser alcançado, portanto, não passa
de nutrição para a continuidade de um ser condicionado.
O engano do “estado desejado”
Quando a presença é reduzida a
técnica, ela se torna mais um objeto de consumo no vasto mercado das
experiências. É vendida como algo que trará benefícios: paz mental, redução do
estresse, foco, clareza. E embora esses efeitos colaterais possam ocorrer, eles
não são presença.
O problema é que, ao tratar
presença como uma técnica para obter algo, desloca-se sua essência
para o território do cálculo autocentrado. A pessoa se “dedica à presença” para
obter um ganho pessoal — e esse ganho, mesmo que seja “espiritual”, é apenas
mais um prolongamento do movimento egocêntrico.
Presença não se move para
garantir um resultado. Ela é a cessação silenciosa do movimento que calcula,
mede, compara, busca ou, foge.
Presença como qualidade de relação
Se quisermos falar com precisão,
presença não é uma prática interna isolada do mundo, mas uma qualidade da vida
de relação. É como nos colocamos diante do outro, diante das situações, diante
dos acontecimentos inevitáveis.
Essa qualidade não é fundamentada
no medo, na defesa, no reflexo de proteger uma imagem de si. Também não é
movida pela ânsia de controlar o que acontece para assegurar um resultado
favorável.
Presença é um estar em contato
real — sem o filtro deformante do desejo e do medo.
E aqui reside um ponto que o
discurso espiritual popular raramente toca: a verdadeira presença é
incompatível com o autocentramento. Não é um “estado interno” protegido da
vida, mas uma abertura radical ao que ela apresenta.
Quando se diz “esteja presente”,
a tendência imediata é tentar voltar a atenção para “o aqui e agora” como se
fosse um esforço mental. Mas o que realmente importa não é a atenção forçada ao
instante, e sim a suspensão da narrativa que o personagem tece sobre ele.
Presença é não interferir. É não
construir um comentário interno sobre cada acontecimento. É não carregar para a
frente o passado e não projetar sobre o momento um roteiro desejado.
O papel da observação silenciosa
Chamamos atenção para algo
central: presença não é ação, é observação silenciosa, passiva e não reativa.
- Silenciosa, porque não está acompanhada de
um diálogo mental constante sobre o que se está percebendo. Não é “olhar”
e dizer internamente “estou olhando”. É simplesmente olhar.
- Passiva, porque não busca moldar ou alterar
o que vê. Não é observação com intenção, mas com permissão.
- Não reativa, porque não se deixa capturar
pelo ímpeto de responder imediatamente a estímulos internos ou externos,
seja com palavras, gestos ou julgamentos.
A presença autêntica não se
manifesta como uma postura tensa de “vigiar a si mesmo” para não errar. Ela é
mais próxima de um repouso lúcido, no qual se observa o que acontece sem se
lançar de imediato na mecânica da defesa ou do ataque.
Essa observação não é fria ou
distante, mas tampouco é emotiva ou melodramática. É um testemunho desarmado —
e justamente por ser desarmado, é livre.
A ilusão da prática
É preciso ver como a palavra
“prática” carrega uma armadilha. No mundo moderno, praticar significa fazer
algo repetidamente para melhorar ou dominar. É um verbo que supõe esforço
deliberado, método e progresso.
Quando aplicamos isso à presença,
criamos um paradoxo: tentamos “fabricar” um estado cuja natureza é justamente
não ser fabricado.
O irrefletido condicionamento de
“estar presente”, pode até gerar momentos de quietude, mas são quietudes
frágeis, dependentes da manutenção voluntária. A verdadeira presença não é
mantida: ela é descoberta quando cessamos a manutenção.
Nesse sentido, não é que não haja
um “ato” envolvido — há sim um deslocamento do impulso condicionado, uma
entrega. Mas é um ato de desistência, não de conquista. É a suspensão de todos
os esforços para estar em outro lugar que não o aqui, e em outro tempo que não
o agora.
Medo e cálculo: os dois sabotadores
Na vida de relação, o medo e o
cálculo são os grandes sabotadores da presença.
- O medo fecha o campo da percepção. Ele
nos prende a uma narrativa de ameaça, e a atenção deixa de ser aberta para
se fixar em possíveis danos e modos de evitá-los.
- O cálculo autocentrado transforma o
encontro em uma transação. Observamos não para compreender, mas para
prever, controlar e manipular de forma a garantir algum ganho.
