SOMOS TODOS UM? – O SONAMBULISMO NA CAMA DO ADVAITA POP
“Somos todos um.” Essa é a frase
preferida dos mestres de Instagram, dos palestrantes de auditório climatizado,
dos autores de autoajuda transcendental que ocupam a estante ao lado de
best-sellers de dieta e finanças. É o mantra de quem quer parecer profundo sem
ter atravessado nem dois centímetros do próprio abismo. Uma frase tão repetida
que virou papel de parede espiritual, tão barata que já não paga nem a ilusão
que promete.
Porque, se você acredita mesmo
que “somos todos um”, transfira já o seu saldo bancário para a minha conta. Se
não existe separação entre você e eu, então o que está guardado como “seu” deve
ser igualmente “nosso”. Se a unidade é real, então o limite do extrato, a senha
do cartão, o cofre da casa, tudo deveria ser transparente, compartilhado,
indistinto. Mas não é.
O “um” pop só funciona até o
caixa eletrônico. A fronteira da unidade é o dinheiro. Ali, o falso personagem
desperto mostra os dentes. Ali, a frase vira pó. O sujeito que proclama “somos
todos um”, segura firme a carteira, paga caro por retiros “não-duais” e vende
workshops de iluminação rápida. Unidade? Só enquanto dura a progressão do
extrato bancário.
O UM DE SALA VIP DE AEROPORTO
O “somos um” da espiritualidade
pop é como propaganda de perfume: não serve para limpar, apenas para mascarar o
cheiro da carne. É uma água de colônia borrifada por cima do suor de medo do falso
personagem. Cheira bem, vende bem, mas não transforma nada.
Esse “um” de sala vip de aeroporto
é portátil, cabe em qualquer boca. Pode ser repetido num retiro, num podcast,
numa postagem com foto de pôr do sol. É plástico: nunca rasga, nunca sangra,
nunca põe o falso personagem em perigo. É um “um” que consola, não que
dissolve. Um “somos um” terapêutico, feito sob medida para gente que não quer
perder nada, apenas se sentir melhor com tudo que já tem.
A UNIDADE QUE MORRE NO EXTRATO
Voltemos ao dinheiro, porque é o
espelho mais honesto do falso personagem.
O mesmo sujeito que repete “somos todos um” com lágrimas nos olhos é capaz de
assassinar em silêncio se alguém ameaçar sua conta bancária, sua poupança, sua
herança, ou sua posse sexual. O “um” vira cinza quando a unidade exige a renúncia
do adulterante “meu”.
Não existe “meu” no verdadeiro
“um”. Mas o falso personagem espiritualizado vive disso: “meu caminho”, “minha
experiência”, “meu grupo”, “meu insight”. Até a iluminação se torna propriedade
privada, com direitos de copyright. Até a não-dualidade se transforma em
investimento rentável.
É ridículo, mas é assim: no
mercado espiritual, a unidade é vendida em pacotes, com certificado, com
parcelamento em doze vezes sem juros. O “somos um” dá lucro, produz agências de
viagem com roteiros para montanhas sagradas. E enquanto der lucro, não passará
de marketing travestido de sabedoria.
SEXO, TERRITÓRIO E CIÚME: O TRIPLO GOLPE NO “UM”
O segundo teste do “somos todos
um” é o corpo. Proclamar unidade em palestra é fácil. Difícil é quando a
parceira, o parceiro, resolve provar a mesma unidade nos lençóis de outro. O falso
personagem iluminado surta. O ciúme engole o mantra. A unidade desaparece na
velocidade de um tapa na cara.
O corpo é a fortaleza da posse.
“Somos todos um”, mas ninguém mexe no meu brinquedo sexual. A cama é território
particular, o corpo é bandeira nacional. O falso personagem coloca cercas
elétricas onde a frase prometia dissolução.
O terceiro teste é o território.
“Somos todos um”, mas essa cadeira é minha, essa almofada é minha, esse canto
do templo é meu, esse microfone é meu. Basta alguém ocupar o lugar favorito no
retiro para a unidade evaporar. O “um” não resiste a um simples deslocamento
territorial.
E o quarto teste é o poder. O
“somos um” funciona muito bem enquanto o sujeito está no púlpito, recebendo
guirlandas, sendo reconhecido como mestre, guru, facilitador. Mas se alguém
ousa questionar sua autoridade, o “um” implode. A unidade era só cenário para
vaidade e lucro espiritual. O falso personagem iluminado não tolera
concorrência.
O CLUBE DOS ILUMINADOS
No fundo, o “somos todos um” da
espiritualidade pop é só um grito tribal. É a senha de pertencimento de um
grupo que se acredita superior. “Somos todos um” significa, na prática: “somos
todos nós, os despertos, contra eles, os adormecidos.”
