O impulso sexual no processo de
descondicionamento
Na crise iniciática, o impulso
sexual se acentua, torna-se compulsão. Já na fase do abismo do terror,
desaparece. Aqui tocamos em dois momentos diferentes da travessia iniciática:
1. A intensificação do impulso
sexual na crise iniciática
No início do processo, quando a
identidade começa a rachar, o falso personagem perde suas âncoras, o
corpo-mente reage com violência. O instinto sexual aparece como compulsão
porque é uma das vias mais primordiais de descarga de energia psíquica. É o
“último reduto” da estrutura condicionada tentando se agarrar ao prazer
imediato, à sensação de vitalidade e à ilusão de continuidade. O sexo, nesse
estágio, funciona quase como válvula de escape para a tensão insuportável da
dissolução da velha estrutura. O desejo se torna obsessivo porque a psique teme
o vazio que se anuncia.
2. O desaparecimento da libido
na fase do abismo do terror
Quando o mergulho avança e se
entra no “abismo”, a energia vital não flui mais para os antigos canais de
descarga. O sujeito não sente sequer o apelo da sexualidade — algo que, para
muitos, é mais assustador do que a compulsão inicial. O desaparecimento da
libido expõe um vazio nu, um deserto interior. É como se a vida tivesse
recolhido o sopro, suspendendo o movimento das pulsões. Esse estado não é
patológico, mas iniciático: a energia que antes se esvaía em busca de prazer
começa a se recolher para dentro, preparando a transmutação em lucidez.
Em termos simbólicos:
- Na crise → O impulso sexual ainda busca
a continuidade da forma, o contato, a ilusão de “ser alguém”.
- No abismo → O impulso morre. O
indivíduo é lançado no nada, sem desejo, sem fome, sem chão.
É nesse ponto que muitos
confundem o processo com depressão clínica. A diferença é que, no abismo, essa
suspensão da libido não é apenas falência vital, mas a preparação para que a
energia se descole do instinto e possa florescer em consciência não dual.
Na crise iniciática, um dos
fenômenos mais perturbadores é a intensificação súbita do impulso sexual. O
corpo parece tomado por uma força instintiva que busca, a qualquer custo,
descarga e alívio. Esse movimento não surge por acaso. Quando a identidade começa
a se fragmentar, o falso personagem, em desespero, procura vias de sustentação.
A sexualidade, sendo um dos centros mais primordiais de energia, torna-se a
saída natural para essa tensão psíquica insuportável. O desejo se converte em
compulsão, o impulso parece maior que a vontade consciente, como se houvesse
uma força subterrânea exigindo continuidade, prazer e contato, para que a
ilusão de “existir como alguém” não se dissolva. Nesse estágio, a libido não é
apenas biológica: é uma tentativa de manter a coesão do eu. O sexo, então, aparece
como último reduto de vitalidade em meio ao colapso das antigas referências. É
a tentativa desesperada de escapar da aproximação do vazio.
Mas, à medida que o mergulho
avança e a crise se transforma em travessia, há uma inversão radical. O que
antes se apresentava como compulsão agora se extingue. Chega o momento do
abismo, a fase do terror nu, em que a energia não flui mais para os canais conhecidos
de prazer e descarga. A libido desaparece, e com ela também a sensação de
continuidade psíquica sustentada pelo desejo. O sujeito não sente fome de
contato, não sente a ânsia de gozo, não sente sequer o apelo que outrora
parecia inextinguível. A vida se retrai. O corpo e a psique experimentam um
estado de suspensão, como se tudo tivesse sido drenado. Essa ausência de pulsão
é vivida como morte em vida, pois o que resta é apenas o nada: um deserto onde
nem mesmo o instinto sexual, esse impulso tão ligado à sobrevivência, consegue
oferecer chão.
Esse desaparecimento da libido,
embora aterrorizante, carrega um sentido iniciático. Ele revela que a energia,
antes dispersa em busca de prazer, começa a se recolher de volta à fonte. A
compulsão inicial representava a fuga do vazio; já a esterilidade do abismo é a
aceitação forçada do nada. Muitos confundem esse estado com depressão clínica,
porque ele compartilha a mesma aparência de falta de vitalidade e ausência de
desejo. Mas há uma diferença crucial: na depressão comum, a energia se encontra
bloqueada, sufocada pelo peso da dor psíquica. No abismo iniciático, ela não
está bloqueada, mas recolhida. Está sendo retirada dos antigos circuitos de
dispersão para, mais tarde, renascer sob outra forma.
No nível simbólico, pode-se dizer
que, na fase da compulsão, ainda é Eros quem domina: o instinto de
continuidade, a busca por se fundir com algo ou alguém para escapar da
fragmentação. Já no abismo, Eros morre, e Thanatos se revela: uma morte
simbólica, onde toda ânsia de permanência e prazer é arrancada. O indivíduo é
deixado sozinho diante do nada, despojado até mesmo do impulso mais básico que
o sustentava como criatura. Essa suspensão é necessária para que, em algum
momento, a energia se transmute e volte não mais como pulsão de gozo, mas como
força de clareza e presença.
