Vivemos sob o império de uma artificialidade que se tornou tão dominante, tão ubíqua, que já não é mais percebida como exceção: tornou-se norma. A isso chamamos de artificialismo coletivo — um modo de viver, pensar, sentir e se relacionar baseado em simulações, performances e máscaras. Um teatro automatizado, onde a espontaneidade é substituída por papéis sociais rígidos, onde a verdade é constantemente maquiada para não ferir a delicada estabilidade do sistema coletivo. Mas qual é o preço desse simulacro existencial?
A vida encenada
Desde cedo, somos moldados a
participar de um jogo social que exige a negação da autenticidade. Aprendemos o
que é “adequado”, o que “pega bem”, o que “esperam de nós”. Assim, o indivíduo
vai se lapidando não em direção à verdade de si, mas à performance socialmente
aceita. A vida deixa de ser vivida de dentro para fora, e passa a ser
coreografada para agradar a plateias invisíveis. Tornamo-nos atores
involuntários num palco cujo roteiro foi escrito por tradições, ideologias,
redes sociais, tendências, religiões e marketing.
A espontaneidade, essa força
vital que brota do contato direto com a existência, é vista como uma ameaça à
ordem. Afinal, o espontâneo é imprevisível, e o sistema social exige
previsibilidade para se manter funcionando. Assim, o artificialismo não apenas
é aceito — ele é necessário para que a engrenagem coletiva
continue girando sem sobressaltos. A espontaneidade genuína foi sacrificada no
altar da estabilidade coletiva.
Emoções programadas, vínculos encenados
No artificialismo coletivo, até
as emoções tornam-se objetos de manipulação. Aprendemos como devemos “amar”,
“sofrer”, “celebrar”, “chorar”, “perdoar”, “velar”. Seguem-se fórmulas,
convenções e scripts emocionais. Quando um ente querido morre, choramos não
necessariamente por tristeza genuína, mas porque é isso que se espera de alguém
"que amava". Quando recebemos uma boa notícia, sorrimos conforme manda
o script da alegria — muitas vezes sem que a alegria real nos toque.
Esse simulacro emocional gera
vínculos tão frágeis quanto os algoritmos que nos conectam. O amor, a amizade,
a solidariedade — todos esses sentimentos que deveriam ser pulsantes e
selvagens — são filtrados por normas sociais e pelo medo de rejeição. Com isso,
as relações tornam-se plásticas: há contato, mas pouca comunhão; há trocas, mas
pouca verdade; há presença, mas pouca alma.
A estética da farsa
Vivemos numa era onde a aparência
vale mais que o conteúdo. Isso não é apenas uma crítica estética — é uma
denúncia existencial. A estética da farsa transformou a vida em vitrine, e o
ser humano em mercadoria de si mesmo. Redes sociais são o palco principal desse
espetáculo grotesco: ali, os sorrisos são estrategicamente calculados, os
ângulos da imagem são milimetricamente escolhidos, as palavras são
cirurgicamente editadas para parecer “profundas”, “engajadas”, “sensíveis”.
Tudo é aparência.
A tragédia disso não está apenas
na mentira visual, mas na deterioração da experiência real. A obsessão por
parecer feliz mata a possibilidade de realmente sê-lo. A busca pela imagem
perfeita elimina a vivência imperfeita — e, portanto, autêntica — que nos
humaniza. O artificialismo coletivo transforma o viver em um eterno marketing
existencial.
A moralidade cenográfica
Outro traço marcante do
artificialismo coletivo é a moralidade cenográfica: não se trata de viver com
ética, mas de parecer ético. O importante não é a integridade
interior, mas a reputação pública. As pessoas não evitam mais o mal por
convicção íntima, mas pelo medo de cancelamento. A virtude é encenada como um
personagem social; um figurino que se veste para determinadas ocasiões — e que
se descarta quando ninguém está olhando.
Esse tipo de moralidade
performática não promove transformação interior. Ao contrário: anestesia a
consciência. O sujeito acredita ser bom porque age conforme os códigos de
conduta aceitos, mesmo que internamente esteja corrompido, vazio, indiferente.
O artificialismo coletivo produz uma legião de hipócritas inconscientes — convencidos
de sua “bondade” por estarem dentro do padrão.
A espiritualidade plástica
Mesmo o campo da espiritualidade
não escapou à contaminação artificial. Práticas que deveriam nos reconectar ao
mistério da existência foram convertidas em produtos de consumo emocional.
