Há um instante silencioso, nu, onde toda a maquinaria da mente revela sua trama. Nesse instante, vê-se com clareza que os pensamentos que julgávamos nossos não passam de herança. As emoções que carregamos no peito, acreditando serem originais, são repetições de velhas ondas coletivas. Os sentimentos que nos dominam, ora ternos, ora sombrios, são frutos de uma longa cadeia de condicionamentos. Nada disso é novo. Nada disso é próprio. Somos repositórios de um viver herdado, até que a atenção desperta abre uma fresta no automatismo.
Entre todas as heranças, uma
delas se ergueu como sombra maior sobre a humanidade: a ideia de Deus — não o
mistério inominável, não o sopro que anima o invisível, mas a ideia
condicionada de um Deus que controla, que vigia, que pune, que exige que sua
vontade seja feita pelo sujeito. Um Deus transformado em carcereiro cósmico,
sentado num trono imaginário, anotando os erros e acertos de cada vida. Um Deus
que mais parece um pai punitivo ampliado ao infinito.
Sob esse olhar, o homem se fez
servo, não ser. Tornou-se marionete de uma vontade projetada, sempre temeroso
de falhar, sempre ansioso por aprovação. A vida foi reduzida a penitência, a
ensaio de obediência. O corpo já não podia dançar sem culpa, o pensamento já
não podia voar sem vigilância, o coração já não podia pulsar sem medo. Era
preciso viver como quem caminha num tribunal, com juízes invisíveis apontando
os dedos.
Mas esse Deus não é Deus. É
apenas a cristalização do medo humano diante do mistério. É o reflexo de uma
mente que não suporta a vastidão do desconhecido e prefere inventar um olhar
controlador para sentir-se “segura”. Esse Deus é apenas herança cultural,
condicionamento coletivo, emoção repetida de geração em geração.
E ainda assim, por séculos,
sustentou-se como centro da vida. As religiões ergueram templos, os sacerdotes
alimentaram o pavor, os impérios manipularam consciências em nome do castigo e
da salvação. Milhões se ajoelharam diante dessa imagem — não por amor ao
mistério, mas por medo da condenação.
O medo do castigo divino foi a
corrente invisível que manteve a humanidade infantilizada. E quando essa
corrente começou a se enfraquecer, quando o poder das instituições religiosas
se dissolveu em parte, o medo não desapareceu: apenas se transfigurou.
Hoje, na modernidade
espiritualizada, o inferno perdeu força, mas outra prisão tomou forma: o medo
de não se iluminar.
Se antes o grito era: “Tema
a Deus, obedeça para não ser punido”, agora o sussurro é: “Corra
atrás da iluminação, desperte ou ficará para trás.” O céu foi trocado
pelo nirvana, o inferno pelo fracasso existencial de não despertar. O mecanismo
é o mesmo: gerar angústia, produzir obediência, alimentar dependência.
Quantos hoje não vivem
atormentados, comparando-se com mestres, perseguindo estados finais,
colecionando técnicas, acumulando práticas? Quantos não meditam por ansiedade,
não fazem yoga por medo, não repetem mantras como quem repete fórmulas mágicas
para escapar do destino medíocre? A busca se tornou compulsão, e a compulsão se
disfarça de espiritualidade.
O mercado espiritual floresce
nessa ferida. Vende métodos, cursos, retiros, pacotes de iluminação. Promete
atalhos, acelerações, segredos revelados a preços salgados. Onde antes se
comprava indulgência para salvar a alma, agora se compra workshop para salvar a
consciência. É o mesmo comércio, a mesma exploração da insegurança humana.
E por trás de tudo isso, o mesmo
medo se mantém: medo de não ser aprovado, medo de não chegar lá, medo de não
alcançar o troféu último da existência.
Mas há um momento em que a
lucidez rompe o véu: o instante em que o sujeito percebe que tanto o castigo
divino quanto a iluminação como meta são fantasmas criados pela mente
condicionada. Ambos são chicotes invisíveis que mantêm o ser preso ao mesmo
círculo de culpa e expectativa. Ambos são formas de adiar a vida real em nome de
uma promessa futura.