Ambos são impulsos emotivos
reativos para escapar do instante. Ambos são projeções condicionadas — uma para
proteger-se de algo que ainda não aconteceu, outra para assegurar algo que se
deseja que aconteça.
Estar presente é deixar que o
instante seja inteiro, sem tentar empurrá-lo para um desfecho ou detê-lo para
preservar um prazer.
O mito da presença como estado permanente
Outra ilusão alimentada pelo
discurso dos gurus contemporâneos é a ideia de que, uma vez “atingida”, a
presença se mantém como um estado contínuo.
Isso gera frustração, porque a mente passa a se cobrar por não estar
constantemente presente.
Mas presença não é um estado
permanente — é um contínuo retorno. Não um retorno forçado, mas um retorno
natural que ocorre quando se percebe a ausência.
A oscilação entre presença e
ausência é inevitável na condição humana. O ponto não é evitar a ausência a
todo custo, mas ver a ausência quando ela ocorre e deixar que esse ver dissolva
o automatismo.
O silêncio como campo de presença
Presença é inseparável de um
certo silêncio. Não o silêncio artificial de quem reprime pensamentos ou
emoções, mas o silêncio que surge quando não estamos mais tentando comentar e
administrar a experiência.
Este silêncio não é uma ausência
de som ou de ação, mas a ausência de ruído psicológico. É possível estar numa
rua movimentada e estar nesse silêncio. É possível estar numa conversa e estar
nesse silêncio.
O silêncio da presença é o que
permite ver o outro sem o véu dos condicionamentos que produzem as
interpretações automáticas, é o que impede que cada palavra ou gesto seja
imediatamente traduzido em ameaça ou oportunidade para o personagem.
Conclusão: presença como desnudez
Presença, enfim, não é uma
prática, mas uma nudez. É o estar sem o disfarce das expectativas e sem a
armadura das defesas. É uma qualidade de contato em que não há mais um “eu”
tentando manipular a vida para que ela corresponda aos seus interesses.
Talvez por isso, no fundo, a
presença seja tão rara. Porque ela exige que deixemos cair tudo o que
acreditamos ser necessário para estar seguros.
E nesse deixar cair, a vida se mostra como sempre esteve: inteira, aqui, agora
— sem necessidade de prática, sem necessidade de conquista. Apenas sendo.
Observemos
agora, as “armadilhas comuns” e os “indicadores de presença real”. O que
chamamos de “Armadilhas comuns — é onde a noção de presença é
falsificada ou distorcida, criando ilusões. Já os Indicadores de presença
real — são os sinais internos e externos que mostram que você está
nesse campo de observação silenciosa, passiva e não reativa.
Armadilhas Comuns na Busca pela Presença
·
Confundir atenção focada com presença - Muitos
acreditam que basta “prestar atenção” para estar presente. Mas a atenção focada
pode ser uma ferramenta de controle, não de abertura. É possível olhar para
algo com atenção extrema e, ainda assim, estar inteiramente perdido nos
mecanismos de cálculo e defesa do personagem.
A
presença não é a contração de se fixar em um ponto; é a expansão silenciosa que
acolhe tudo o que aparece sem escolher o que deve ser percebido.
·
Transformar a presença em desempenho - No
ambiente espiritual, há quem “demonstre” estar presente — postura impecável,
olhar sereno, gestos calculadamente lentos. Mas isso não é presença: é o teatro
satsang.
Quando
ela é usada como performance, está a serviço da sustentação da imagem do
personagem desperto, não da vida. O corpo pode estar imóvel e o espírito
ausente.
·
Usar a presença como anestesia - Outra
armadilha é usar a ideia de presença para se desligar emocionalmente, como quem
“observa” para não sentir. Isso não é presença, é dissociação. A presença não
evita o contato com a dor ou o desconforto; pelo contrário, ela permite que
sejam sentidos sem resistência, sem necessidade de transformá-los ou negá-los.
·
A presença como conquista do personagem - O
personagem adora acumular títulos invisíveis: “sou mais consciente”, “estou
sempre presente”, “já não reajo como antes”. Essa narrativa sobre si mesmo não
é presença — é mais uma construção mental que nos afasta dela. Quando realmente
há presença, não há um “eu presente” que se conte a história de como está
presente.
