Ao nosso ver, esse título — que
surgiu de uma conversa com um confrade no WhatsApp, nos abre um campo muito
fértil de observação. Ele toca em três rachaduras internas, que corroem a
profundidade da estabilização da lucidez libertária. São eles: a
distração, a impaciência e a indecisão.
Convidamos os confrades para mergulharmos juntos em questões
como:
- Como
cada uma dessas três forças age silenciosamente para sabotar o processo de
estabilização da lucidez libertária.
- Como
elas se reforçam mutuamente, criando um ciclo de estagnação.
- Qual
seria o antídoto prático e interno para cada uma — não como “dica
motivacional”, mas como posicionamento de consciência.
Então vamos olhar juntos
- Parte
1 – O buscador distraído: a consciência fragmentada e a fome por
estímulo.
- Parte
2 – O buscador impaciente: a pressa como fuga da profundidade.
- Parte
3 – O buscador indeciso: o medo de compromisso com o real.
- Parte
4 – A raiz comum e a via de ruptura.
Creio que, juntos, faremos um
mergulho sem verniz espiritual, expondo a anatomia psicológica dessas três
forças corrosivas e finalizando com a ruptura possível.
O BUSCADOR DISTRAÍDO, IMPACIENTE E INDECISO
Há buscadores que se perdem por ignorância.
Há buscadores que se perdem por vaidade.
Mas há um tipo mais sutil e comum — aquele que se perde por
fragmentação: não consegue permanecer inteiro diante da própria busca.
Esse buscador vive entre três campos minados: a
distração, a impaciência e a indecisão. Ele
pode estar rodeado de livros, mestres e técnicas, mas nunca atravessa a
soleira. Mantém-se na superfície, porque a própria estrutura interna está
sabotando a travessia.
1. O Buscador Distraído — a mente que não aguenta o
silêncio
A distração não é só “perder o foco” — é um vício de
superfície.
O buscador distraído não suporta a densidade do instante; precisa diluí-lo. O
silêncio o incomoda como um espelho que começa a mostrar rachaduras. Então, ele
troca de assunto, de prática, de mestre, de livro… sempre com a sensação de que
“ainda não encontrou algo que ressoe”.
Mas a verdade é que ele já encontrou — e
fugiu.
Encontrou uma prática ou um insight que começou a arranhar o verniz da sua
autoimagem, mas rapidamente desviou para outra coisa, chamando isso de “ampliar
horizontes”.
A distração é covardia camuflada de curiosidade.
O distraído coleciona fragmentos de caminhos, mas não
constrói um. Ele sabe falar de tudo um pouco, cita nomes, frases e tradições,
mas não experimenta nada até o fim. Vive na periferia do essencial, porque ir
ao núcleo exige permanecer — e permanecer exige uma renúncia total à voracidade
de estímulos.
O veneno da distração é que ela parece riqueza —
“estou sempre aprendendo” — mas é pobreza de presença. O distraído vive com mil
sementes na mão e nenhuma árvore na terra.
2. O Buscador Impaciente — a pressa como fuga da
profundidade
A impaciência é a pressa que, na verdade, é medo.
Medo de que o processo seja mais lento que o ego gostaria. Medo de que, ao se
entregar, descubra que não há garantias.
O buscador impaciente não quer atravessar o deserto; quer um
teletransporte para o oásis. Procura atalhos, técnicas “definitivas”, retiros
“transformadores” de fim de semana. Sua relação com a busca é a mesma que o
consumidor tem com um aplicativo de entrega: “quanto tempo até chegar?”.
Só que o real não tem pressa. O real não negocia com
expectativas humanas. A lucidez amadurece no ritmo de dissolução do
ego, e esse ritmo é brutalmente mais lento do que a mente deseja.
A impaciência é o berro do ego por resultados imediatos. É
uma recusa em suportar o tempo necessário para que o chão ceda sob os pés. É o
pânico de permanecer no meio do processo, onde nada é mais o mesmo, mas ainda
não se chegou em lugar algum.
O buscador impaciente, ao sentir que nada acontece “rápido o
bastante”, pula para outro caminho — e recomeça sempre no início. É como quem
cava dez buracos rasos em vez de um único poço profundo. Nunca encontra água
porque nunca cava o suficiente no mesmo ponto.