E quando esse instante chega, o
chão treme. Porque sem Deus punitivo e sem iluminação recompensadora, que
transforma o sujeito em guru lucrativo, o que resta? Resta apenas a vida nua,
sem garantias.
Aqui está o abismo. Aqui está a
verdadeira crise iniciática. A mente, acostumada a seguranças, se vê diante de
um vazio imenso. Não há mais tribunal no céu, nem guirlanda com incenso de
massala no fim do caminho. Não há juiz, nem prêmio. Não há céu prometido, nem
iluminação parcelada.
É nesse ponto que muitos recuam.
Preferem voltar ao seio da religião que oferece um Pai severo, ou ao mercado
espiritual que oferece mestres e técnicas, porque pelo menos ali existe
promessa, existe roteiro, existe direção garantida. É mais confortável ser
servo de Deus ou discípulo de um método do que viver sem chão.
Mas a liberdade verdadeira não
nasce no conforto. Ela nasce exatamente nessa vertigem: quando o sujeito aceita
que não há garantias. Nem salvação divina, nem iluminação assegurada. Apenas
este instante. Apenas este respirar. Apenas este viver nu, sem grades e sem
coroas.
É aqui que a liberdade se mostra
como é: impessoal, sem objeto, sem slogan. Não é liberdade “para” algo, nem
“de” algo. É a liberdade que floresce quando a mente já não obedece a
narrativas herdadas.
Nesse espaço, o pensamento pode
surgir, mas não aprisiona. A emoção pode vir, mas não governa. O sentimento
pode arder, mas não define. Tudo é visto como herança, como onda passageira,
como movimento sem dono. O que resta é a clareza, a vigília silenciosa.
E nessa clareza, até o mistério
chamado Deus se revela não como carcereiro, mas como silêncio que permeia tudo.
Não como um olho julgador, mas como ausência de condicionamento. Não como uma
pessoa suprema, mas como o próprio espaço aberto da vida, que é você.
E a iluminação, que antes era
miragem, perde o peso de meta. O sujeito não precisa buscá-la, porque a busca
já era prisão. A clareza está aqui, quando nada mais é esperado, quando não há
futuro espiritual a ser conquistado.
Viver sem garantias é aterrador
para o falso personagem, mas é libertador para o ser anterior a qualquer
condicionamento. Porque no instante em que não há mais os condicionamentos “céu”
ou “iluminação futura”, a vida se revela como única. Nada a alcançar, nada a
temer. Só o mistério, só o sopro, só o presente.
E é desse vazio, dessa nudez
radical, que uma nova direção emerge. Não a direção imposta por um Deus herdado
ou autocriado por força do medo, nem a ditada por gurus ou tradições. É uma
direção espontânea, orgânica, sem mapa. Uma direção viva.
O sujeito, enfim, deixa de ser
servo. Não é mais marionete de um Deus imaginário, nem discípulo escravizado de
uma promessa espiritual. Torna-se livre para viver o real em sua inteireza.
Livre para errar sem culpa, para acertar sem orgulho, para amar sem barganha,
para morrer sem medo.
Essa é a liberdade que nenhum
sistema pode oferecer, porque não é produto. É uma lucidez que só pode nascer
quando todos os suportes caem. Uma lucidez que não se sustenta em dogmas, nem
em métodos, nem em certezas.
É duro, é solitário, é árido. Mas
é real.
Manifesto
A maturidade da observação
passiva não reativa, faz cair o Deus que pune e iluminação que recompensa. Faz
cair o medo de falhar diante do olhar divino e também o medo de não despertar
diante do olhar dos mestres.
Ela arranca tais condicionamentos
deixando apenas o vazio, deixando apenas o agora, apenas a vida, sem garantias.
A observação lança o sujeito nesse
chão sem chão, onde a verdadeira liberdade floresce: a liberdade de não ser
definido por pensamentos herdados, de não ser arrastado por emoções cultivadas,
de não ser escravizado por sentimentos repetidos, de não viver sob ameaças nem
recompensas.
A maturidade da observação, faz
com que a existência respire com dignidade, porque ela liberta o sujeito do pai
exigente e punitivo. Destrói o mercado espiritual, o céu e também a iluminação.
Ela deixa apenas o mistério, sempre maior do que qualquer ideia.