Meditação virou técnica para performance no trabalho. Yoga virou estética
corporal. Religião virou entretenimento dominical. A busca espiritual deixou de
ser um mergulho no abismo do ser e se tornou uma superfície polida,
confortável, higienizada.
A espiritualidade plástica vende
alívio, não verdade. Promete conforto, não transformação. Ela não exige
renúncia ao falso eu, mas sim que se mantenha uma aparência de “pessoa
iluminada”. Assim, o personagem encontra uma nova forma de se fortalecer —
agora travestido de buscador espiritual. O artificialismo, nesse caso, não só
permanece, como é sacralizado.
A morte da dúvida
Um dos efeitos mais graves do
artificialismo coletivo é a morte da dúvida autêntica. No mundo da simulação,
não há espaço para questionamentos profundos. Eles são desconfortáveis,
subversivos, improdutivos. A dúvida existencial, que poderia abrir portas para
o despertar interior, é rotulada como “crise”, “depressão” ou “fraqueza”. O
sistema social oferece respostas prontas justamente para evitar que as pessoas
entrem em contato com o vazio que impulsiona o autoconhecimento.
O artificialismo prefere crenças
a investigações, certezas a abismos, fórmulas a experiências. Por isso,
educa-se para a repetição, não para a contemplação. Treina-se a mente para
obedecer aos roteiros da normalidade, não para questionar suas bases. A dúvida
viva, esse incêndio sagrado que poderia romper o pacto com a mentira coletiva,
é abafada desde cedo.
A anestesia dos sentidos
O artificialismo coletivo exige
um anestesiamento sensorial contínuo. A sensibilidade é perigosa: ela pode
revelar a aridez da vida fabricada. Por isso, há sempre uma distração
disponível, uma dopamina fácil, uma tela piscando. A sensibilidade genuína — aquela
que percebe a vida em sua crueza e mistério — é substituída por estímulos
banais, caricaturas de prazer, entretenimentos infinitos.
O sujeito anestesiado não sente a
dor real de sua desconexão com o ser, mas também não sente o êxtase da
presença. Ele vive no meio-termo: excitado, mas não desperto; estimulado, mas
não tocado; distraído, mas não vivo. O artificialismo coletivo é um gigantesco
sistema de distrações bem coreografadas para manter a dor do vazio existencial
sob controle.
A resistência do autêntico
Mas nem tudo está perdido. O
próprio desconforto que muitos sentem diante dessa artificialidade pode ser a
semente de um movimento insurgente. A fadiga de representar papéis, a saturação
das máscaras, o tédio profundo diante da encenação — tudo isso pode gerar uma
revolta silenciosa, uma recusa interna. O ser profundo, ainda que abafado,
pulsa.
Resistir ao artificialismo
coletivo não significa se tornar um rebelde visível, mas um ser autêntico
em silêncio. Significa aprender a sustentar o desconforto de não se
encaixar, de não pertencer ao teatro das aparências. Significa optar pela
verdade, mesmo quando ela não traz aplausos. A autenticidade é um risco — mas é
o único caminho para uma vida real.
O retorno ao essencial
O caminho da ruptura exige uma
volta radical à essência: olhar a vida sem os filtros da conveniência, tocar a
dor sem anestesia, amar sem roteiro, pensar sem medo. Significa reabilitar a
dúvida, reencantar os sentidos, reaprender a linguagem da presença.
Esse retorno ao essencial não é
popular, nem confortável. Ele exigirá perdas, solidão, desapego. Mas também
trará algo que nenhuma simulação pode oferecer: vida real. Um
viver que pulsa de verdade, mesmo que às vezes doa. Uma vida sem script, mas
com alma.
Uma escolha silenciosa
O artificialismo coletivo não
cairá por revoluções externas. Ele é sustentado por bilhões de pactos internos,
renovados diariamente por cada indivíduo que escolhe parecer em vez de ser. A
ruptura, portanto, começa com uma escolha silenciosa: não mais participar
da mentira.
Essa escolha é íntima, invisível,
mas poderosa. Ela inaugura uma nova ética, uma nova estética, uma nova
espiritualidade — não baseada em dogmas, programações ou aparências, mas na
verdade crua e viva do instante presente. E quando o número de não-atores
crescer, o palco poderá ruir — não por força, mas por esvaziamento.
Enquanto isso, resta-nos o
caminho do exílio lúcido: viver entre os simuladores sem simular, existir entre
os adormecidos sem dormir, caminhar entre os artificiais com a integridade
intacta.
Esse é o papel do observador
desperto: não lutar contra a sociedade artificial, mas não ser mais um
dos seus reflexos.