Vivemos sob o jugo invisível de uma compulsão coletiva: a de performar. Não se trata apenas de fazer, mas de parecer estar fazendo, de evidenciar movimento, progresso, engajamento, brilho. É a ditadura da performance — silenciosa, sutil, onipresente. Em nome dela, sorrisos são exibidos como conquistas, corpos são moldados como argumentos, rotinas são editadas como propaganda de um viver bem-sucedido. E sob toda essa encenação, está o Observador: aquele que, ao invés de atuar, observa em silêncio.
A performance moderna não
acontece apenas nos palcos formais — ela colonizou os espaços mais íntimos da
vida: o trabalho, o afeto, a espiritualidade, o lazer e até mesmo o sofrimento.
Tudo se torna vitrine. A dor precisa ter estética. A alegria precisa ter
alcance. A vida precisa de validação. E o ser autêntico, sufocado, se
desintegra em avatares eficientes, vendáveis, consumíveis.
A pressão para performar não é um
fenômeno novo, mas foi radicalizada por uma cultura onde tudo é medido,
rastreado, comparado. Números viraram oráculos. Seguidores, curtidas, diplomas,
metas cumpridas, lifestyle projetado, produtividade maximizada — são os ídolos
diante dos quais se sacrifica o silêncio interior, a pausa, a sinceridade
bruta, a falha legítima.
Essa pressão tem um rosto
socialmente aceitável, mas interiormente devastador. Ela exige que o indivíduo
se desdobre em mil versões para corresponder à expectativa do sistema — seja
ele corporativo, familiar, espiritual, romântico ou digital. Ninguém escapa. O
artista precisa se tornar influencer. O terapeuta precisa provar resultados. O
pobre precisa parecer esforçado. O rico precisa parecer feliz. O rebelde
precisa parecer coerente. O espiritualizado precisa parecer em paz. Todos, de
um jeito ou de outro, são convocados a atuar.
Mas o Observador não atua. Ele observa
em silêncio.
O Observador é a consciência que
testemunha, silenciosa e crua, essa engrenagem de encenação. Ele observa o personagem
tentando provar valor. Observa a mente traçando estratégias para parecer
competente, querido, desperto. Observa os gestos contaminados pela necessidade
de aceitação. Observa a voz se ajustando para parecer convincente. Observa o
corpo se moldando para caber no ideal. E, ao observar, não reage — apenas
reconhece: “isso também é condicionamento”.
Performar é trair a presença.
Toda performance exige um deslocamento de si: em nome do outro, do sucesso, do
pertencimento, da imagem. A performance é a negação do instante — ela se
projeta sempre para o aplauso futuro, para o julgamento do outro, para o ideal
que ainda não se encarnou. Ela é filha do medo e do desejo: medo de não ser
aceito, desejo de ser reconhecido. E nessa dicotomia, o ser autêntico se
eclipsa.
Quantas vezes você já performou
uma emoção que não sentia? Quantas vezes disse “tá tudo bem” apenas para manter
a máscara intacta? Quantas vezes se forçou a sorrir, meditar, se entusiasmar,
amar, quando tudo dentro gritava “não”? Quantas vezes fingiu produtividade,
lucidez ou evolução, apenas para não parecer fracassado, atrasado, comum?
Essa pressão é um cárcere
psicológico. E pior: é um cárcere que se autoalimenta. Quanto mais se performa,
mais se esquece de como é existir sem máscara. A performance cria um
personagem. O personagem vira identidade. E o ser real, sufocado, começa a
parecer disfuncional, inapto, inadequado. É aí que começa a tortura interna: o
conflito entre a verdade sentida e a imagem projetada.
O Observador, quando desperta,
rasga esse véu. Ele observa a neurose da performance, mas não a condena —
apenas observa em silêncio. Ele reconhece que a performance é uma estratégia de
sobrevivência psíquica em um mundo onde o ser nu é considerado fraco,
improdutivo, estranho. O Observador entende: há dor por trás da performance. Há
solidão. Há medo. Há o trauma ancestral de não ser amado por ser apenas quem se
é.