- Buscar a presença apenas em condições favoráveis
- Muitos tentam praticar presença em ambientes tranquilos, durante
meditação, caminhadas solitárias ou contato com a natureza. Isso pode ser
útil como introdução, mas é incompleto. A presença real não depende de
cenário. Ela é possível no caos, no trânsito, em reuniões tensas — e é
justamente nesses momentos que sua autenticidade se prova.
Indicadores de Presença Real
- Ausência de pressa interna - Mesmo que as
circunstâncias externas exijam rapidez, internamente não há urgência
psicológica. As ações podem ser céleres, mas não são movidas pelo pânico
ou pela antecipação de resultados.
- Escuta sem agenda - Na presença, é possível
ouvir alguém sem já preparar a resposta ou avaliar a validade do que está
sendo dito. Há um espaço limpo aonde as palavras chegam inteiras, sem
passar por um filtro imediato de concordância ou discordância.
- Percepção ampliada - O campo da consciência
não está estreitado por um foco obsessivo. Sons, cores, movimentos,
sensações corporais e até pensamentos são percebidos num mesmo pano de
fundo, sem competição pela atenção.
- Ação adequada e não reativa - A resposta a
um acontecimento não é automática nem impulsiva. Ela surge depois de um
instante de observação, mesmo que seja um instante muito breve. É como se
algo em você verificasse antes se aquela ação é realmente necessária ou
apenas um reflexo condicionado.
- Sensação de enraizamento no corpo - Há uma
conexão viva com a respiração, com o peso do corpo, com os apoios nos pés
e nas mãos. Essa ancoragem não é buscada deliberadamente, mas percebida
naturalmente como parte do estar aqui.
- Ausência de comentário interno constante - Os
pensamentos podem surgir, mas não dominam a cena. Não há narração
ininterrupta sobre o que está acontecendo. Surge um silêncio de fundo,
mesmo que a mente emita pequenas frases.
- Aceitação imediata da realidade factual - Não
significa resignação passiva diante de injustiças ou abusos, mas o
reconhecimento de que “isto está acontecendo agora” antes de tentar
mudá-lo. É o fim da negação automática do que é.
- Perda temporária da autoimagem - Durante
momentos de presença profunda, não há preocupação com “quem sou eu” ou
“como estou aparecendo”. A atenção está no instante e não na representação
de si.
Integração: a presença como insubmissão
A presença autêntica é, no fundo,
uma forma de insubmissão à mediocridade psicológica. Ela se recusa a operar no
piloto automático dos implantes sistêmicos, das reações herdadas, das
narrativas aprendidas, dos papéis sociais impostos.
Ela não é contra a vida — pelo contrário, é a rendição total à vida sem os
filtros que a distorcem.
E por ser tão simples e tão
direta, acaba sendo invisível para a maioria, que ainda busca experiências
espetaculares ou estados alterados como sinônimo de realização espiritual.
A grande ironia é que não existe
caminho para a presença — existe apenas o abandono dos caminhos que nos afastam
dela.
Fechamento
Fechamos agora esta reflexão,
deixando 10 perguntas de auto inventário que talvez, possam servir como
ferramenta direta para que o leitor possa se ver sem subterfúgios — alinhadas
com a visão de presença como qualidade de ser, não prática fabricada.
10 Perguntas de Auto
Inventário sobre a Presença
- Quando estou diante de alguém, minha atenção está
realmente com a pessoa ou no que pretendo dizer em seguida?
- Ao ouvir algo que me desagrada, percebo primeiro
minha reação interna ou já respondo de modo automático?
- Nas conversas, consigo deixar espaços de silêncio
ou preencho compulsivamente cada pausa?
- Quando surge um desconforto emocional, minha
primeira atitude é sentir ou administrar?
- Consigo perceber o que está acontecendo ao meu
redor sem escolher o que é mais “importante” para ver?
- Quando algo inesperado acontece, acolho o fato como
ele é ou imediatamente tento encaixá-lo em meus planos?
- Meu contato com as pessoas é livre de segundas
intenções ou sempre há um cálculo implícito de ganho ou proteção?
- Nos momentos de pressa, é só o corpo que se move
rápido ou a mente também entra em estado de urgência?
- Ao caminhar, comer ou realizar tarefas simples,
estou realmente ali ou no diálogo mental sobre o que virá depois?
- Quando percebo que estive ausente, retorno
suavemente ou me culpo por “não estar presente o suficiente”?