O antídoto para a impaciência é brutal: aceitar que
o tempo não é seu aliado nem seu inimigo — é o próprio mestre. Só permanece
quem suporta o desconforto de não ver resultados imediatos.
3. O Buscador Indeciso — o medo de compromisso com o
real
A indecisão é a mais venenosa das três, porque disfarça-se
de prudência.
O buscador indeciso sempre está “avaliando melhor” antes de dar um passo
definitivo. Aparentemente é um sinal de cautela — mas, no fundo, é medo de
queimar a ponte com as velhas ilusões.
A indecisão paralisa.
O indeciso analisa tanto as opções que nunca se compromete com nenhuma.
Ele teme estar “no caminho errado” e, para não errar, não caminha.
Mas não caminhar já é o maior erro.
O indeciso vive num limbo existencial: sabe que a vida comum
não o satisfaz, mas não se entrega por inteiro a nenhuma via de ruptura. Mantém
um pé na margem e outro na água, sempre pronto para recuar. E o que ele chama
de “manter a mente aberta” é, muitas vezes, apenas manter a porta aberta para
voltar atrás.
O buscador indeciso quer garantias antes de saltar, mas o
salto só existe sem garantias.
Quer a segurança de que não perderá nada, mas todo despertar exige perder o que
não é essencial.
E, enquanto hesita, o tempo passa — e o despertar vai ficando mais distante,
não porque o real se afasta, mas porque a coragem se dissolve.
4. O Triângulo da Autossabotagem — como distração,
impaciência e indecisão se alimentam
Essas três forças não agem separadas. Elas se alimentam umas
às outras.
- A
distração impede a permanência.
- A
impaciência interrompe a profundidade.
- A
indecisão paralisa a entrega.
Juntas, criam um triângulo perfeito de
autossabotagem:
- Você
se distrai e pula de um estímulo para outro.
- Como
nada se aprofunda, você fica impaciente.
- A
impaciência alimenta a dúvida sobre o caminho, gerando indecisão.
- A
indecisão abre espaço para novas distrações — e o ciclo recomeça.
Esse triângulo é confortável porque mantém a sensação de
“estar buscando” sem exigir a morte de nada em você. É um movimento que gasta
energia, mas não ameaça a velha identidade. É uma busca de faz-de-conta.
5. A Ruptura — o que acontece quando o buscador se
encara
O rompimento desse ciclo não vem de mais técnicas, nem de
leituras, nem de novas experiências.
Vem de um ato interno de decisão irrevogável: “Eu não vou mais me
permitir sabotar”.
Isso não é um juramento romântico — é um corte.
Um corte com a dispersão: escolher um caminho e não largá-lo só porque ficou
desconfortável.
Um corte com a pressa: suportar a aridez do processo sem buscar atalhos.
Um corte com a hesitação: assumir que não há retorno e que, mesmo que doa, o
único passo possível é o próximo.
O buscador só amadurece quando aceita morrer para o conforto
de “ter opções”.
Quando percebe que distração, impaciência e indecisão não são falhas inocentes
— são estratégias inconscientes de sobrevivência do ego.
E que, enquanto essas estratégias governarem, a busca será um teatro
onde nada real acontece.
6. A Presença como Antídoto Final
Se há um remédio que toca os três venenos, é este: presença
radical.
Estar presente é, por natureza, incompatível com a distração, porque não há
espaço para dispersão quando se está inteiro.
Estar presente dissolve a impaciência, porque no instante não há expectativa
futura.
Estar presente corta a indecisão, porque no agora só existe o passo imediato —
e ele é dado ou não é.
Presença radical não é uma técnica, mas uma rendição.
É parar de negociar com a própria covardia.
É permanecer no ponto de desconforto sem fugir, sem correr e sem hesitar.
E, paradoxalmente, é no momento em que o buscador para de correr que o caminho
realmente começa.
O buscador distraído, impaciente e indeciso não é um
outro lá fora — é uma configuração que todos carregamos.
Quem a reconhece com honestidade já está um passo à frente.
Mas só atravessa quem ousa cortar o ciclo, suportar o vazio e manter-se inteiro
quando tudo em si pede para dispersar, apressar ou recuar.
A busca real começa quando paramos de nos enganar sobre o
que estamos fazendo.
E, nesse ponto, não importa mais quantos caminhos existem — só importa o passo
que está sendo dado, agora.