E justamente por ver isso, o
Observador inicia um processo de descondicionamento. Ele começa a desaprender a
atuar. Começa a silenciar o desejo de agradar. Começa a questionar os papéis
que assumiu. Começa a suportar o incômodo de não corresponder. Começa a abrir
mão do aplauso. Começa a aceitar o risco de parecer errado.
Essa é a verdadeira rebelião:
desapegar da performance e ainda assim permanecer. Ficar em silêncio quando se
espera fala. Não produzir quando se exige resultado. Não se explicar quando se
cobra coerência. Não se exibir quando se pede brilho. Não se ajustar quando se
impõe forma. Não competir. Não provar. Não convencer. Apenas ser.
Mas isso cobra um preço.
O mundo não perdoa quem se recusa
a performar. O que não performa é tratado como falha do sistema. O ser nu
incomoda. O silêncio desestabiliza. A vulnerabilidade exposta escandaliza. O
cansaço confessado é lido como fraqueza. A honestidade crua é confundida com
desequilíbrio. E o que se recusa a participar do jogo é logo diagnosticado,
desqualificado, silenciado.
É por isso que poucos ousam ser
apenas o que são. Porque ser-se exige atravessar a solidão de não ser
entendido. Exige abrir mão da zona de conforto do reconhecimento. Exige romper
com os pactos invisíveis de atuação coletiva. Exige perder o “valor de mercado”
em nome da inteireza. Exige suportar a ausência de aplauso.
Mas é só aí que a liberdade
começa. Quando o ser se liberta da necessidade de parecer, começa a viver. Não
mais como um personagem que responde ao script externo, mas como uma
consciência que emerge do centro silencioso da existência.
O Observador sabe: a vida
verdadeira não se prova. Não precisa ser defendida, ilustrada, compartilhada,
performada. Ela pulsa em si, sem espetáculo. E é nesse reconhecimento que o ser
repousa.
—
O Observador e o fim da performance:
Observar
sem julgar - Não se trata de combater a performance com outra performance
mais "autêntica". Trata-se de observar, apenas observar, o impulso de
atuar — e nesse observar, permitir que ele se desintegre.
Permitir
a falha - A falha não é um inimigo; é um portal. Toda falha de performance
é uma brecha na máscara. O Observador celebra essas rachaduras: são nelas que o
real começa a respirar.
Suportar
o não reconhecimento - A liberdade nasce quando não se é mais escravo do
olhar do outro. Quando se é capaz de viver sem aprovação, sem curtidas, sem
palmas, sem recompensa externa — nasce o ser indomável.
Não
buscar coerência artificial - A coerência imposta é prisão. O Observador se
permite contradição, porque sabe que o ser humano é fluxo, não é tese. Só os
mortos são coerentes o tempo todo.
Cessar a
autopromoção espiritual - Até a busca por despertar pode virar performance.
O Observador observa isso também — e então larga o desejo de parecer
desperto, mergulhando apenas, no silêncio da presença.
O observador sabe que a sociedade
continuará performando. Continuará exigindo que você sorria, produza,
compareça, brilhe, declare, se posicione, publique, comprove, evolua. Mas o
Observador não negocia com essa pressão. Ele não é reativo, mas é radical:
radicalmente verdadeiro. Radicalmente presente. Radicalmente inútil para o
sistema que vive de imagens.
Ser Observador é escolher a
inteireza em vez da relevância. É escolher o silêncio em vez da explicação. É
escolher a presença em vez da autopropaganda. É escolher o ser em vez do
parecer.
No fim, tudo se reduz a isso: ou
você atua, ou você observa silenciosamente. Ou você performa, ou você vive. Ou
você coleciona aplausos, ou recolhe-se à dignidade de uma existência anônima,
silenciosa, lúcida.
A escolha está diante de você —
mas o Observador sabe: qualquer escolha feita por medo ou desejo já é
performance. Só há uma saída real: observar tudo o que está
acontecendo, sem se perder no papel.
E isso, no mundo da atuação
compulsiva, já é uma revolução.