Hoje, o altar mudou de forma. O púlpito já não está na igreja, mas nos estúdios esportivos— agora gritam-se gols e enterradas. A nova fé se transmite em HD. O novo templo é o estádio, a quadra, a tela. A missa se tornou uma partida transmitida em tempo real. O povo, órfão de sentido, encontrou em bolas arremessadas e redes balançando sua liturgia semanal.
Ídolos vestem uniformes. Seus
milagres são gols de bicicleta, buzinaços, viradas improváveis.
Enquanto os bastidores do mundo
desabam — política corrompida, ecossistemas em colapso, miséria disfarçada de
progresso — a massa vibra com a próxima rodada.
Cegueira organizada, torcida
fervorosa pela distração. Onde antes se prometia o céu após a morte, agora se
promete a felicidade aos domingos.
O esporte de alto nível foi
sequestrado. Já não forma corpos, forma consumo. Corporações, patrocínios,
cifras indecentes. O jogo é só a fachada. O que está em jogo é o seu tempo, sua
mente, sua energia.
O povo não precisa mais pensar.
Precisa torcer. Precisa de um inimigo simbólico — o time rival. Precisa de uma
guerra que não doa, de um êxtase que não questione.
E assim, entre gritos de “campeão” e choros de “roubo”, mantém-se a ordem.
A ordem do sono coletivo.
Enquanto isso, a realidade? Segue
jogada para escanteio.
O povo quer emoção, quer vibração
A fé não se dirige mais ao
invisível, mas ao invencível — aquele camisa 10 que dribla como se fosse Deus. O
futebol, o basquete, e outras arenas do entretenimento competitivo tornaram-se
os novos rituais de pertença, transcendência e catarse coletiva.
A religião, nos moldes
tradicionais, já não satisfaz as massas. Seu vocabulário envelheceu, seu
moralismo perdeu apelo, sua promessa de salvação após a morte perdeu força
frente à promessa de êxtase instantâneo a cada vitória.
O povo quer emoção, quer vibração, quer identidade pronta para vestir. E
encontra tudo isso no esporte.
Mas há algo mais profundo por
trás dessa transformação: o uso calculado do esporte como uma poderosa
ferramenta de distração. Uma anestesia social, uma paixão permitida, que
domestica os impulsos de revolta e desvia a atenção das verdadeiras mazelas que
corroem o tecido do mundo.
O Esporte como Religião do Capital
Religiões sempre serviram para
oferecer sentido ao sofrimento, consolo diante do absurdo e controle das massas
em nome da “ordem divina”. O esporte, em sua forma atual — hipermercantilizada
e espetacular — cumpre exatamente esse papel.
Só que
agora, o deus é o entretenimento. E o culto é financiado por multinacionais. As
estruturas são quase idênticas:
Ídolos são
adorados e seguidos. Regras sagradas (o regulamento) não se questionam. Cores,
hinos, bandeiras, gestos e ritos formam um ecossistema simbólico completo.
Há dias
santos — finais, clássicos, copas — e peregrinações coletivas aos templos
(estádios). Há conversões, fanatismo e até excomunhões (torcedores “traidores”,
atletas “caídos”).
Mas,
diferentemente da religião tradicional, o culto esportivo não convida à
introspecção. Ele excita, inflama, distrai. É uma experiência emocional, rápida
e repetitiva, que consome sem transformar.
Catarses Permitidas
O mundo em colapso —
desigualdade, corrupção, violência estrutural, crise ambiental — exige
questionamento. Mas questionar é perigoso. Pensar é revolucionário. Por isso,
oferece-se ao povo emoções seguras.
O jogo, a partida, o campeonato:
todos funcionam como válvulas de escape emocional. Chora-se com a derrota,
vibra-se com a vitória. Mas nada muda.
As vidas continuam precárias, o sistema segue injusto — e o povo agradece mais
um golaço.
É como se disséssemos: “Dê-lhes
uma guerra simbólica, e eles não desejarão a real.” A rivalidade entre times
encena, de forma domesticada, os conflitos que o povo gostaria de travar com
seus verdadeiros opressores. Mas é um teatro. Após o apito final, tudo volta ao
normal. A catarse passou, e com ela, a possibilidade de despertar.
O Sonho que nos Mantém Dormindo
Quando um jovem de periferia
sonha em ser jogador, o faz por sobrevivência — mas também por falta de outras
possibilidades. A mídia vende diariamente a ilusão de que o esporte é o único
caminho para a glória e o respeito. Aos poucos, forma-se uma legião de meninos
frustrados, de corações quebrados, porque o sonho de “chegar lá” não se
concretiza para 99,9% deles.