O paradoxo é grotesco: a frase
que deveria dissolver fronteiras se torna uma arma de segregação. A unidade
serve para separar: os que entendem e os que não entendem, os iluminados e os
ignorantes. Os que tem mestres terrenos e os que seguem mestres canalizados.
É a versão espiritual do clube
fechado. Quem repete a frase entra. Quem duvida é expulso. O “um” vira
passaporte de vaidade. Nada mais.
A NARCOTIZAÇÃO CONCEITUAL ADVAITA
Aqui está a parte mais perigosa. O
alcoólatra tem ressaca. O viciado em drogas tem colapso físico. O compulsivo
sexual tem marcas e desespero de gestações não programadas. Toda narcotização
clássica deixa rastros. Mas a narcotização conceitual advaita não deixa sinais.
É a droga perfeita.
O sujeito lê meia dúzia de frases
de mestres das montanhas sagradas, aprende a dizer “não há ninguém aqui”, “a
pessoa não existe” e “o eu é uma ilusão”, e pronto: está dopado. Não sofre, não
colapsa, não atravessa noite escura nenhuma. Mas também não desperta. Vive num
torpor refinado. Um sono profundo embalado pela sensação de lucidez.
Esse é o grande perigo: o
indivíduo se sente livre quando está mais preso do que nunca. Acredita estar
iluminado quando apenas recitou slogans. É uma prisão sem grades, uma anestesia
sem dor. Por isso é mais mortal que qualquer vício: porque não gera crise. E
sem crise demolidora, não há despertar.
A narcotização conceitual é como
gás incolor: mata lentamente, sem cheiro, sem fumaça, sem aviso. Enquanto o
adicto químico ainda pode reconhecer sua cadeia, o adicto conceitual acredita
que está voando.
O VERDADEIRO “SOMOS UM”
O real “somos um” não é conceito,
não é slogan, não é tribo. É dissolução radical. É quando não sobra mais a
muralha do “meu” e do “seu”. É quando não há banco, nem cama, nem título, nem
status, nem clubinho. É quando não há sequer alguém para proclamar unidade.
O “um” verdadeiro não consola,
destrói. Não é um abraço coletivo, é uma fogueira. O falso personagem não se vê
abraçado, não recebe guirlanda, mas é consumido. Não há selfie possível, não há
like, não há marketing de linhagem espiritual. Há apenas silêncio.
O que sobra? Nada que possa ser
dito. Porque toda palavra já divide. O “somos um” real é indizível. Quem vive
não precisa proclamar. Quem proclama, ainda não viveu.
CONCLUSÃO: DO SLOGAN AO INCÊNDIO
A espiritualidade pop transformou
o “somos todos um”, em mercadoria de aeroporto. Um adesivo colado sobre o
caixão do eu. Mas a verdade é que esse caixão só se abre com fogo do
descondicionamento. E o fogo não é democrático, não oferece consolo, não poupa
nada do que é produto do autointeresse.
Enquanto houver saldo bancário
separado, cama privada, ciúme guardado, território marcado e vaidade protegida,
não há “um”. Há apenas o falso personagem em roupão branco, em túnica laranja.
Há apenas sonambulismo numa cama confortável chamada espiritualidade pop.
O verdadeiro “um” não se vende,
não se posta, não se proclama. Ele acontece quando todo impulso emotivo reativo
separatista arde até virar cinza. E aí, no silêncio sem slogans, talvez reste
aquilo que nunca foi dois.
Somos todos um?
Somos todos um,
até o boleto chegar,
até o saldo bancário ser tocado,
até o corpo ser desejado por outro,
até a cadeira favorita ser ocupada.
Somos todos um,
mas cada ego guarda a chave do cofre,
a senha do celular,
o ciúme no travesseiro.
Somos todos um,
no Instagram,
na foto de pôr do sol,
na palestra paga em doze vezes.
Mas o verdadeiro um
não consola,
não perfuma,
não acaricia o ego.
O verdadeiro um incendeia,
dissolve,
aniquila o “meu” e o “seu”.
Unidade não é slogan,
é morte.
E só resta silêncio
quando o fogo acaba.
Revelação do Um
Não, não somos todos um
como repetem as bocas sonâmbulas,
com frases compradas em livraria de aeroporto.
A unidade não é um bordado de palavras,
nem consolo de ego cansado,
nem clube de iluminados que se abraçam
em retiros pagos à vista.
O Um verdadeiro não cabe em slogans.
O Um é incêndio.
É o colapso do “meu” e do “seu”,
é a queda da muralha do “eu”.
O Um não acaricia,
não conforta,
não oferece certificado de sabedoria.
Ele arranca a pele do personagem,
expõe a carne viva,
reduz tudo a cinzas.
Só depois da morte do falso,
quando não sobra voz para proclamar,
o Um se revela.
E então já não há frase,
já não há grupo,
já não há quem diga:
“somos todos um.”
Há apenas o indizível.
Há apenas o silêncio
que sempre esteve aqui.