O “personagem autocentrado” quando teme perder algo de si — dinheiro, conforto, estabilidade —, aprende a ser calculista até mesmo no terreno da compaixão. Diante o relato da miséria alheia, ele mede mentalmente cada gesto, cada moeda, cada minuto que possa “custar” algo de seu pequeno mundo de insegura segurança.
Então, pra não ter que estender a
mão, oferece palavras.
E não são quaisquer palavras: são
as que carregam a aura da piedade, a blindagem perfeita contra qualquer
acusação de egoísmo.
“Vou orar por você, irmão.”
“Coloque sua situação nas mãos de
Deus.”
“Reze, irmão, reze! E Deus,
proverá!”
Essas frases, ditas com o rosto
solene de quem cumpre um dever espiritual, são a versão polida do “posso,
mas... não quero me envolver. É a esmola verbal, o gesto de quem
quer parecer bom sem se desgastar.
E quando a oração por si só não
basta para encerrar o assunto, surge a estratégia mais antiga: culpar o necessitado.
— Sabe por que você está nessa
situação? É porque você se afastou da igreja.
— É porque abandonou a fé.
— É porque se afastou da família.
Assim, o cálculo está completo:
ao transformar a dificuldade do outro em “consequência merecida”, o observador
inocenta-se de qualquer obrigação real.
Ajudar? Pra quê, se “foi ele mesmo
quem cavou o próprio buraco”?
O ato de culpar ainda traz um bônus: alimenta a sensação de
superioridade moral, mantendo intacto o mito de que “comigo isso não
aconteceria, porque eu sou obediente, sou fiel, sou correto... sou um dito
cidadão respeitável, responsável, trabalhador”... Meu nome sempre foi
“Trabalho” e meu sobrenome, “Hora Extra”.
O álibi sagrado funciona como um escudo e uma máscara.
Escudo, porque protege da incômoda possibilidade de ter que dividir recursos.
Máscara, porque mantém o personagem da “pessoa de fé” no palco social.
A verdade é que, muitas vezes, não se trata de fé — mas de
medo. Medo de se aproximar demais da vulnerabilidade do outro e ver refletida
ali a própria fragilidade. Medo de descobrir que, no fundo, qualquer um pode
ser o próximo a precisar mais do que de uma oração.
Esse mecanismo da estrutura com base no medo e no cálculo
autocentrado, é genial. Mantém a aura de pessoa espiritualizada, não mexe no
bolso, não ocupa tempo e ainda garante uma pitada de superioridade moral. É a
caridade de “baixo custo”, de zero investimento, mas de retorno de imagem
imediato.
No fim, chamam de fé. Eu chamo de covardia travestida de
aleluia.
E assim, seguimos, em nome de Deus, mas a serviço do medo e
do cálculo autocentrado.
Oração: a moeda mais barata da fé
Quando alguém chega com um problema sério — sério mesmo,
tipo não ter o que comer ou estar afundado em dívidas —, o calculista inseguro
já começa a fazer contas invisíveis:
“Se eu ajudar, vou perder dinheiro. Se eu não ajudar, vou perder a imagem de
gente boa. E agora?”
Resposta: simples. Usa-se o truque milenar da piedade
verbal.
— Vamos orar por você.
— Reze, irmão.
— Deus proverá.
Pronto. É como dar uma nota de zero reais com um sorriso de
santidade.
E se a consciência ainda resmungar, existe o modo
avançado da desculpa: culpar a própria vítima.
— Isso é porque você se afastou da igreja.
— Porque parou de orar.
— Porque abandonou a família.
Traduzindo: a culpa é sua, então eu estou moralmente
liberado de fazer qualquer coisa.
Esse mecanismo é genial. Mantém a aura de pessoa
espiritualizada, não mexe no bolso, não ocupa tempo e ainda garante uma pitada
de superioridade moral. É a caridade low-cost, zero investimento, retorno de
imagem imediato.
No fim, chamam de fé. Eu chamo de covardia travestida de
aleluia.