Esse ciclo — da compulsão sexual
até o apagamento da libido — não é patológico, mas pedagógico. Ele mostra o
quanto a sexualidade, tão exaltada e temida, está enraizada no próprio
mecanismo de sustentação do falso personagem. Quando a máscara cai, ela
primeiro grita em excesso; depois silencia completamente. No silêncio do desejo
morto, o que resta é o ser nu, sem apoio, sem fuga, exposto à vastidão. Esse é
o ponto em que muitos desmoronam e recuam, buscando refúgio em novos prazeres
ou distrações. Mas para aqueles que suportam permanecer no deserto, o vazio da
libido se transforma em matriz de transfiguração. A energia que antes buscava
prazer se converte, lentamente, em energia de visão. O impulso cego dá lugar à
lucidez silenciosa. O eros que queria possuir renasce como amor impessoal, uma
chama que não depende de objeto nem de descarga.
No instante em que a libido se
apaga no abismo, o sujeito sente como se tivesse perdido não apenas o desejo,
mas a própria possibilidade de estar vivo. A ausência de pulsão parece uma
amputação invisível: de repente, não há mais nada que o mova, nada que lhe dê
sentido, nada que justifique continuar respirando. É o choque mais brutal da
travessia, porque revela que o eu condicionado era sustentado por correntes
energéticas que agora se retraíram. O que antes parecia natural — o anseio pelo
contato, pela posse, pelo prazer — subitamente deixa de existir, e no lugar
surge um vazio quase inabitável. É nesse ponto que o terror se instala em sua
forma mais pura, pois não há compensação, não há fuga, não há sequer um
resquício de vitalidade instintiva que alivie o deserto.
Mas é justamente essa
esterilidade, tão dolorosa e aparentemente sem saída, que contém a semente da
transmutação. Quando a energia não encontra mais saída pelos canais da
compulsão e do prazer, ela não desaparece; ela se recolhe ao fundo, à raiz.
Esse recolhimento é o que prepara o salto qualitativo. O ser humano, acostumado
a identificar vitalidade apenas com desejo, interpreta o recolhimento como
morte. Porém, no plano iniciático, essa morte é necessária: somente o que morre
pode renascer em outro nível.
A transmutação começa lentamente,
quase imperceptível. Primeiro, o sujeito nota que, apesar da ausência de
desejo, há algo que permanece. Uma chama silenciosa, quase sem forma, que não
depende de objeto nem de estímulo. É uma presença nua, desprovida de direção,
mas dotada de uma clareza nova. Aos poucos, a energia que antes buscava
descarga se reorganiza como atenção. A força que antes se dispersava no
instinto de gozo começa a condensar-se em visão. O mesmo impulso que outrora
exigia fusão com outro corpo agora se revela como capacidade de estar inteiro
em si, sem necessidade de complemento. O fogo de Eros, morto no nível da
pulsão, ressuscita no nível da consciência.
É nesse renascimento que surge a
possibilidade do amor impessoal. Diferente da paixão condicionada, que depende
da posse, da troca ou da continuidade, o amor impessoal nasce como expressão
natural do ser. Ele não busca se saciar em alguém, não exige retorno, não se
funda em promessas. Ele simplesmente flui como calor silencioso, como
reconhecimento da vida em tudo o que existe. É o mesmo Eros, mas purificado do
instinto de sobrevivência. É energia vital convertida em compaixão.
A travessia da libido compulsiva
até o vazio estéril, e daí até o florescimento do amor impessoal, é o próprio
itinerário iniciático. No começo, a energia é instinto bruto: o sexo como
válvula de escape, como tentativa desesperada de escapar do nada. Depois, no
abismo, o instinto se apaga: o eu é privado da sua última âncora e exposto à
noite escura. Por fim, o que parecia morte se revela gestação: a energia
retorna, não mais como impulso de gozo, mas como chama de presença, como
lucidez que não depende de objeto.
Esse processo mostra que a
sexualidade é, ao mesmo tempo, um obstáculo e uma chave. Enquanto compulsão,
prende o indivíduo à roda do prazer e da fuga. Enquanto transmutada, abre para
a experiência do amor que não tem dono. O instinto, purificado pelo fogo da
morte simbólica, deixa de ser uma força cega e se torna luz. Assim, o que
parecia ser o fim — a extinção da libido no abismo — é apenas o limiar de um
outro modo de viver: não mais sustentado pela busca, mas pela presença. Não
mais movido pela falta, mas pela plenitude silenciosa que descansa em si mesma.
