A dura verdade
Mas a verdade é dura, quase cruel
para a mente habituada ao conforto: não existem atalhos para o
descondicionamento pleno.
O peso de séculos sobre um corpo frágil
Tudo isso cria uma prisão
psíquica com muros altos, tão altos que a maioria nem imagina que está dentro
de um cativeiro. Essa é a primeira tragédia: a prisão é invisível, e
acreditamos ser livres.
Quando alguém, em um momento de
lucidez, percebe as grades — o choque é brutal. Descobre-se que cada pensamento
é condicionado, cada desejo é fruto de influências, cada opinião é eco de uma
propaganda que já não lembramos de onde veio. Essa percepção é rara e dolorosa,
e muitos fogem dela como quem foge do abismo.
Por que não existem atalhos?
A desconstrução dessa estrutura
psíquica — insegura e calculista — não ocorre em um fim de semana de vivência
retirada, nem na repetição automática de frases melosas de homens sentados de
pernas cruzadas, que se autoproclamam como “mestre”. Ela exige atenção
contínua, vigilância interior, uma investigação sem concessões. Não é um
processo linear. É um desmanchar paciente, um observar que dissolve, não um
fazer que acumula.
A mente condicionada busca sempre
uma receita porque tem horror ao silêncio, ao vazio, ao não-saber. Mas o
descondicionamento exige exatamente isso: entrar no não-saber, caminhar sem
garantias, suportar o colapso das certezas. Não é um caminho que a massa quer
trilhar, porque não promete glória, não garante status espiritual, não
oferece a embriaguez das experiências místicas fáceis.
A indústria dos atalhos
Mas toda técnica que promete um
atalho é, na verdade, um novo condicionamento. Você troca uma gaiola por outra
mais sofisticada, mas colorida, mais bem decorada. Muda as palavras, os
rituais, os símbolos, as roupas, as músicas, os aromas, a alimentação, mas
continua prisioneiro. Por isso, o verdadeiro descondicionamento não começa com
técnicas. Começa com o colapso da fé imatura em todas as técnicas.
Esse é um ponto que quase ninguém
quer tocar, porque é o fim da indústria espiritual, é o fim da exploração do Incondicionado,
é o fim das agências de turismo espiritual. Quando se compreende que não
há método que possa condicionar a estabilização do que é incondicionado,
todo comércio do despertar se revela uma fraude sutil.
O preço do real despertar
Essa travessia não pode ser
terceirizada. Nenhum mestre pode fazê-la por você. No máximo, um mestre
verdadeiro te apontará o óbvio: não confie nem mesmo em mim. Se ele
é honesto, dirá: queime meus livros, esqueça minhas palavras, olhe por
si mesmo.
Esse processo é tão brutal que muitos desistem e voltam para
a hipnose coletiva. Retornam ao conforto da rotina, às crenças reconfortantes,
aos dogmas que dão um sentido fictício. É mais fácil continuar no sonho do que
suportar a vertigem no deserto da lucidez.
A ilusão da experiência mística
Muitos acreditam que experiências místicas, visões, êxtases, são sinais de libertação. Engano. Essas experiências são estados da mente, e tudo que é um estado passa. Podem acontecer, mas não significam descondicionamento. Pelo contrário, podem criar um apego, uma nova busca.
O que não passa é a lucidez
silenciosa, aquela que não é fruto de esforço nem de método. Ela não pode ser
buscada porque já está aqui, mas está encoberta pelos escombros do
condicionamento. E remover esses escombros exige observar, observar e observar
— infinitamente.
A dificuldade de sustentar a observação
A mente é preguiçosa e ansiosa. Ela busca atalhos porque observar sem julgamento, sem interferência, sem expectativa, é árduo. Não há glamour na observação. Não há diploma, não há certificado, não há medalha espiritual. Há apenas a nudez da observação.
Mas essa observação contínua é
dinamite. Ela destrói ilusões milenares, desmancha estruturas e apegos que
pareciam inabaláveis. Quando você observa sem se apegar, sem tentar controlar, quando
identifica sem se identificar com o identificado, algo começa a morrer. Esse
algo é o falso. E quando o falso morre, não sobra nada para se segurar. Esse
nada é o que a mente teme — e é justamente esse nada que é liberdade.
Por que isso não pode ser acelerado?
Porque cada camada de condicionamento é um nó psíquico, emocional e energético. Não se trata de teoria, mas de estruturas vivas que sustentam o “personagem”. Romper isso de forma abrupta pode levar à psicose, ao colapso mental. É por isso que o real descondicionamento é gradual no tempo, mas atemporal no insight: cada observação dissolve uma parte do falso, e essa observação não pode ser forçada.
A impaciência é o maior inimigo.
Quem busca pressa não busca liberdade, busca alívio. E alívio é anestesia, não
lucidez.
O paradoxo final
Não existem atalhos porque não
existe “caminho” no sentido tradicional. Todo caminho implica tempo, esforço,
etapas — e isso pertence à mente condicionada. O descondicionamento pleno não é
algo que você alcança: é algo que emerge quando tudo que é falso cai. Não
é um fazer, é um desfazer. Não é conquista, é abandono.
Esse abandono é o que ninguém
quer, porque o personagem sobrevive de acumular: acumular experiências,
acumular conhecimentos, acumular técnicas. Quando você observa que tudo isso é
peso morto, o jogo acaba. E nesse fim começa algo sem nome — algo que não pode
ser ensinado nem vendido.
Quem quer atalhos não quer liberdade, quer conforto.
O descondicionamento não é
confortável. Ele é o fim do personagem que busca. Por isso, quase ninguém vai
até o fim. Mas para quem ousa, não há método, não há grupos e programações, não
há mestre, não há caminho — apenas o silêncio nu daquilo que é.
Agora,
caro confrade, seguem três provocações afetuosas:
- Será
que a lembrança do despertar é luz ou a armadilha mais sutil do personagem?
- Você
já percebeu que o desejo de repetir o vislumbre é a negação do próprio
silêncio?
- Quem
quer reviver a experiência: a consciência ou o velho “personagem”
disfarçado de buscador?
Ficamos por aqui, deixando aquele fraterabraço, um chute nas
canelas e o desejo da companhia contínua de uma lucidez crua e cortante em seu
processo de descondicionamento.