A memória distorcida
Há algo de paradoxal e cruel na
experiência do despertar parcial da Consciência Incondicionada: aquele lampejo
da realidade última, aquela fresta por onde a lucidez amorosa e integrativa — daquilo
que não tem nome — atravessou a mente por um instante — e depois se fechou.
Nada mais perigoso para o buscador do que este vislumbre interrompido, pois ele
se torna, com o tempo, tanto um chamado quanto um veneno.
Por um lado, o despertar parcial
denuncia que existe “algo mais” do que a prisão do medo e do cálculo
autocentrado em que vivemos. Por outro, converte-se em memória obsessiva,
comparativa, frustrante. O personagem, que foi dissolvido no instante do vislumbre
da Consciência Incondicionada, retorna para reclamar posse da experiência. E,
ao fazê-lo, corrompe-a. O que era puro agora é um registro distorcido, um
simulacro que alimenta desejo, esperança e angústia.
Assim nasce o vislumbre, como
trave de tropeço: a lembrança do que foi visto, mas não permanece.
O Fardo de Uma Lucidez Perdida
Quem provou o gosto da lucidez
sabe: não é possível retornar completamente à inconsciência. A visão não se
apaga, mesmo que a experiência não possa ser sustentada. Esse resíduo, essa
marca, é como uma tatuagem no ser profundo. E, paradoxalmente, é também um
fardo.
Porque agora a vida ordinária já
não satisfaz. Tudo parece demasiadamente pequeno, pobre, falso, superficial,
medíocre. Os jogos sociais que antes entretinham tornam-se caricaturas
ridículas. As metas que antes justificavam o esforço diário soam como piadas. E
o que resta? Uma existência pendurada entre dois mundos: o velho mundo do
condicionamento, onde ainda se vive, e o novo mundo da liberdade amorosa,
criativa e integrativa, que se conhece, mas não se alcança.
O vislumbre da Consciência
Incondicionada foi uma revelação, mas agora é também uma maldição. Ele lateja
como uma ferida aberta. Quem já viu a luz não consegue amar a escuridão sem
culpa. Mas, ao mesmo tempo, não consegue permanecer na luz — porque ela não é
algo que se agarra, não é um estado fixo que se conquista pela vontade. E é
nesse hiato que surge a dor mais sutil: a memória torna-se um obstáculo.
Quando a Memória Vicia
No início, há gratidão: “Fui
tocado por algo que poucos tocam.” Mas logo depois nasce a ânsia: “Preciso
voltar àquele estado.” O personagem, mestre em sequestrar tudo, agora sequestra
até mesmo a experiência que o desinflou momentaneamente. Ele a transforma em
meta. Cria métodos, programas espirituais como formas de tentar repetir sua
bem-aventurada manifestação. Mas nada do que é vivo pode ser repetido.
O vislumbre da Consciência
Incondicionada foi espontâneo. Veio quando não havia esforço, quando a
vigilância estava limpa, quando o desejo não contaminava. E agora, na ânsia de
recuperá-lo, perde-se a inocência que o permitiu. Quanto mais se tenta recriar,
mais distante ele fica. Quanto mais se tenta condicionar sua vinda, mais se
alimenta a estrutura, agora, com uma forma diferente de condicionamento.
É como tentar prender o vento com
as mãos. O gesto em si é a negação daquilo que se quer reter. A memória do
vislumbre é o veneno, porque nos faz acreditar que a experiência foi algo que
aconteceu no tempo, e não a própria ausência de tempo. Nos faz crer que foi “um
estado especial”, e não a dissolução de todos os estados.
E assim, o buscador tropeça naquilo que deveria libertá-lo.
O Orgulho Disfarçado
Há ainda uma armadilha mais
sutil: o orgulho espiritual. “Eu vi.” Essa frase, dita ou não, cria um abismo
entre quem vislumbrou e quem não vislumbrou. O personagem, ferido mas vivo, se
orgulha de ter sido tocado pelo intocável. E, na sombra desse orgulho, a mente
começa a se cristalizar novamente.
Já não se busca com inocência,
mas com presunção. Já não se caminha com humildade, mas com a vaidade secreta
de quem “sabe algo que os outros ignoram”. Isso é veneno puro. Porque onde há
comparação, há personagem. Onde há superioridade, a lucidez se apaga.
O vislumbre da Consciência foi
verdadeiro, mas agora é usado como moeda. Um capital simbólico que dá ao
buscador um senso ilusório de importância. A lembrança — que poderia servir
como farol silencioso — converte-se em corrente.
