O processo de descondicionamento nunca começa como uma revelação grandiosa. Ele se inicia de modo silencioso, quase imperceptível, quando o indivíduo percebe que não é aquilo que atravessa sua mente. Até então, o pensamento era o centro de gravidade da sua identidade: “eu sou o que penso, logo eu sou meu raciocínio, minhas memórias, minhas ideias”. Só que, no instante em que a observação desperta, abre-se uma fenda: há pensamentos, mas também há quem os veja. Essa fenda é a primeira rachadura no edifício do ego. Surge um espaço entre o observador e a mente pensante. E esse espaço já é liberdade.
A
primeira fase do descondicionamento é esse deslocamento da identidade. O
indivíduo deixa de se confundir com o fluxo incessante da mente. Não é mais o
pensamento que o carrega, é ele que o percebe. Isso não significa que os
pensamentos cessem; ao contrário, podem até se intensificar. Mas já não têm o
mesmo poder de arrasto. Já não são um destino inevitável. A mente continua a
falar, mas a pessoa descobre que pode ouvir sem obedecer.
A
segunda fase é mais densa e mais dolorosa. Se desidentificar do pensamento
ainda pode parecer simples para alguns, mas quando se trata das emoções, o
enraizamento é mais profundo. Pois o indivíduo não apenas pensa — ele sente. E
o sentir sempre parece mais íntimo, mais real, mais verdadeiro do que qualquer
raciocínio. A raiva, o medo, a paixão, a ansiedade, a tristeza: todas essas
ondas emocionais pareciam constituir a própria essência de “quem eu sou”. Mas
chega um momento em que o buscador vê: assim como os pensamentos surgem e
passam, as emoções também surgem e passam. Há algo que as testemunha. E se há
testemunho, não pode haver identidade total. O indivíduo não é a raiva que o
atravessa, nem a alegria que o euforiza, nem a tristeza que o deprime. Ele
percebe: eu não sou o que sinto. Essa percepção é um segundo desmoronamento. É
o descondicionamento emocional.
Então,
o processo se aprofunda. Não se trata mais apenas de se desidentificar da mente
ou das emoções, mas de ir até a raiz: os sentimentos e sensações mais sutis,
que parecem indissociáveis do corpo e do viver. A fome, o prazer, a dor, o
frio, o calor, os afetos íntimos, os pequenos estados de alma — tudo aquilo que
parecia ser o núcleo imediato do eu. Até isso se torna objeto de observação.
Surge então o terceiro deslocamento: eu não sou nem mesmo as sensações que me
atravessam. O corpo sente, o coração pulsa, os nervos vibram, mas há algo
anterior a isso tudo que apenas observa.
Esse
triplo descondicionamento — da mente, das emoções e das sensações — desmonta a
estrutura imatura da identidade. Cai a ilusão de que “eu sou o que penso”, de
que “eu sou o que sinto”, de que “eu sou o que percebo”. Desmorona o personagem
emotivo, reativo, sempre em busca de uma fuga ou narcotização. E quando o véu
cai, sobra apenas o silêncio lúcido: a pura observação.
Essa
observação não é uma prática, não é uma técnica, não é uma máscara espiritual.
É um estado. É a lucidez nua. É o olhar que não se confunde com o que olha. O
indivíduo, nesse ponto, não busca mais ser alguma coisa, não se apega mais a
nenhuma narrativa, não precisa se anestesiar com explicações ou pertencer a
histórias. Ele se torna espaço. Espaço de ver. Espaço de estar. Espaço de ser
sem precisar nomear.
O
descondicionamento, portanto, não é acumulação de novas ideias ou aquisição de
novas virtudes. É uma demolição. É a demolição dos centros falsos de
identidade. Primeiro a mente cai, depois caem as emoções, depois caem até as
sensações mais íntimas. E o que sobra não é vazio no sentido de ausência, mas
vazio no sentido de pureza. O indivíduo, agora, é observação pura — intocado,
livre, inabarcável.