Quando a energia transmutada
começa a se estabilizar, o sujeito nota que algo mudou de forma irreversível.
Antes, a vida era vivida a partir de uma carência fundamental: o desejo, seja
sexual, emocional ou existencial, era o motor oculto que empurrava cada gesto.
Tudo era busca — busca de contato, de prazer, de reconhecimento, de sentido. No
entanto, após a travessia do abismo, essa compulsão de buscar perde o centro de
gravidade. Surge uma qualidade nova: a vida começa a ser vivida não a partir da
falta, mas a partir da plenitude silenciosa que repousa em si mesma.
Esse estado não se instala de uma
vez. No início, ele aparece como lampejos. Momentos em que, de repente, o
sujeito percebe que está simplesmente presente, sem exigir nada da realidade.
Esses instantes, ainda frágeis, carregam uma clareza tão densa que se tornam
memoráveis. Não há euforia, mas também não há vazio. Há uma simplicidade
radical: estar, apenas. Aos poucos, esses lampejos se tornam mais frequentes,
até que a presença deixa de ser exceção e começa a se tornar o eixo invisível
da existência.
O amor impessoal é o primeiro
fruto dessa estabilização. Diferente da afetividade condicional, que sempre
nasce de preferências, simpatias ou vínculos de posse, o amor impessoal é uma
emanação natural da presença. Ele não depende de histórias, nem de reciprocidade,
nem de projeções. Ele brota como reconhecimento da vida em tudo que se
manifesta: uma planta, um rosto, uma voz, até mesmo o silêncio entre dois
seres. Esse amor não é sentimentalismo, não se confunde com apego; é mais
próximo de uma reverência silenciosa, de uma comunhão com a essência daquilo
que é.
No cotidiano, essa nova energia
se traduz em transformações sutis. O impulso sexual, que antes aparecia como
compulsão, agora pode se expressar como ternura, como toque não possessivo,
como celebração da vida em outro corpo sem a ânsia de apropriação. Quando não
há parceiro, a energia não se converte em frustração: ela permanece como fogo
silencioso dentro de si, uma fonte de vitalidade que não exige descarga. A
solitude deixa de ser deserto e se torna espaço fértil. O silêncio, que antes
era sinônimo de vazio, agora é percebido como plenitude.
Essa lucidez viva não significa
ausência total de desejos ou instintos. O corpo continua humano, com suas
necessidades naturais. Mas a diferença é que a consciência já não se identifica
mais com eles. O desejo pode surgir, mas não comanda. O impulso pode aparecer,
mas não define. O que antes era prisão torna-se apenas um movimento transitório
no campo da presença. Assim, a energia sexual, emocional e mental deixa de ser
tirana e passa a ser material criativo. Ao invés de consumir o sujeito, ela se
torna combustível para expressar clareza, criatividade, compaixão.
Com o tempo, essa estabilidade se
aprofunda. O sujeito descobre que não precisa se esforçar para “ser presente”:
a própria vida, quando não é manipulada pela mente, já é presença. Não há mais
luta para manter estados especiais de consciência, porque a lucidez não é
estado — é fundamento. Isso se traduz em leveza no cotidiano, mesmo em meio a
tarefas triviais. O trabalho, a conversa, o caminhar, tudo se torna extensão
desse mesmo silêncio vivo. O ordinário ganha dignidade, porque já não é
instrumento de fuga, mas expressão daquilo que é.
É nesse ponto que a transmutação
da energia atinge sua maturidade: o eros que buscava se perder em outro se
dissolve, e o fogo que restou ilumina tudo sem escolher. A vida deixa de ser um
campo de caça de experiências e se revela como campo de presença. O amor
impessoal não é mais uma prática, mas a respiração natural da consciência
desperta. Ele se traduz em gestos simples: uma escuta sem julgamento, uma
palavra que nasce do silêncio, uma capacidade de estar com o outro sem querer
moldá-lo ou possuí-lo.
O estágio final desse processo
pode ser chamado de lucidez viva. Não se trata de um estado alterado,
mas da percepção clara de que a vida é, em si mesma, autossuficiente. O sujeito
que atravessou o abismo já não busca apoio em desejos, crenças ou ideais. Vive
com o que há, sem cálculo, sem fantasia de completude. O antigo terror do vazio
se converte em confiança silenciosa. O que antes era compulsão se transmutou em
presença; o que antes era apego se transformou em amor livre; o que antes era
medo se dissolveu em clareza.
Essa lucidez viva não promete
imunidade ao sofrimento humano, mas dá ao sofrimento uma nova textura: ele já
não destrói, porque não encontra mais um eu central que se agarra e resiste.
Dor e alegria passam pelo mesmo espaço aberto da consciência. A energia que
antes era força cega agora é chama de visão. E a vida, em sua simplicidade nua,
finalmente pode ser habitada em profundidade.