O Deserto Entre Dois Mundos
Quem teve um vislumbre raramente
volta a se sentir confortável na sociedade. Mas também não se estabeleceu na
liberdade. Fica no deserto. E o deserto é árido. Nele não há certezas, não há
mapas. É ali que muitos desistem. Alguns retornam as velhas neuroses, outros, enlouquecem.
Outros se refugiam em mestres, em satsang, religiões, grupos espiritualistas, drogas,
bebidas enteógenas, militância política, qualquer coisa que devolva um pouco de
chão e lhes faça se sentir “alguém”.
O problema é que o deserto do
Real, não é um erro, não é uma maldição: ele é necessário. A travessia do
deserto é inevitável. Não existe atalho para a Consciência Incondicionada. Mas
a lembrança do vislumbre torna a travessia mais dolorosa, porque cria desejo,
cria expectativa, cria movimento no tempo psicológico. O buscador vive
comparando cada passo com aquele instante. Vive julgando tudo com a régua da
experiência passada. E isso gera frustração constante.
No fundo, essa é a prova final:
você é capaz de esquecer, até mesmo, a experiência mais sublime? Você é capaz
de deixá-la ir, como se nunca tivesse existido? É capaz de abrir mão até da lucidez
para que a lucidez seja?
A Sutil Tirania do Desejo Espiritual
O desejo é a raiz de toda prisão.
O desejo por poder, por prazer, por reconhecimento — sabemos disso. Mas há um
desejo ainda mais traiçoeiro: o desejo pela iluminação. Ele veste-se de pureza,
mas é desejo. Ele parece nobre, mas é só mais uma do personagem.
E a lembrança do vislumbre
alimenta esse desejo como lenha seca. A mente diz: “Eu já provei, sei que é
possível. Então preciso voltar.” Essa compulsão pode transformar a busca num
inferno. O buscador medita, jejua, lê, peregrina de mestre em mestre, busca por
lugares considerados sagrados, caminha por trilas místicas, busca nos fins de
semana, por locais de retiro de meditação, faz todo tipo de sacrifício
neurótico. Mas tudo isso nasce da mesma ilusão: a ideia de que a estabilização
da Consciência Incondicionada é algo a conquistar, algo que se obtém por cálculo
e esforço pessoal.
A verdade é cruel para o personagem:
não há “quem” possa estabilizá-la. Não há “eu” que desperte. Só ocorre quando
se dá, naturalmente, o colapso do eu. E enquanto houver quem queira repetir, a “segunda
vinda” é impossível.
A Única Saída: Morrer Para a Lembrança
A trave de tropeço só desaparece
quando a memória deixa de ser âncora. Quando o buscador compreende que até
mesmo a lembrança do Incondicionado deve ser sacrificada. É preciso matar o
último ídolo — e esse ídolo é a própria experiência.
Não se trata de negar o que
aconteceu, mas de não carregar. Não se trata de esquecer intelectualmente, mas
de não se apegar psicologicamente. A lucidez que veio não é algo que possa ser
guardado. Ela veio porque, por um instante, não havia ninguém tentando guardar
nada. Se quiser que volte, não tente.
O silêncio não é conquistado; é
permitido. A liberdade não é criada; é revelada quando não há busca. E isso
inclui a busca pelo que já se experimentou.
A mente quer repetir. Mas a vida
é sempre inédita. A verdade não é lembrança; é presença. Não está no passado
nem no futuro — está no agora, mas um agora sem o “personagem” que carrega
memórias.
Conclusão: O Último Apego
A lembrança do vislumbre da
Consciência Incondicionada é, talvez, o último apego a morrer. Depois dela,
resta apenas o deserto absoluto do Incondicionado — um estado em que não há
mais nada a segurar, nem mesmo o sublime. É aterrador, mas é também o portal.
Porque só quando não resta nada —
nem a lembrança, nem a esperança, nem o desejo — é que o Incondicionado se
revela sem véus. Não porque você condicionou sua manifestação, mas porque você —
como personagem — desapareceu.
No fim, a trave de tropeço não é
a lembrança em si, mas o “personagem” que insiste em fazer dela um troféu.
Quando esse “personagem” morre, até mesmo a memória do vislumbre se dissolve na
dimensão eterna do agora. E então, aquilo que um dia foi apenas um raio de lucidez
torna-se o próprio sol, brilhando sem esforço, sem dono, sem tempo.
Para finalizar, deixamos aqui três
perguntas provocativas, para que possamos aprofundar nosso contato, através do
espaço dos comentários aqui no nosso canal. São elas:
- Você já observou que o apego ao vislumbre é apenas
a máscara mais sutil do personagem tentando sobreviver?
- Se o vislumbre que você experimentou foi real, por
que agora você precisa se esforçar para repeti-lo?
- O que é mais difícil: despertar ou abandonar até
mesmo a lembrança do despertar?