E mesmo assim, o ciclo continua:
— Estude? Para quê? Vou jogar
bola.
— Ler? Filosofar? Melhor treinar
chute ao gol.
— Pensar? Não dá dinheiro.
O esporte, então, longe de
libertar, aprisiona. Não pelo jogo em si — mas pelo que dele se faz. Ele se
torna o único horizonte possível, a única escada social visível, o único mito
de superação disponível. Toda uma geração de jovens, potencialmente despertos,
é sugada para o vórtice do espetáculo esportivo, onde o corpo é valorizado, mas
a mente segue negligenciada.
Da Identidade à Alienação
O fanatismo por clubes ou
seleções serve para preencher um vazio: o da identidade diluída. No mundo
moderno, ninguém mais sabe quem é. Perdeu-se a comunidade, a tradição, o
pertencimento real. E o que sobra? O time.
O sujeito que não tem voz
política, não tem dignidade no trabalho, não tem segurança nas ruas, grita como
um leão pelo seu clube. Briga, discute, mata e morre. Por quê? Porque ali,
naquela identidade coletiva fabricada, ele se sente alguém.
Mas essa identificação cega é uma
armadilha. Ela rouba a energia que poderia ser usada na reconstrução da
sociedade real. Ela transforma possíveis cidadãos críticos em torcedores fiéis.
E a crítica morre ali — soterrada sob bandeiras e gritos de guerra.
O Sistema Agradece
Os que dominam a sociedade,
através do “Império do Reflexo”, aplaudem essa idolatria esportiva. Eles sabem
que quanto mais o povo torce, menos o povo pensa.
Quanto mais vibra com um campeonato, menos se indigna com a miséria.
E por isso, investem bilhões.
Estádios luxuosos são construídos
onde falta escola. Jogadores ganham salários surreais enquanto professores mal
sobrevivem. Horas e horas de transmissão ao vivo para acompanhar partidas sem
nenhuma relevância histórica, enquanto ninguém mostra as verdadeiras partidas
que se jogam nos bastidores do poder.
O povo não se revolta, porque
está entretido. E como já ensinava Aldous Huxley:
“Os povos que amam sua servidão são os mais fáceis de controlar.”
O Que Há de Errado com o Jogo?
Nada. O jogo em si é belo. A arte
do corpo, a inteligência tática, a emoção do imprevisível. O problema não está
no esporte, mas no seu uso. No que dele fizeram.
O esporte poderia educar. Poderia
unir. Poderia despertar senso de cooperação, ética, disciplina e superação
real. Mas foi capturado. Convertido em produto, propaganda, indústria.
Tornou-se o novo ópio. Agora não
mais fumado em cachimbos espirituais, mas consumido em massa por transmissões
ao vivo, camisetas oficiais, apostas online e redes sociais.
E o povo? Segue sedado, gritando
“é campeão”, enquanto o mundo desmorona ao fundo.
Para Onde Olhar?
Quem vê tudo isso e desperta,
sente-se deslocado. Tentar falar sobre isso é como tentar acordar um bêbado no
auge da embriaguez. Riem de você. O chamam de chato, de amargo, de “anti”. Mas
há algo mais valioso do que ser aceito: ser lúcido.
A lucidez, hoje, é resistência. Recusar
o delírio coletivo é um ato revolucionário. E mais do que recusar, é preciso
substituir.
Não basta dizer “o esporte é
alienante” — é necessário criar novos rituais, novas experiências coletivas
significativas. Espaços onde o povo possa sentir pertencimento verdadeiro, onde
possa canalizar sua energia para algo que transcenda o consumo e o fanatismo.
O futebol e o basquete, como são
apresentados hoje, não são apenas jogos. São dispositivos políticos. São
distrações inteligentes. São muros entre a dor real e a consciência que ela
poderia despertar. A religião já cumpriu esse papel: prometer paraíso enquanto
se aceita o inferno terreno.
Agora, o esporte faz o mesmo:
promete êxtase semanal enquanto se empurra a miséria cotidiana para debaixo do
tapete.
Quem enxerga isso, não é contra o
esporte. É contra o uso perverso que dele se faz. Contra a conversão da beleza
em anestesia. Contra o culto ao vazio que impede a construção do novo.
E talvez, só talvez, quando o
último grito de gol não conseguir mais calar o grito da consciência, o povo
acorde. E ao invés de torcer por um time, comece a lutar pelo bem-estar comum.